sábado, 24 de outubro de 2020

Elas e eles

Elas saíram às ruas, queimaram sutiãs, questionaram a ordem estabelecida. Espernearam, protestaram, reivindicaram direitos, igualdade, emprego, salário, voto. Batalharam, enfrentaram, conquistaram. Deixaram de servir só ao lar e também de se calar à forte presença do pai de família. Assumiram as contas, a casa, o mercado de trabalho, a profissão, os filhos, os pais idosos, irmãos frágeis, pets abandonados e tudo o que o mundo lhes impõe. Mostraram que podem ser ótimas em tudo o que fazem. Dentro, fora, aqui, além, acolá. São inteligentes, espertas, multifacetadas, multitarefas, interessadas, competentes, eficientes, fortes. Trabalhadoras. Estudiosas. Bonitas. Invadiram a política e, apesar de ainda serem poucas, dão de dez a zero nos quesitos honestidade, clareza, facilidade em se comunicar. Aprenderam a gritar entre trogloditas, pra se fazer ouvir e respeitar. Ganharam votos, visibilidade, credibilidade. Eles se fizeram de tontos pra não ir pra guerra. Reativos. Cederam ao que estavam absolutamente impossibilitados de resistir. Adequaram-se ao que era muito inadequado não se adequar. Ou fugiram. Alguns corajosos descobriram o lado bom disso tudo. Passaram a viver coisas que não viviam, conheceram afetos desconhecidos, desfrutam, privilegiados, de relacionamentos inteiros. Mas são raros. Os preguiçosos procuraram novas saídas, menos trabalhosas do que mudar. A nudez escancarada, nem mais vendida, mas publicada gratuitamente em quantidade industrial, parece tê-los desanimado... A agressividade de quem precisou aprender a se defender parece tê-los desencorajado... Encontram, com facilidade, em seus iguais ou na virtualidade - esse "quase" -, alternativas à tão dificultosa tarefa de lidar pessoalmente com o que muda o tempo todo, com o que se supera, com o que questiona, com o que se pode viver intensamente, mas que demanda coragem. Ah, essa virtualidade, coisa facilitadora para os relacionamentos... Uma só tecla - delete -, um só comando - bloqueio -, e as desavenças se resolvem "civilizadamente". Elas reagem às leis do mercado. Quanto mais rara a "mercadoria", mais cara. Não basta ser bela e competente para conseguir um companheiro. Não direi nem um "bom companheiro", porque já seria querer demais. E elas acreditam que precisam disso, porque desde o berço foi o que lhes ensinaram. Nos contos-de-fadas, nas histórias de princesas, nas brincadeiras de casinha... Não bastasse isso, a que meninas modernas até resistem, a sociedade volta seu olhar torto a toda solitária, a toda celibatária, a toda mulher que não pensa em ser mãe. Há, também entre elas, as corajosas. Mas para que uma mulher se sinta livre como os homens se sentem naturalmente é preciso ter muito, muito mais coragem do que eles. Até porque todo ato de liberdade, quando praticado por uma mulher, é sumariamente julgado pela sociedade. Já belas, elas ainda se enfeitam para atingir padrões que possam atrair a atenção de um raro macho alfa. Pode-se atribuir essa obstinação à natureza, à cultura, à publicidade... Talvez seja um fator a se considerar o fato de que, enquanto para eles, cultuar Onã é prática natural desde sempre, para muitas delas, por incrível que pareça, ainda é tabu. Mas, também, por incrível que pareça, muitas ainda consideram que ter um homem a tiracolo lhes confere um status mais elevado... Assim, andam sobre plataformas e agulhas pra alcançar a altura "adequada" e a elegância "necessária". Espremem seus seios em bojos emborrachados pra que seus colos fiquem lindamente estufados e seus mamilos devidamente escondidos. (Percebi recentemente que mamilos marcados sob blusas leves podem ser considerados ofensa pessoal, não só a homens, mas a mulheres!). Maquiam-se, camuflam-se, rejeitam sobremesas, sacrificam-se, gastam com tratamentos sofisticados, perdem a expressão com preenchimentos e botox, entram na faca, negam a própria idade... São capazes de contorcionismos para agradar à plateia enfadada... No frigir dos ovos, depois de tantas batalhas vencidas, ganham menos do que eles, nas mesmas funções. Enfrentam tripla jornada e estão sempre cansadas. São culpadas de todas as agressões de que são vítimas, de todos os fracassos familiares, por todos os filhos-problema. Correm, permanentemente, o risco de serem esculhambadas ou agredidas em praça pública por machistas rejeitados, sem que um cidadão, um policial, um anjo da guarda, tome suas dores e interceda a seu favor, covardes de carteirinha, sem pudor. São traídas, humilhadas, constrangidas, esbofeteadas, espancadas, estupradas, e assassinadas quando traem ou abandonam companheiros violentos. E, às que se negam a aceitar relacionamentos desiguais, ou se aborrecem com pavonices masculinas, quase sempre resta a solidão. Será que algum dia existiu mesmo o convívio amoroso entre homens e mulheres? Será que ainda é possível o gozo compartilhado, não só na cama, mas na vida? Desejos coincidentes, planos comuns, caminhos percorridos juntos, respeito, admiração e carinho? Será que a doçura do amor se perdeu irreversivelmente nesse mundo de competição e revanchismo, ou ainda tem jeito? Será que ainda poderemos escapar de todos os estereótipos modernos, sermos gente e não coisa a ser vendida, encontrar não só sexo selvagem, mas sentir prazer de verdade por estar com alguém? Ana Lucia Sorrentino

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Receita de sucesso – de grátis

 

Não faça drama e aceite que tudo é natural.
A morte à espera lá fora, seus valores na sarjeta, o mal tornado banal.
Sua vida comandada por uma gente boçal, seus amigos mais queridos vendidos de baciada.
Nunca ninguém te disse que você não vale nada?
Pense bem, a culpa é sua. A vida é luta. Sem dor, sem ganho.
Entre na internet, inscreva-se num curso, agora eles ensinam até mudo a fazer discurso.
Pegue o seu fracasso e faça dinheiro!
Seja forte, toque a vida, coma e cague, você é um tubo. E cague e ande pra tudo. Pra tudo!
Se você é mulher, seja vadia. Ou pensa que vai poder passar a vida sem se vender?
Se é homem, seja canalha. Negue, minta, finja estar doente, se esconda, não responda, não tenha nunca nada a declarar.
Creia! Nunca vão te pegar!
Não tenha escrúpulo, nem vergonha. Chega dessa baboseira!
Invoque Deus, fique bravo, seja porco e imprudente. Barbarize frequentemente, que logo ninguém mais liga.
Desrespeite, desprestigie, desorganize, desestruture, desestabilize, cause intriga. Pratique a ignorância obstinadamente. Aos poucos ela se espalha e quem sabe, de repente, a vida te recompensa e você vira despresidente.

 

                                                                          Ana Lucia Sorrentino

 


domingo, 2 de agosto de 2020

Desistória

   

 

Eu escrevo esta desistória para que não se perca no nada, de onde veio e de onde, talvez, guarde alguma saudade. Temo que suma no vazio da memória. Nutre-me o ânimo pensar que, escrevendo-a, posso dela reter alguma beleza que, tivesse sido vivida, poderia ter. Escrevo pensando-a como uma não-desilusão, porque já foi gestada fadada a ser em vão. Não me foi permitido crer que viesse a acontecer, senão em minha fértil imaginação. Vivo, desde sempre, abortando gestações imaginárias. E não, não deixarei de engravidar. A ideia do inédito, à parte o descrédito que merece o mundo, me alimenta a alma e me permite atravessar esses áridos e inférteis desertos com alguma alegria. Está em mim. Brota. Floresce. Quero crer que em algum momento a vida possa, de fato, ser. Enquanto isso, sigo tecendo-a com fios do que não foi. Há nessa desistória personagens que poderiam ser lindos, não fossem tragados pela negação do belo. Há vontade, muita vontade, e uma imensa predisposição à compreensão e à cumplicidade. Há doçura, lealdade, há sentimentos nobres e olhares que entram pelas retinas e flecham, como um cupido, nossos corações já tão vividos. Que desistória bonita essa que nunca foi!... Causa-me um sentimento cujo nome ainda não existe essa impossibilidade de me sentir triste por saber que minha possível tristeza tem muito mais a ver com o que imaginei do que com o que de fato existe... Mas quando olho, assim tecida, a trama da minha vida, agrada-me encontrar tanta cor e tanta luz. Aqueles longos fios de tristeza dos inúmeros não-vividos não raro emprestaram real beleza e até mesmo alguma alegria aos tons tão pastéis de tudo...

 

    Eu escrevo esta desistória para que não se perca no nada, de onde veio e de onde, talvez, guarde alguma saudade. Temo que suma no vazio da memória. Nutre-me o ânimo pensar que, escrevendo-a, posso dela reter alguma beleza que, tivesse sido vivida, poderia ter. Escrevo pensando-a como uma não-desilusão, porque já foi gestada fadada a ser em vão. Não me foi permitido crer que viesse a acontecer, senão em minha fértil imaginação.
    Vivo, desde sempre, abortando gestações imaginárias. E não, não deixarei de engravidar. A ideia do inédito, à parte o descrédito que merece o mundo, me alimenta a alma e me permite atravessar esses áridos e inférteis desertos com alguma alegria. Está em mim. Brota. Floresce. Quero crer que em algum momento a vida possa, de fato, ser. Enquanto isso, sigo tecendo-a com fios do que não foi.
    Há nessa desistória personagens que poderiam ser lindos, não fossem tragados pela negação do belo. Há vontade, muita vontade, e uma imensa predisposição à compreensão e à cumplicidade. Há doçura, lealdade, há sentimentos nobres e olhares que entram pelas retinas e flecham, como um cupido, nossos corações já tão vividos. Que desistória bonita essa que nunca foi!...
    Causa-me um sentimento cujo nome ainda não existe essa impossibilidade de me sentir triste por saber que minha possível tristeza tem muito mais a ver com o que imaginei do que com o que de fato existe...
    Mas quando olho, assim tecida, a trama da minha vida, agrada-me encontrar tanta cor e tanta luz. Aqueles longos fios de tristeza dos inúmeros não-vividos não raro deram algum sentido, emprestaram real beleza e até mesmo alguma alegria aos tons tão pastéis de tudo...

           
                                                            Ana Lucia Sorrentino

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Aproximação

 

 

 

Há, entre corpos,

distância que se estreita pela intenção.

É no tempo,

na pausa,

no receio,

no toque que titubeia pressentindo a permissão.

É na delicadeza imposta pelo medo da rejeição

que o instinto se lapida e pode acontecer,

na calma,

o inusitado encontro de almas.


Ana Lucia Sorrentino

 

 

 

 

 

 


sábado, 11 de julho de 2020

Pequeno diário de uma semana intensa perambulando entre a morte e a vida - estou viva

Pequeno diário de uma semana intensa, perambulando entre a morte e a vida – estou viva


   




Pequeno diário de uma semana intensa, perambulando entre a morte e a vida – estou viva.
           
            Sábado. Como nada é garantia de nada, uma estrada tranquila não foi garantia de uma viagem tranquila. Durante mais de seis horas estados internos desfavoráveis se sobrepuseram a condições externas favoráveis e me fizeram imaginar que eu poderia morrer liquidificada entre uma enxaqueca feroz e uma cruel crise de enjoo. E me renderam um domingo submerso em gatorade e solidão. Nada de que me arrependesse, uma vez que a intenção era nobre: estar presente no casamento de alguém muito querido. Celebrar o amor.
            Segunda. Missão cumprida. De tanto que me cuidei fiquei zerada. Fui pra festa feliz da vida. Nunca assisti a casamento tão lindo. O pé dentro da igreja já é garantia de choro sentido. O coral, um escândalo. Eu queria mesmo saber o que é que faz mulheres chorarem tanto em casamentos. Talvez seja a beleza da crença na ilusão, mesmo sabendo-a ilusão. Não sei... Depois do beijo, Beatles colocando a igreja abaixo. Todo mundo cantando “All we need is love” e em mim a convicção de que se é possível se duvidar de tudo, do poder do amor não duvido.
            Festa! Muita comida, muita bebida, muita gente bonita, muita emoção. Na pista, os jovens se entregavam à dança com despudor total. Me perguntei que diabos fizera com a minha vida compartilhando-a com um homem que nunca me tirara para dançar. Pra todo o resto eu poderia arrumar alguma desculpa, esfarrapada ou bem vestida, mas pra isso não. Como eu pudera não perceber o quanto podia ser lesivo ficar sem dançar por toda uma eternidade de 24 anos? Fiquei mastigando essa pergunta, junto com um pedacinho de bem-casado e com o cafezinho da saída, um pouco amargo.
            Terça. A opção por voltar de avião só encurtou o sofrimento, porque o céu carregado não ajudou em nada... Cheguei a Sampa meio que desmilinguida, mas pronta pra outra.
            Quarta. Eu só não sabia que essa outra viria tão rapidamente, e em sentido tão oposto. Depois da aula, ao ligar o celular, recebo uma mensagem de texto me avisando do velório de uma amiga querida. Saí da faculdade e fui ao encontro dela, mas ela já não estava lá. Só um caixão com um corpo sem vida.
            Percebi então que morrer não é como a quase-morte do enjoo que precede o vômito. Morrer é morrer. É sair de cena de vez. Olhando minha amiga, que já não estava lá, não vi vida alguma ali. Nem um fiapo. A não ser na dor dos que choravam à sua volta. Me vieram à mente as palavras de Epicuro, em sua carta a Meneceu, e tive que concordar com ele. A morte não é problema nosso, porque quando estamos ela não está e quando ela está já não estamos.  A morte é problema dos que ficam, porque eles é que terão que reorganizar suas vidas e superar a dor da saudade.
            Olhei em volta e, vendo o cansaço dos familiares, pensei na tirania da doença e no tanto de vida que essa triste exibicionista consome de todos os que se veem obrigados a conviver com ela. A morte, parece-me, pode ser uma grande amiga. Que imensa sorte é o imenso azar da morte pros que ficam e retomam suas vidas...
            Bateu-me então um enorme desarrependimento por todas as loucuras que fiz, fora de época, lixando-me pras regras e sem qualquer medo de vergonha ou vexame. Soubesse eu, mais jovem, o quanto perdemos de tempo acreditando em bobagens, mais jovem teria me desprendido delas.  
            Quinta. Acordei e chorei. Estudei e chorei. Fui pra prova com pepsamar na bolsa. Fiz o melhor que pude. Tive que escrever sobre Leibniz, e seu Deus criador do melhor dos mundos possíveis. Uma apelação mesmo... Pra mim, pura literatura. Aliás, se fosse literatura, poderia ser bem bonito...  

            Sexta. Ainda toda meio desconjuntada dou graças aos céus por já estar podendo comer melhor. Afinal, mais um casamento, mais uma festa, mais uma celebração de amor.  Me arrumo às pressas, sem me preocupar muito em estar maravilhosa, porque há tempos já deixei de lado a ilusão de ser a mais bonita da festa. Com simplicidade, faço boa figura. Vantagens que a idade traz.  O mais bonito desse casamento, sabe o que foi? Que o noivo abriu mão de casar com separação parcial de bens, o que é meio que uma regra hoje em dia. Nesse mundo tão selvagemente capitalista, tive a honra de assistir a um casamento em que o noivo simplesmente optou por casar com comunhão universal de bens, por estar casando com um amor de adolescência e acreditar que, realmente, estão juntos nessa vida. O cafezinho da saída teve até um gosto mais doce...
            Sábado. Obrigações. Compras. Sol. Música. Venho pela rua cantando “Encontro” junto com Gadú.

Olha só
Como a noite cresce em glória
E a distância traz
Nosso amanhecer
Deixa estar que o que for pra ser vigora
Eu sou tão feliz
Vamos dividir
Os sonhos
Que podem transformar o rumo da história
Vem logo
Que o tempo voa como eu
Quando penso em você... 

            Aumento o som, e venho sorrindo e chorando, toda misturada. Pelo tanto que me sinto viva e pelo tanto que morro sempre que não vivo o que desejo viver.  E me vem uma urgência, uma urgência infinda, uma sede enorme e um enorme pesar pelo sempre tão presente desacontecer.  
            Queria que não me escapasse tanta coisa por esses humanos dedos, tão finos e frágeis... 
           
                                                                                    Ana Lucia Sorrentino

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Relatos da Meritocracia – esse conceito estranho – sobre Bolsonaro e Weintraub





Menino franzino, canelas tão brancas e magras que lhe renderam o apelido de “mito”, advindo da abreviação de “palmito”, Jair Messias Bolsonaro tornou-se Cadete do Exército, virou Capitão e construiu uma carreira de militar sem representatividade, de reputação “assustadora”,  que preparava atentados à bomba como parte de campanha por aumento de salários. Virou deputado. Como deputado só promoveu intrigas e  baixarias. Talvez por mérito – não sei – angariou uma legião de seguidores que gritavam “mito” sem saber a origem do apelido. Virou presidente. Como presidente, nomeou os piores ministros de que se tem notícia, todos fortemente atuantes contra a pasta que representam. Reuniu ao seu redor a pior espécie de gente que nossa imaginação nem tão fértil consegue imaginar, destrói todos os dias um pouquinho a  mais do Brasil e da sua reputação lá fora e promove uma verdadeira carnificina, que já conta com quase 50 mil mortos, aliando-se a um vírus que depende de aglomerações para se fazer valer.
O que ele merece? Não sei... Sei que tem poder para promover mais meritocracia: hoje afastou o surreal Ministro da Educação Weintraub, que fechou seu ciclo com chave de ouro: conseguiu, antes de sair, revogar portaria sobre cotas para negros e indígenas na pós-graduação. E, por mérito talvez, o mandou para o Banco Mundial para ganhar mais de R$1.000.000,00 por ano! E você? Tem algum mérito?
  
                                                                                 Ana Lucia Sorrentino

  

quarta-feira, 6 de maio de 2020

CEu de Quarentena






A quarentena 
                   me reinventa. 
Me reinvento 
                  na quarentena.

sábado, 25 de abril de 2020

domingo, 19 de abril de 2020

Passou da hora de levarmos Jair Messias Bolsonaro a sério



          
           
Tenho pra mim que ainda há muuuita gente subestimando a gravidade do momento que estamos vivendo. Por estarmos imersos nele e por estarmos lidando com as barbaridades que esse crápula faz todos os dias, há mais de um ano, a indignação vai se cansando e muitos já naturalizam a barbárie.
          
           A violência moral é tamanha que, para nos salvarmos da depressão, temos recorrido ao humor, aos memes e às charges que, afinal, expressam muito mais instantaneamente o absurdo que vivemos e de alguma forma nos lavam a alma. Transformamos nossa dor em riso e seguimos, desgraçadamente enclausurados, sós e gritando no deserto.

          Pergunto-me se não passou da hora de pararmos de rir, de pararmos de chamar Bolsonaro de Bozo e de tentarmos ridicularizá-lo, porque o que ele está conseguindo fazer e o tempo que está conseguindo se manter no poder apesar do que faz não é pra iniciantes.
         
         Jair Messias Bolsonaro é mau, é desumano, não tem qualquer empatia com o povo, e é surdo ao que o mundo inteiro diz dele. Tem, sim, o perfil de um psicopata e creio que é isso que lhe permite ir adiante sem se importar com as vaias e, talvez, conseguindo dormir. Se é que não se droga pesadamente. A julgar pelos olhos sempre esbugalhados, a olhar como que para o infinito, é uma hipótese a se considerar.

          Creio que corremos o risco de não conseguir enxergar que isso é similar, sim, ao Holocausto, e temo não estar caindo em exagero. Muda a forma de atuação, mudam as armas - afinal, se é possível propagar rapidamente um vírus com potencial pra matar os "mais fracos"; se é possível dificultar tanto o acesso a um benefício que pode salvar os mais pobres de morrer de fome ou de terem seu sistema imunológico gravemente afetado, a ponto de ficarem à mercê do vírus; se é possível ter a seu lado as milícias que, hoje, ameaçam com a morte os que se negam a se jogar deliberadamente nos braços dela, assim como é possível ter uma legião de seguidores de líderes religiosos negacionistas, pra quê câmara de gás, não é mesmo?

          Subestimaram o potencial destrutivo de Bolsonaro quando era um deputado inútil e incivilizado e o julgaram simplesmente burro. Mas ele conseguiu colocar a família inteira a trabalhar contra o povo. Acreditaram que seria fácil tirá-lo do poder se se mostrasse um ditador e o elegeram apostando no escuro. Agora estamos assim, sem saber mais o que fazer, pra onde gritar, a quem recorrer pra nos salvarmos! Até quando vai isso? Será possível que ele tenha tanta força política a ponto do Congresso não conseguir derrubá-lo? Ou os aliados nessa loucura são mais numerosos do que imaginamos? Ou seu poder de chantagem é tão grande que consegue manter Congresso e STF calados? A agonia aqui é grande tentando entender essa situação! 🤕

          Sugiro, humildemente, que paremos de rir e nos façamos respeitar como um povo adulto, que vai enfrentá-lo com seriedade, todos os minutos das nossas vidas, até que ele caia e leve junto toda a corja que lhe dá sustentação!
Nada, nada que fizerem para afastar Bolsonaro poderá ser chamado de golpe!
Será, sim, seja lá como se der, salvação!

                                                                   Ana Lucia Sorrentino
                                                                       20/04/2020


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Carta para Cioran




         A frivolidade é o antídoto mais eficaz contra o mal de ser o que se é: graças a ela iludimos o mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades.

             (Cioran, em Breviário de Decomposição)

Caro Cioran:



            Permita-me chamar-lhe de amigo, apesar de termos nascido em épocas e lugares distantes e de jamais termos nos encontrado, senão em pensamento. Estou lhe escrevendo porque sempre que entro em contato com seus escritos tenho vontade de comentá-los e acabo lamentando profundamente não ter seu e-mail. Não poderia esperar que tivesse um blog, onde eu pudesse deixar-lhe uma palavrinha e, na verdade, é mesmo uma sorte sua não ter um. Blogueiros sofrem muito. Se, na intenção de promover liberdade de expressão, permitem comentários, precisam estar dispostos a receber todo tipo de agressões verbais, seja lá pelo motivo que for, de gente que nem ao menos se dá ao trabalho de ler o texto inteiro antes de comentar. Estamos vivendo uma estranha época em que as pessoas se orgulham da própria falta de educação. Recentemente aconteceram por aqui coisas do arco da velha. Prefiro nem contar para que não fique mais desgostoso do que já é em relação ao ser humano, se é que isso é possível. Fico feliz por você não estar à mercê disso.

            Não havendo esse blog, pensei então em lhe escrever pelo meu. Não sei por onde você anda e, como não acredito em vida após a morte, creio que jamais me responderá. Mas isso não o faz diferente de tantos “vivos” para os quais escrevo com frequência. A tremenda facilidade que temos para nos comunicar virtualmente com gente do mundo todo a qualquer hora resultou em uma quase impossibilidade de nos relacionarmos de verdade, seja lá com quem for. Jogamos e-mails ao vento, trocamos gracinhas e fórmulas de bem-viver com todo mundo, defendemos ferrenhamente partidos políticos questionáveis, usamos imagens para sermos mais bem compreendidos e assim seguimos, solitários. Nosso tempo é engolido pelas infinitas possibilidades e muitas vezes nem conseguimos perceber a quem valeria a pena dar um pouco de atenção. Talvez nem mesmo acreditemos que alguém assim exista. Somos “líquidos”, como diria Bauman. Escapamos entre os dedos, escorregamos por baixo da porta, vez ou outra descemos ralo abaixo. Isso é meu, não de Bauman.

            Bem... escrevo então esta carta por crer que, imaginando que a lerá, pensarei sobre tudo com mais cuidado e empenho do que se estivesse conversando só comigo mesma. Costumo ser generosa e tolerante comigo e isso às vezes me produz desmandos. Um bom interlocutor é sempre um chamamento ao rigor, além de ser instigante.

            Tenho me perguntado o tempo todo para que escrevo, afinal. Certa vez ouvi de alguém que, se tivéssemos que escrever para ensinar alguma coisa ao mundo, não deveríamos escrever: deveríamos tratar o mundo a socos e pontapés. Não imagina quantas vezes me lembro disso antes de me envolver com as palavras... Acontece que há muito deixei de acreditar que possa “ensinar” algo ao mundo. Escrevo para me livrar das ideias que ficam me rondando como crianças sonolentas que se põem a rir e não me deixam tranquila se não as coloco para dormir em um berço de papel. E devo confessar que, enquanto o faço, ponho nisso tanto carinho que me liberto de todo e qualquer sofrimento que não o da angústia de combiná-las bem. Mas este é lúdico, e me distrai daqueles,  sobre os quais não tenho qualquer domínio.

            Estive vendo alguns vídeos sobre você. O que mais gosto em você, nesses vídeos, é da lucidez com que se descreve e da forma como ri de si mesmo. Talvez porque eu também ande sempre a rir de mim, mesmo nas adversidades. Mas hoje me emocionou em especial um em que sua imagem aparece mais longamente, você calado, passando as mãos nos cabelos brancos, e sua expressão de inteligência ocupando a tela inteira. Inteligência maciça acrescida da experiência de toda uma vida. Inteligência que vaza pelo olhar cansado de quem já viu muito e de quem se desiludiu também com as palavras. Uma inteligência em silêncio. Cheia de dignidade. Às perguntas do jornalista você respondia com frases econômicas  e com uma voz rouca que parecia carregar o peso da inutilidade de respondê-las. Revi o trecho algumas vezes, quis reter. Escrevendo agora sobre isso posso te ver e me emociono novamente.

            Frequentemente tenho tido vontade de te escrever. Para contar que a academia continua roubando nossas almas, e que, à medida que consigo, me protejo disso escrevendo. Roubo dela o tempo que ela me rouba e escrevo sobre o que quero. Depois, subtraída do tempo que eu mesma roubei, escrevo precariamente sobre aquilo que ela me obriga a escrever... Não tenho tido notas muito boas, mas reduzir-nos a um número é algo tão injusto que evito até pensar nisso. Sigo, para ser legitimada como profissional. E, afinal, preciso ganhar a vida de alguma forma... Na prática, você sabe... Proliferam no mundo imbecis diplomados e muita gente brilhante morre sem diploma algum... Produtores de futilidades se “dão bem”, enquanto pessoas seriamente dedicadas muitas vezes passam a vida em dificuldade. Contingência pura.

            Também penso sempre em te escrever para te contar que sei muito bem a que se refere quando diz que os grandes enfermos não se enfastiam porque a doença os preenche, pois conheço isso muito de perto. E, por isso, como você, decidi jamais dar muita importância a meus pequenos sofrimentos... Também vivo querendo te contar que sempre que olho para as luzes da noite sinto um ímpeto de me embrenhar por elas, e lembro com inveja de suas noites insones caminhando pelas ruas de Sibiu... amo a noite. A tudo isso resisti. Conversava com você mentalmente, e me satisfazia. Mas hoje quis escrever.

            Quero te contar que um fenômeno atual registra em textos e fotos uma dessas suas percepções de precisão cirúrgica. Se estivesse entre nós, provavelmente você se surpreenderia ao ver, em murais virtuais, a materialização do que captou e descreveu tão bem observando o comportamento humano. O início do século XXI trouxe uma enorme intensificação do movimento nas redes sociais e por volta de 2004 deu-se um "boom" que mudou nossas vidas. Ao longo dos últimos anos, Cioran, o fenômeno da autoexposição nessas redes só cresceu e atinge, hoje, um nível que eu diria de verdadeira provocação. A inclusão digital misturou, no mundo virtual, classes sociais que, no mundo real, não se misturavam. As classes desfavorecidas passaram a circular virtualmente por mundos cujo acesso, antes, no mundo real, lhes era negado.      Por outro lado, a juventude das classes mais abastadas, que foi criada a pão de ló, desfrutou de privilégios desde sempre e nunca teve que batalhar pela liberdade, que lhe foi “dada” por uma geração de pais inseguros e permissivos, parece não fazer ideia do que significa a palavra “compaixão”. Também desconhece os malefícios que sentimentos como a inveja e a cobiça, inerentes ao ser humano, podem causar. Sentimentos que nossos avós, sabiamente prudentes, nos ensinavam a evitar, evitando a exposição exagerada da própria sorte.

            Ocorre, nas redes sociais, exatamente o contrário do que nossos avós aconselhavam: o escancaramento da vida privada, uma autoexposição exagerada, um fenômeno a que a filósofa Márcia Tiburi se refere como sendo a substituição do cogito cartesiano “penso, logo existo” pela crença “sou visto, logo existo”.

            Essa frivolidade tornou-se um vício nas redes sociais. A geração que posta tudo o que faz e toda a “felicidade” que vive, parece encontrar mais felicidade em postar do que em viver. Os perfis criam ilusões que só sabem ser ilusões aqueles que conhecem pessoalmente seus donos. As palavras trocadas em murais entre familiares e amigos quase sempre são de efusivo amor e carinho. Uma verdadeira banalização do afeto. A vida da maior parte dos internautas se assemelha em muito a uma grande balada lotada de gente bonita e de acontecimentos excitantes. As pessoas postam lindos pratos da alta gastronomia, viagens fantásticas, férias incríveis... Quase ninguém posta o que não contribua para a construção de uma imagem de ser humano agraciado pelos deuses.

            Nesse mundo de realidades virtuais não basta que a vida não seja justa. Não basta que, enquanto alguns mal têm o que comer, outros, sem mérito algum, se regalem com tudo que há do bom e do melhor. É preciso expor isso sem a menor compaixão, sem a menor empatia pelos que têm muito pouco, que hoje não sofrem apenas por não ter, mas também por ter mais consciência do quanto não têm, uma vez que presenciam diariamente a fartura e o gozo alheios. Assim, um mundo que, na realidade, já é desigual e cruel, transforma-se, virtualmente, em uma verdadeira brutalidade. Se já é complicado lidar com as diferenças sociais reais, quão mais complicado é lidar com diferenças criadas em redes virtuais?     Creio que uma simples passeada pelo Facebook provoque em um jovem que não ganha nada de mão beijada e que enfrenta as condições mais adversas na vida, o mesmo insight que você teve ao escrever em seu Breviário que “a injustiça governa o universo”. Acontece que o mundo das redes sociais, ao privilegiar o lado belo da vida, também é, de certa forma, ficção. Então, como se isso já não bastasse para criar rivalidade entre diferentes classes, veio somar-se a isso o fato de que, nessas redes, as pessoas estão dizendo tudo o que pensam sobre tudo, sem a menor reflexão. O fato de não estar cara a cara com seu interlocutor e de poder bloqueá-lo ou deletá-lo e até mesmo de poder deletar os próprios comentários produz uma leviandade corrosiva. E, infelizmente, está vindo à tona tanto preconceito, tanta arrogância, tanto desrespeito pelo outro, que é de dar vontade de chorar. E não é paradoxal estarmos vivendo isso em uma época de acirrada militância do politicamente correto. Parece-me que os mais sórdidos sentimentos humanos, existentes apesar do nosso desejo em contrário, quando patrulhados, fermentam.

            Assim, Cioran, nas redes sociais, a imensa vontade de expor o próprio “sucesso” caminha lado a lado com a exposição da própria miséria interna. Miséria que, talvez, em um movimento circular, venha crescendo justamente por conta dessa ânsia de viver para o outro e dessa enorme incapacidade de olhar para dentro de si mesmo. Olhar pra dentro de si, como bem sabe, é desconfortável, porque, por dentro, muitas vezes, não há essa beleza que as academias, os cosméticos e as clínicas de cirurgia conseguem produzir para o mundo ver. Essa "galvanização" que Benjamin já vislumbrava em "Experiência e Pobreza", que não transforma ninguém por dentro... E nada muda internamente mesmo com um apartamento de luxo, o carro do ano ou o celular de última geração. A maior parte de nós segue, assim, caro Cioran, como você sabiamente detectou: dissimulando a inconveniência de suas profundidades. De mal a pior.

            Não pedirei que me responda, pois não quero incomodá-lo aí onde está, ou onde não está, mais do que já incomodei com meu desabafo. E, muito provavelmente, não terá palavras para me consolar. Mas agradeço de coração por ter deixado registros tão honestos sobre tudo o que é humano. Lendo-os sinto-me menos só. 

                                                                                                  Com carinho,                                                                                                                                Ana Lucia Sorrentino
                                   Novembro/2015                            

quarta-feira, 8 de abril de 2020

terça-feira, 7 de abril de 2020

Magia



























Magia


Quero te desconstruir
pra voltar ao meu normal.
   Defeitos aqui, bem de perto,
   bem de perto o seu real.  
   Quero ver se é só engano,
   impressão, fantasia.
   Entender o que é que foi
   que me tirou da apatia.
   Entender como é que pode,
   depois de tanto sossego,
   tremenda disritmia.
   Como é que da noite pro dia
   de repente me flagrei
   achando algum sentido,  
   sentindo alguma alegria.
   Vem pra eu te esquadrinhar
   pra tentar compreender
   se fui eu que te inventei
   ou se isso é magia.

                                                                      Ana Lucia Sorrentino
                                                                            07/04/2020




sexta-feira, 3 de abril de 2020