quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Lentes entre nós

           


           Cena 1 - Das seis pessoas à mesa, apenas eu não tenho os olhos no celular. Isso era pra ser a comemoração de um aniversário, salvo engano. Olho ao redor, tento me fixar na decoração suave, penso em comentar algo, resisto ao ímpeto de checar meus e-mails só pra disfarçar, me deixo abater pelo constrangimento. Vontade de sair correndo. Fico, pra não arrumar encrenca, coisa fácil de se fazer. Mas tá difícil. Que bom que a comida chegou. Com esse povo, nunca mais. Belos pratos! Começa a sessão de fotos. 
        Cena 2 - O sono vem vindo. Hora da última checada nas mensagens. Quem eu queria que me respondesse, não respondeu... Normal isso já. O descaso está naturalizado. Ninguém mais se ofende com a ausência de respostas, porque tudo é sempre tanto e a gente não dá conta... Chato jogar e-mails ao vento... Acho que vou deletar todo mundo que não me responde... Não tem jeito, ainda fico ofendida.
       Cena 3 - O mesmo cara no inbox. E eu que não consigo ser grossa. Amigo, eu ainda sou do tempo do cafezinho pessoalmente, gosto de olhar pra pessoa, sentir o hálito, perceber alguma sinceridade no ar.  Não, não mando fotos, me sinto uma coisa. Tenho cam, sim, mas não uso, não gosto. Não sei por que, mas ainda tenho dó de deletar de pronto. Mas as coisas podiam se dar de forma diferente, pelo menos uma vez... Me canso e mando a deixa pro sumiço: venha, vamos nos conhecer, amanhã estou livre, pode ser? Resolvido. Eles querem fantasiar, só isso.
        Cena 4 - Uma lua deslumbrante enfeita o céu. Tudo limpo, uma beleza... Abraços e beijos, uma vontade de conversar um pouco mais, mas é tarde e a vizinhança dorme. Minha sobrinha observa que a noite fora tão gostosa que nem lembramos de nos fotografar. É mesmo... Tava tudo tão bom! Obrigada por terem vindo, adorei! Acompanho o carro deles virando a esquina, fotografando-os mentalmente. Registro a cores, na minha memória afetiva, essa sensação boa de estar entre queridos, de poder confiar, de saber que com eles posso contar. O mundo não precisa do registro digital disso, porque isso é entre nós. Mesmo porque o mundo não se importa...   
           
            Entro em casa, e, recolhendo os vestígios do encontro, enveredo por um paradoxo. Realmente, estivéramos inteiros ali, dando-nos uns aos outros. Não nos preocupamos em fotografar o momento para que outros o vissem, porque o momento era nosso. E nós éramos nós mesmos. Me ocorre que toda vez que uma lente se interpõe entre atores de uma cena ela os altera, alterando de todo a relação. Esse vício de se fotografar e compartilhar tudo o que se vive expõe um desejo incontido de que algo, ao menos uma imagem, resista, num mundo que muda tão rapidamente que momentos às vezes intensamente aguardados simplesmente evanescem. Mas também expõe, e de forma flagrante, a perda da medida entre viver e mostrar que viveu. Paradoxalmente, quando a preocupação em mostrar disputa espaço com o viver, este, sem dúvida, sai enfraquecido. Acaba-se mostrando o que se viveu, mas o que se viveu já foi vivido para ser mostrado e, portanto, não foi vivido por inteiro. A relação já foi substancialmente alterada. E um tanto de vida escoou pelo ralo da vaidade.  

            Caio no sofá, cansada e serena. É bom demais saber que há quem nos queira bem. O silêncio me agrada. Não tenho medo de me escutar. Eu não sou contra a tecnologia, mas eu não gosto de posar pra fotos. Eu gosto de fotos flagradas, porque gosto da espontaneidade, da verdade. Eu gosto de quem desliga o celular durante o encontro, pra estar ali por inteiro. De quem responde meus e-mails com atenção, demonstrando consideração. Eu gosto de quem tem coragem de se fazer presente de verdade. Gosto de experimentar, não de ficar brincando de ensaiar eternamente.  Gosto de confiar, de estar perto, gosto do que permanece dentro de mim, mesmo que mudando o tempo todo. Eu gosto de sentir que há algum chão firme em que pisar. E quando piso com confiança, torno-me confiável também. Se não for pra ser assim, melhor mesmo um sofá, a solidão e um bom livro. 

                                                           Ana Lucia Sorrentino

sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre saudade
















Porque saudade quase sempre é algo que quase nunca se sacia.
Porque saudade é muito mais sobre o que, inocentes, fomos capazes de sentir um dia.  

                                                                               Ana Lucia Sorrentino