segunda-feira, 2 de agosto de 2021
domingo, 1 de agosto de 2021
Borba Gato e a Cinemateca ou de como perpetuar a barbárie restaurando a estátua de um bandido e destruindo a Cultura
De sábado pra cá estou acompanhando atentamente a polêmica
que nasceu a partir do ato contra a estátua de Borba Gato e me parece que, como
era de se esperar, a tese em prol da “preservação da História” prevaleceu na
grande mídia.
Isso me fez chegar à questão: queimar a estátua de Borba
Gato não é História?
Fiquei me imaginando contando à minha neta, quando ela já
tiver idade pra pensar junto comigo sobre essas coisas, que em certo sábado de
2021, quando ela tinha apenas 3 anos, enquanto milhares de pessoas em todos os
cantos do Brasil enfrentavam o medo de se contaminar com um vírus perigosíssimo
para ir às ruas pedir o impeachment de um presidente covarde, misógino, machista,
racista, prevaricador, corrupto, adorador de torturadores, etcetcetc, em uma
rua de São Paulo um pequeno grupo queimava uma estátua que representava muito de
tudo isso, como que dizendo: não queremos mais tolerar tanta barbárie.
Se, à época de Borba Gato, houve quem julgasse legítimo
homenageá-lo, isso está na História e é lá que deve ficar. Mas, evoluímos e
ganhamos clareza quanto aos fatos e também quanto ao que é aceitável ou não e,
para explicitar claramente isso - sim, porque sem atos “barulhentos” ninguém
enxerga as ditas "minorias", que de minorias nada têm senão a própria
invisibilidade perante o establishment -, um grupo de inconformados teve a
coragem de incendiar a homenagem à barbárie.
A pergunta é: por que a cicatriz desse ato tem que ser
apagada senão como um recado de que as minorias devem continuar invisíveis e de
que a barbárie continua sendo validada? Por que, até hoje, andando pelas ruas
de São Paulo, temos que cruzar com esse escárnio? Por que um país que sofre
terrivelmente com o racismo, o machismo e a misoginia e onde mulheres morrem e
são estupradas às pencas todos os dias deve manter plantada no meio da calçada
uma estátua horrorosa em homenagem a um escravagista assassino e estuprador?
Porque é “arte”? Ou porque o poder nessa plutocracia brasileira de 2021 é
exercido por simpatizantes e quiçá praticantes de tudo que Borba Gato
praticava?
A estátua pegando fogo mandou a mensagem: estamos fartos de
tolerar o intolerável. No mundo de hoje não há mais espaço nem nas ruas, nem
nas nossas vidas, para “Borba Gatos” de pedra ou de carne e osso. Não queremos
tropeçar nesse tipo de “patrimônio cultural”, que valida a barbárie, o
primitivismo e tudo o que rejeitamos ferrenhamente. Porque ele estimula racistas,
escravagistas, misóginos e estupradores a se julgarem dignos de homenagens e
admiração e a acreditarem que podem ser como são. E não, NÃO PODEM. NÃO QUEREMOS
MAIS TOLERÁ-LOS.
Nesse futuro em que me imaginei contando essa história à minha neta havia
dois possíveis desfechos. No primeiro, eu lhe contaria, orgulhosa, que, depois
dos debates provocados pelo ato, a estátua virara sucata para servir a outro
propósito mais útil e que no chão, no local onde ela estivera plantada por
excessivo tempo, haviam chumbado uma placa esclarecendo o motivo de sua
retirada. E se minha neta quisesse ver como era a estátua, eu teria, para lhe
mostrar, um sem número de registros virtuais e impressos que prescindiriam da
permanência do monstro na calçada. E lhe contaria que as autoridades haviam
decidido destruí-la porque ela não contribuía em nada para a criação de uma
sociedade melhor, porque não se constrói nada de bom homenageando bandidos. E
que, de qualquer forma, a quem interessasse, sempre haveria os livros de
História. No segundo desfecho que imaginei possível, a estátua ainda estaria na
calçada e eu poderia, com orgulho, mostrá-la toda chamuscada à minha neta e ler
com ela a placa que explicaria que as
autoridades da época haviam considerado importante mantê-la chamuscada para preservar simbolicamente o
ato que em 2021 a incendiara em repúdio a tudo o que ela representava. Pensei na
Bastilha se transformando em praça de grandes manifestações democráticas,
pensei no muro de Berlim se transformando em mural de arte a céu aberto, pensei no Pelourinho, em Salvador, se transformando
em Centro de Cultura e de Resistência e imaginei esse tipo de ressignificação
para o feio Borba Gato.
Mas vejam só!!! Será mesmo que vou ter que contar à minha
neta que houve uma polêmica, que os “intelectuais” do nosso país não deram
conta e que, por fim, um empresário resolveu bancar sua restauração para
perpetuar a homenagem à barbárie???
É INACREDITÁVEL o Brasil que estamos vivendo.
O incêndio na Cinemateca no final da semana, fruto do
descaso criminoso do governo federal, reitera a constatação trazida pelo
episódio da estátua. Estamos sendo governados por gente que não consegue superar
a própria miséria moral e intelectual para entender que o ser humano é muito
mais do que um tubo digestivo. É muito triste tudo isso.
Ana Lúcia Sorrentino