domingo, 11 de novembro de 2007

XIII - Um Pequeno Conto - "Vida Nova" - Você já viveu algo parecido?

Sei que havia prometido que o próximo post seria sobre o “Capote Expiatório”, mas andei relendo alguns textos dos meus livros, e um deles tem tanto a ver com essa questão do “voltar pra casa”, do interiorizar-se, que achei que caberia muito bem aqui para exemplificar a imensa necessidade que uma mulher tem de ter alguns momentos consigo mesma, principalmente nas fases em que o mundo objetivo está tirando demais dela. Nesse pequeno conto, que faz parte da minha coletânea “Acasos”, a protagonista elabora uma “manobra” dentro do seu dia-a-dia super agitado, para ter alguns momentos de paz.
Leia, e veja se você se identifica com esse tipo de situação. Se puder nos contar quais são suas próprias "estratégias", tenho certeza de que seu depoimento poderá ajudar muita gente!

Vida Nova

O espelho reflete uma silhueta pálida, cansada. Um corpo imóvel, relaxado, branco. Longos cabelos negros, chegando à cintura, parecem pesar demais para o pescoço tão fino. Os seios fartos, de bicos muito grandes, cheios de leite. O ventre ainda inchado. Ela se olha, quase sem se ver. Não a agrada a própria aparência. Suspira. Liga o chuveiro, rapidamente. Entra no banho. A água lhe alivia o cansaço. Fecha os olhos, sente os pingos nos lábios. Serão vinte minutos. Vinte minutos pra si mesma. Nem pode crer. Ainda não relaxou de todo, esperando qualquer chamado. Habituou-se... Esses minutos devem ser aproveitados, curtidos. Muito xampu, condicionador, sabonete perfumado. Vai fingir que não escuta o marido chamar, o filho maior batendo à porta, o bebê chorando. Que se virem. Ao menos por vinte minutos num dia... Abre totalmente a torneira, sentindo no peito o jato frio. Arrepia-se. Fecha, e sai pingando pelo banheiro. Enrola os cabelos numa toalha, joga outra atrás do pescoço. Sente o hidratante umedecendo o corpo todo. Está com a barriga flácida, a pele ainda ressentida da gravidez. Ficou imensa... Ouve o choro do pequeno, ao longe. Quase hora de mamar... Podiam pegá-lo, ao menos. A panela de pressão faz um barulho enorme... Será que ninguém sabe que é preciso abaixar o fogo? Passa o largo pente de madeira pelos fios negros, ensopados. O espelho agora reflete uma palidez limpa, e isso a agrada mais. Já tem a expressão mais descansada, ensaia sorrir de prazer. Está fresca. De um frescor que durará apenas alguns minutos, mas tudo bem. Passa um brilho rosado nos lábios, e faz biquinho, flertando consigo mesma. A TV está ligada no volume máximo. Será que são surdos? É o programa de esportes. O telefone toca insistentemente. O marido grita ao filho que atenda. - É pra mãe! - Assim fica impossível se alienar... Está pronta, e passaram-se apenas quinze dos vinte minutos com que se presenteia todo dia. Que fazer dos outros cinco? Não deve desperdiçá-los. Olha em volta, não há livro algum pra ler. Senta sobre a tampa do vaso sanitário, encosta a cabeça no azulejo frio. Fecha os olhos. Conta até sessenta. Mais uma vez. E mais uma. Faltam só dois minutos. Cochila. Acorda, sobressaltada. Batem à porta.
- Tem roupa pro tintureiro?
Ergue-se, assustada.
- Não!
Seus vinte minutos se foram. É o limite. Mais que isso, seria luxo excessivo. Nem tem tempo de abrir a porta, porque o marido já o fez. Tem o hábito de abri-la por fora, com a chave do carro. Tão respeitador... O filho despenca banheiro adentro, desesperado pra fazer xixi. O bebê chora. Ela corre, pra lhe pegar. Se veste rapidamente. Dispensa o tintureiro. Desliga o fogo. Tira o fone do gancho. Senta-se em frente à TV, e coloca o bebê no peito. E tenta ainda se manter um pouco alienada, enquanto o bebê mama e o marido, inconsolável, lhe pergunta - "Por quê?, meu Deus! Por quê tem que demorar tanto no banho?"
Não vai lhe responder...


Beijo!

Analú

terça-feira, 6 de novembro de 2007

XII - Como Recolher Ossos? (Ou: Algumas Formas de Fazer Contato Com Sua Alma)

A princípio, só o fato de ler as histórias e pensar um pouco sobre elas já é recolher ossos. Naturalmente elas vão te reportar a situações que você viveu, às saídas que você achou para os seus problemas, a sentimentos que você nem ao menos compreendeu, a emoções que você sepultou. Lendo as histórias e pensando sobre elas você vai se “reconstruindo”, e tem a chance de relembrar do que te faz sentir-se viva. E de aprender a reagir de forma diferente em situações que te machucam, não se machucando mais ainda. Mais do que isso, tem a chance de identificar quais são essas situações, porque, muitas vezes, varamos nossos dias tão envolvidas em tarefas rotineiras obrigatórias, que “passamos por cima” de nossos próprios sentimentos. Seguimos, como máquinas, “à la zumbi”, como diz Clarissa, atendendo às necessidades de todos e negligenciando as nossas, e nem temos tempo de avaliar, ou de sentir profundamente o que estamos sentindo. Talvez seja por isso que, muitas vezes, repentinamente, uma palavra torta, um olhar enviesado, uma tola malcriadeza de filhos adolescentes tem um efeito bombástico, detonando em nós crises de choro que surpreendem a todos que estejam nos observando. “Afinal, não era motivo pra tanto...”
É claro que mesmo um observador desatento pode perceber, nesses momentos, que você está se rebelando por tudo o que tem passado, não apenas pelo que aconteceu naquele instante.
Lembro-me de uma situação que vivi em que ficou mais do que evidente que minha reação exagerada a uma bobagem momentânea na verdade foi uma explosão de sentimentos represados, que se aproveitou de um pequeno detonador para poder acontecer.
Meus dois filhos estavam numa idade difícil e eu vinha encontrando dificuldade para que me escutassem. Meu relacionamento com meu marido sempre foi complicado. Eu me abandonara, cuidando de tudo e de todos, e tinha pouquíssimos momentos de prazer. Não ficava comigo mesma nunca. Os meninos tinham mania de brincar com uma mini bola de futebol muito leve e macia em minha sala, que não é nada grande. Aquilo me irritava profundamente, mas eles eram surdos aos meus pedidos de que parassem. Certo dia, eu estava atravessando a sala, e, do corredor lateral, que dá acesso à cozinha, a pequena bola veio com toda velocidade e bateu bem no meio da minha testa. Claro que por ser inofensiva, não me machucou, mas me pareceu uma agressão tão grande, por ser a gota que faltava para que o copo transbordasse, que me pus a chorar como se estivesse gravemente ferida. Os meninos ficaram, a princípio, apavorados, mas quando perceberam que nada real havia acontecido, acabaram rindo de mim, sem compreender o exagero da minha reação. Mais tarde contaram ao pai o escândalo que eu havia feito por algo tão tolo!
Uma crise de choro detonada por qualquer motivo sempre traz junto as lembranças de nossas frustrações, de nossos desejos não realizados, de nossos sentimentos de auto-piedade, e de tudo aquilo que engavetamos para prosseguir em nosso dia-a-dia sem maiores abalos ou rupturas.
Durante minha infância e adolescência, enquanto morei na casa de meus pais, lembro-me que minha mãe sempre interpretava minhas crises de choro como um sinal de que “eu não estava normal”, e isso me magoava profundamente, porque eu sentia que estava apenas extravasando sentimentos que não pudera manifestar de outra forma, o que me ajudava a me conhecer. Mas isso sempre era motivo de críticas.
Depois de adulta, descobri que conseguir expressar os sentimentos é altamente saudável, funcionando, inclusive, como um preventivo contra a depressão. Uma tristeza vivida não se transforma em depressão. Cumpre seu ciclo, e se vai. E percebi com tanta clareza o grande serviço que essas crises de choro me prestavam, trazendo à tona sentimentos profundos, que aprendi até mesmo a manipulá-las, usando algum detonador que eu sabia que surtiria efeito. Muitas vezes, querendo me livrar de alguma angústia que a mim mesma não estava clara, fui até uma locadora de vídeos e procurei algum filme que sabia que mexeria com meus sentimentos. Assisti sozinha, à vontade. Era fatal. O filme retratava situações que me reportavam à minha própria vida, alguma cena mais emocionante me trazia lágrimas aos olhos e, quando percebia, já estava fazendo uma verdadeira catarse da minha angústia. Junto com o choro vinha tudo, e eu aproveitava a oportunidade para encarar minhas frustrações de frente e tentar descobrir formas de saná-las. Momentos em que choro são momentos em que posso dizer que converso com minha alma. Ou que recolho ossos, para depois tentar encontrar que música cantarei para reanimar meu esqueleto já montado.
Outra forma de recolher ossos é criar, dedicar-se ao que mais gosta, produzir arte, seja ela qual for. No meu caso, sei que escrever é a chave. Você tem que descobrir o seu próprio caminho. Dedicar-se a algo de todo coração, entregar-se à tarefa de corpo e alma, é um ato de introspecção que, com certeza, te colocará em contato com você mesma.
Mulheres sabem disso intuitivamente. Desde muito pequenas há atividades que despertam nossa curiosidade, nos atraem e nos encantam, sem que fiquemos racionalizando muito a esse respeito. Por um longo período, quando eu ainda era uma criança, um de meus irmãos montou uma fábrica de bolsas e cintos de couro no salão de nossa casa. Eu e minhas irmãs simplesmente enlouquecíamos olhando os materiais, catando sobras e inventando nossos próprios acessórios! A sensação de ter criado com nossas próprias mãos peças que depois até fariam sucesso entre nossas amigas era algo nem de longe comparável a comprar um acessório pronto, em qualquer loja! Muitas mulheres que conheço usam, intuitivamente, o artesanato como uma forma de terapia, mesmo que com isso não ganhem qualquer dinheiro. Estar totalmente absorvida numa atividade de que gostamos muito é uma das formas de “voltar pra casa”, reencontrar-se consigo mesma.
Há pouco tempo vi uma entrevista de Maria Rita, a filha de Elis Regina, no programa do Serginho Groissman, onde ela relatou, com muita simplicidade, que, desde que engravidou de seu filho, há três anos, faz e desfaz um pequeno pedaço de crochê, sem o objetivo de terminar o trabalho, apenas por fazer. Interessante que ao falar sobre isso ela parecia não saber expressar exatamente o porquê da coisa, e talvez ela mesma achasse “esquisita” tal dedicação a algo que nunca se transformaria em nada. Acredito que toda mulher saiba o que é isso. Quem aprendeu, desde cedo, a tricotar ou crochetar, sabe o quanto é prazeroso enquanto estamos totalmente envolvidas com nossas agulhas e linhas, vendo o movimento de nossas mãos fazer aquele pequeno pedaço de arte crescer! Tão prazeroso, que, muitas vezes, pouco importa se o resultado final será bom ou não! Ao assistir essa entrevista lembrei das inúmeras blusas de lã que comecei a tricotar no começo do inverno, para, com a chegada do verão, acabar dando aquele pedaço de blusa para alguém que quisesse terminá-la! E de um pedaço de tricô que fiquei tricotando e desmanchando enquanto ficava ao lado do meu pai, em seu último mês de vida, dentro de um hospital. E da enorme quantidade de caixinhas de madeira que comprei e decorei com o intuito de vender, sem nunca conseguir, o que acabava não me frustrando, porque, no fundo, sabia que estava preservando a saúde da minha psique, fazendo algo de que gostava. E tantas coisas mais...
Aquilo de que você gosta a ponto se envolver e esquecer-se de tudo o mais por algum tempo; aquilo que te faz se interiorizar, ficar totalmente absorvida e que você percebe que te “reabastece” para enfrentar novamente suas atividades rotineiras, merece sua total atenção.
Clarissa diz que “voltar pra casa” é fundamental para sua saúde física e mental. E que deve ser algo disciplinado, cuja freqüência será determinada pelo seu ritmo de vida. Você deve sentir quantas vezes por semana, ou por dia, deve parar para se reabastecer. E esse deve ser um momento respeitado por todos. Você precisa poder pegar suas coisas, ir para o seu canto, dizer “tchau, estou indo”, e as pessoas precisam saber o que isso significa. Que você quer estar consigo mesma e quer que a respeitem. Logo todos notarão que você volta de lá bem melhor, e ficarão felizes com isso.
No próximo post vou falar sobre “O Capote Expiatório”, um relato de Clarissa que me inspirou a sugerir a você uma outra forma de “remontar seu esqueleto”.

Beijão!

Analú