segunda-feira, 27 de julho de 2015

Para que NÃO serve um professor de filosofia? - 1

    

 

           














                                            Conversássemos aqui sobre o papel do professor de filosofia, certamente este texto se prolongaria indefinidamente. Idealmente todo professor deveria pensar constantemente sobre isso, pois se essa postura reflexiva é fundamental no exercício de qualquer profissão, que dizer no magistério? Por mais que desejemos acertar sempre, certamente erraremos muitas vezes, porque lecionar é experiência, aprendizagem contínua, e errar faz parte do processo. Mas, se pudermos, antes de entrar de cabeça nessa aventura de infinitas possibilidades, eliminarmos em nós comportamentos às vezes herdados de nossos professores - até por admirá-los muito -, e que podem ser considerados erros graves, acredito que estaremos começando com alguma vantagem. É essa a contribuição que pretendo dar aqui. Apontar posturas relativamente frequentes que, ao menos a meu ver, não deveriam ser adotadas por quem pretende se dizer professor.  

              Por ser recém-formada, é na posição de aluna, com experiências ainda frescas em mim, que relato aqui algumas situações que minha turma viveu que, sinceramente, me provocaram uma enorme tristeza, pelo tanto que as percebi deletérias para os alunos em geral. Creio que ao me reportar a situações reais possa fazer com que você que está me lendo chegue junto comigo à resposta da minha pergunta inicial.

             Vamos lá.

            Primeira semana de aula. Estávamos todos um pouco assustados, porque, apesar de muitos de nós já terem passeado por textos filosóficos, passeios não são mergulhos profundos e não tínhamos o ouvido treinado para aulas com tantos termos novos, tantas questões instigantes, tantas novidades, enfim. Não conhecíamos os professores e havia uma dificuldade real na compreensão de algumas aulas expositivas, e uma natural timidez para nos aventurarmos a perguntar. Um dos nossos professores nos perguntou por que estávamos ali. Por que resolvêramos cursar filosofia. Respondi, tímida, mas prontamente, que, de minha parte, era porque eu desejava aprender a filosofar. Recebi de volta um sorriso um tanto quanto zombeteiro que se compadecia da minha ingenuidade e me dizia claramente que minha pretensão estava acima do desejável para uma simples mortal. Naquele momento ele se esforçou por nos fazer entender que faríamos um curso de história da filosofia, e que isso já estava de bom tamanho. Creio que não só eu, mas a grande maioria da sala, saiu dali, naquela noite, um tanto quanto desvitalizada.
            
            Algum tempo depois um outro professor colocou-se precocemente à disposição para atender alunos que tivessem interesse em fazer iniciação científica. Animada, já com algo em mente, fui consultá-lo. Ele me perguntou se eu já tivera tempo de me apaixonar por algum filósofo e eu, realmente, não tivera. Mas eu tinha um objeto de estudo. Uma questão da atualidade que me intrigava. Ele me elucidou, então, que as coisas não funcionavam assim na universidade. As minhas questões sobre o mundo não interessariam a ninguém. Para escrever algo sobre filosofia eu precisava estudar um autor já consagrado e escrever sobre o que outros autores diziam sobre ele. Eu teria o papel de uma compiladora de teses alheias. E nenhum orientador aceitaria uma pesquisa que já não tivesse uma bibliografia a ser consultada. Ou seja: o valor do ineditismo era nulo. Gostaria de não criticar o professor nesse caso, pois ele estava em um sistema que só lhe permitia isso. Mas ele era, sem dúvida, peça importante na manutenção de tal sistema restritivo. E peça bem azeitada... Guardei meu embrião de tese em algum lugar de mim que nem sei e fui pra casa, mais uma vez, decepcionada.
            
          Seguiram-se outros inúmeros episódios similares que não vou contar aqui para não me estender demais. A princípio, quis me iludir imaginando que nos tratavam dessa forma por sermos iniciantes. Mas, enquanto estudava o que os filósofos consagrados pensaram, me iludia, imaginando que, em algum momento, teríamos chance de ensaiar algo realmente filosófico. Até que entendi que a intenção do curso não era essa. Havia um esforço coletivo para que nos convencêssemos de que não seríamos capazes disso.
           
        No último ano, inconformada, minha equipe abraçou uma ideia para um seminário de didática específica. Fizemos uma apresentação sobre um texto de Gonzalo Armijos Palácios, um filósofo equatoriano da atualidade: De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Nosso seminário abordou exatamente a questão da impossibilidade do aluno de filosofia filosofar. Expusemos as ideias de Palácios, manifestamos nossa própria insatisfação e reivindicamos nosso direito de pensar. Nosso professor interpretou o que fizemos como "desejo de reconhecimento prematuro". Não... Nossa apresentação manifestava nosso desejo de ter espaço para produzir filosofia, ainda que rudimentar, e nos treinarmos para, talvez, em algum momento, produzir filosofia "de verdade", se é que se pode dizer assim. Mas ele estava tão domesticado pelo sistema que sua subserviência não permitiu que compreendesse nossa mensagem.
           
            Mais surpreendente ainda foi quando, ao sairmos da sala, conversei com um colega de classe que me disse discordar de nós porque "se quiséssemos criticar a universidade, que o fizéssemos fora dela"! O curso realmente conseguira convencê-lo de que nosso papel deveria ser sempre o de vira-latas. Se bem que amo vira-latas... :(
            
             Para finalizar, quero dizer que nossa turma começou com mais de 80 alunos e no último ano éramos 20. Os que se formaram junto comigo foram oito, se não me engano. E desses oito, apenas duas mulheres. Certamente algum professor argumentará que isso ocorreu porque "filosofia é para poucos", em uma perpetuação dessa ideia elitista de que é preciso ser genial para filosofar. Filosofia não é fácil. É preciso ter obstinação e muito amor. Mas, sinceramente, não sei em que grau essa evasão se deve mais à constatação pessoal de cada um de sua própria incapacidade ou mais a esse esforço permanente para nos fazerem crer que não podemos. O que sei é que um professor de filosofia não deveria jamais servir a essa triste causa, de convencer um aluno de que ele não é capaz. Aliás, professor algum deveria se prestar a isso.
            
PS - Enquanto isso, os que tiverem fôlego e conseguirem se submeter totalmente às regras, produzirão mestrados e doutorados e pós-doutorados mesclando com certa habilidade pensamentos alheios e replicando matérias para engordar o Lattes. Li, recentemente, que é impressionante a produção de lixo acadêmico da atualidade. Mas quem se submete tem mais chance de ser contratado. Interessante, não?  

                                                                                     Ana Lucia Sorrentino
                                                                                          27/07/2015