sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Meu presente de Natal - O Livro das Certezas



Dias atrás, lendo um artigo de Germano Xavier – O que você vai dar de presente neste Natal? - http://oequadordascoisas.blogspot.com/2011/12/o-que-voce-vai-dar-de-presente-neste.html  - comecei a viajar nessa ideia do livro como presente. Germano defende enfaticamente o livro como um dos melhores presentes que se possa dar, e, realmente, não há como negar isso. Sempre curto demais escolher a dedo um livro para dar a algum amigo querido, imaginando o quanto ele ganhará com isso, além do prazer da leitura.
E, então, pensando no livro que eu gostaria de dar neste Natal, e a quem eu daria, me ocorreu o quanto seria bacana dar um livro que tivesse um encantamento especial. E aí desandei a imaginar qual o melhor texto, o melhor autor, a melhor mensagem. Enfim, numa crise aguda de imodéstia, se seguiu um delírio:
Eu queria poder dar, de presente de Natal,  a todos os meus amigos... não... à toda humanidade, um livro. Um livro escrito por mim. 
Mas, pra que eu pudesse escrever esse livro, antes Papai Noel teria que me presentear com um dom. O dom de saber escrever palavras mágicas que devolvessem a fé às pessoas.
Eu escreveria, então, O Livro das Certezas.
Porque, mulher  feita, já tive tempo suficiente para concluir que talvez aquilo de que mais somos carentes é de ter alguma certeza nessa vida.
Se Papai Noel me agraciasse com esse divino dom, eu escreveria um livro que, ao ser folheado,  já trouxesse algum alento ao leitor. Que seu simples manusear, seu cheiro, o passar dos dedos por sobre a capa em relevo, o tatear da textura do papel, o correr dos olhos pelas letras miúdas, já o acalmasse, como um bom colo de mãe.
E que, ao escolher pequenos trechos, talvez aleatoriamente, o leitor pudesse se deparar com afirmações dignas de uma boa e sábia avó.
Mais ou menos assim.
Que ao feto, ainda no ventre da mãe, eu conseguisse dar a certeza de um nascimento tranquilo, de muito leite do peito, de um berço quentinho e muito, muito carinho. A certeza de poder vir sem medo, porque o mundo é um lugar seguro, e pais são sempre amorosos.  
Que à criança que começa a correr pelos quintais da vida eu desse a certeza de um caminho sem pedras traiçoeiras, de uma infância feliz, de um adolescer sem vícios, de um amadurecer sereno, de uma velhice saudável.
Que a todo ser humano eu pudesse dar a certeza categórica de que laços de sangue são garantia de se  pertencer a um grupo fiel, de jamais se sentir um patinho feio, de ter apoio em momentos cruciais, e nunca ter que se defrontar com a extrema solidão.
Que aos apaixonados eu  conseguisse dar a certeza da reciprocidade. Que ao romântico que ao deitar, antes do sono, pensa no ser amado, eu desse a certeza de que o ser amado também o tem no pensamento.
Que ao fiel eu desse a certeza da fidelidade.
Que ao estudante eu pudesse afirmar com toda certeza do mundo que com foco e dedicação é possível superar todos os obstáculos e ter emprego, comida no prato, cultura, lazer e, enfim, felicidade.
Que ao jovem que começa a se jogar no mundo eu desse a garantia de que vale a pena ser honesto, não se vender ou corromper.
Que ao trabalhador  eu pudesse dar a certeza de justa recompensa, de sono tranquilo e de dignidade.
Que àquele que se esforça para fazer as coisas muito bem feitas eu pudesse dar  a certeza de sucesso e de um reconhecimento maior do que o daquele que faz as coisas apenas por fazer.
Que àqueles que cuidam bem da saúde eu pudesse dar a certeza de agradável longevidade.
Que a pais zelosos eu desse a certeza de uma velhice feliz, ao lado de filhos e netos cuidadosos.
Bem... são tantas as certezas com que eu gostaria de presentear a humanidade, que talvez esse livro precisasse ter um número infinito de  páginas... Ou não.
Talvez pudesse ser um livro de uma página só. Uma página só, com uma só frase: no final da contas, tudo vai ficar bem... E que junto à frase fosse meu sorriso, meu carinho e meu abraço caloroso e demorado, porque se há uma coisa de que tenho certeza nessa vida – e aqui nem preciso recorrer a Papai Noel - é de que um bom abraço amoroso pode curar muitas feridas.

Um Feliz Natal a todos, e que em 2012 possamos ser o que de melhor há em nós! 

Beeijos!!! 

Analú :)

domingo, 13 de novembro de 2011

Estudo sobre: NIETZSCHE, FRIEDRICH. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral


Estudo sobre:
NIETZSCHE, FRIEDRICH. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral  (Aforismo 1).
In: Obras Incompletas. São Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1978. 

Introdução
Debruçando-se sobre  Sobre Verdade e Mentira No Sentido Extra-Moral qualquer leitor, por mais desatento que seja, perceberá, de imediato, o porquê de Nietzsche ser conhecido como o filósofo que construiu sua filosofia à marteladas.   
Sobre Verdade e Mentira se compõe de uma sucessão de marteladas certeiras sobre a ordem estabelecida de sua época. Crítico impiedoso da moral vigente, em pleno pessimismo romântico, ao mesmo tempo em que coloca em dúvida a validade da linguagem como expressão adequada de todas as realidades e zomba da pretensão humana de fazer com que o mundo caiba em metáforas, é através da linguagem e das metáforas, abundantes em seu texto, e que usa com maestria, que exprime sua indignação. A linguagem é, sem dúvida, o martelo de Nietzsche.
Ao longo da leitura, deparando-se com enorme quantidade de alegorias e citações que acabam por emprestar ao texto um caráter enigmático, e cujo significado não parece importar a Nietzsche deixar muito claro para o leitor, este pode, em alguns momentos, sentir ímpetos de investigar a fundo a origem de cada imagem, tão instigantes que todas elas são.
É assim que se dá quando lemos “para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing” e nos sentimos tentados a investigar toda a vida de Lessing para descobrir qual o motivo de seu filho ter sido obrigado a fugir rapidamente. Ou quando lemos: “repousa o homem, na indiferença de seu não-saber e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre” e nos atrevemos a elucubrar sobre a possibilidade do tigre representar os perigos aos quais o homem fica à mercê por ser ignorante, mas acabamos por nos curvar à nossa própria ignorância, imaginando ser a imagem do tigre proveniente de alguma obra literária lida por Nietzsche, uma vez que sabemos de sua imensa erudição. E quando ele cita as figuras sonoras de Chladni,  ou árvores que podem falar como ninfas, ou um deus que, disfarçado de touro, sequestra donzelas,  e tantas outras citações que provocam nossa curiosidade.
Embora com olhar extremamente crítico e analisando as ilusões humanas com ácida seriedade, Nietzsche não se furta a ser engraçado, como quando usa a expressão Cucolândia das Nuvens  ao final de um longo raciocínio em que conclui que o conhecimento não se constrói sobre a essência das coisas.
Em alguns momentos, durante a leitura, sentimos a forte presença do filólogo, como quando Nietzsche se estende em análises pormenorizadas sobre a criação e o uso das palavras e sobre a precariedade dos conceitos. Em outros, prevalece o filósofo, que escarnece da natureza mentirosa de sua espécie. Seja lá em que momento for, acima do filólogo ou do filósofo, está o homem Nietzsche, cuja característica mais marcante parece ser a coragem. Coragem de enxergar e de falar sobre o que vê, sem receio da crítica, sem uso de eufemismos, de forma incisiva e até trágica.  

Principais ideias do texto
Nietzsche inicia Sobre Verdade e Mentira imaginando uma fábula criada por alguém que estivesse em algum ponto longínquo situado fora da Terra, observando- a  e aos homens, com distanciamento suficiente para perceber com clareza a pequenez do ser humano diante da imensidão do universo.
Mais de cem anos antes, em Micromégas, Voltaire conceberia um extraterrestre com inteligência superior visitando a Terra e percebendo os absurdos humanos. Quase cinquenta anos depois, em Metamorfose, Kafka escreveria sobre um homem repentinamente transformado em inseto, vendo a própria família através do olhar de um inseto.
É de se imaginar que ao longo de toda a história da Filosofia pensadores fizeram e farão esse mesmo exercício: tentar escapar da perspectiva limitada de homem e do relativismo ao qual, afinal de contas, estamos fadados, para enxergar mais nitidamente o ser humano.  
É esse o mote que Nietzsche usa – um observador longínquo - para começar a falar sobre a insignificância cosmológica e cronológica da humanidade. Para ele, não há criação, o Universo sempre existiu e sempre existirá e o homem está aqui em caráter passageiro, sem qualquer missão mais importante que a de sua própria sobrevivência.  Vaidoso, o homem – em especial o filósofo - supervaloriza o conhecimento e ignora a superioridade da natureza sobre a inteligência humana, chegando à extrema ingenuidade de se acreditar centro do universo.
Para Nietzsche, o intelecto do homem, o mais delicado e perecível dos seres, o engana sobre seu próprio valor, uma vez que nada mais é do que um instrumento que o ajuda a manter-se vivo,  assim como chifres ou presas aguçadas garantem a sobrevivência dos animais. Se Pascal (1623-1662) se referira ao homem como um caniço pensante, o ser mais fraco da natureza, mas cuja dignidade residia no pensamento, Nietzsche iguala os homens aos animais e parece fazer pouco caso desse pensamento, atribuindo-lhe um caráter enganador que, pela dissimulação, conserva o indivíduo.  Seguindo essa linha de raciocínio, Nietzsche conclui que o homem, tendo na mentira sua garantia de sobrevivência, haverá de tornar-se mestre nisso. Regido pela vaidade, o homem vive mergulhado no sonho e na ilusão, à margem da verdade, e nenhum sentimento moral  o impede de enganar e deixar-se enganar o tempo todo. É ignorante e ignorante quanto à própria ignorância. 
Questionando se em algum momento o homem seria capaz de perceber-se completamente, como se estivesse em uma vitrina iluminada, Nietzsche afirma que o homem não sabe nada sobre si mesmo e seu orgulho o faz negar até sua natureza fisiológica, mantendo-o tão alheio à condição humana e tão imerso na ilusão, que vive à mercê dos perigos da vida.
Por precisar viver socialmente, até para manter-se vivo, o homem firma um tratado de paz baseado em leis criadas por ele mesmo, em que se estabelece o que é verdade e onde a linguagem terá papel fundamental nomeando as coisas e determinando uma uniformidade válida para todos, e ainda pretendendo que a vida caiba dentro dessa representação. Conclui-se daí que tudo é criação do homem e que este quer viver na ilusão.
Afinal - questiona Nietzsche – é a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? E ele mesmo responde, afirmando ser impossível à linguagem captar as coisas em si. Ela serviria apenas pra designar as relações das coisas com os homens e isso se daria através do uso de metáforas. Atribuímos um nome a algo e, num movimento circular, determinamos que doravante esse algo será o nome que lhe atribuímos e passamos a crer nisso como verdade. A linguagem simplifica tudo, desprezando a riqueza das diferenças individuais. A desconsideração do individual nos dá o conceito, que não consegue abarcar totalmente o real.
A verdade seria, assim, figuras de linguagem que pelo longo uso e aceitação geral se solidificam, mas que não conseguem pintar um quadro da realidade que não seja pálido. Ao esquematizar o mundo, o homem o empobrece, pois o grande espetáculo da vida não cabe nas palavras.
E onde está, aqui, o impulso à verdade? – continua questionando Nietzsche.
A sociedade estabelece que dizer a verdade é mentir segundo as leis que ela mesma cria. O homem aceita as regras do jogo e ao se perceber aceito pela sociedade crê estar com a verdade. Sente-se honrado e digno de confiança e passa a desprezar as próprias impressões e intuições. É aí que o homem se diferencia do animal. E é através desse processo que cria um mundo que dita regras, que funciona baseando-se em hierarquias em que alguns menos afortunados subordinam-se a privilegiados, em que limites são impostos de forma rígida e em que o homem “honesto” é aquele que aceita sem questionamentos as regras do jogo.
Nesse ponto, há um retorno à questão do relativismo. Uma vez que o homem só consegue assimilar algo das coisas através de seu próprio entendimento, ele tem, em sua visão limitada, a ilusão de que as coisas são somente o que ele consegue captar delas. Tenta expressar isso em palavras e impõe as palavras como verdades, como se fossem as coisas em si. O homem diminui o mundo e a vida para que o mundo e a vida caibam dentro do pequeno quarto do seu entendimento. Seu desejo de verdade se dá em um sentido restrito. O homem quer e aceita as verdades que lhe sejam agradáveis. Ele fica feliz quando falsas verdades lhe fazem feliz. É aqui que percebemos claramente o envolvimento de Nietzsche com as ideias de Schopenhauer1. Porque  ele conclui que essa propensão do homem a deixar-se enganar encontra na arte a escapatória para  um mundo regular e rígido esquematizado a partir de uma realidade nada regular ou rígida. 
1) Filósofo alemão do século XIX (1788-1860), Arthur Schopenhauer  via a arte como um dos caminhos para o homem escapar da vontade e da dor que ela acarreta. A arte representaria um paliativo para o sofrimento humano.  Schopenhauer influenciou fortemente vários pensadores, entre os quais está Nietzsche.
Novamente a metáfora, agora manifesta no mito e na arte, entrará na vida do homem como uma possibilidade de aproximá-lo da felicidade.
Por fim, Nietzsche contrapõe o homem racional ao homem intuitivo, não defendendo, a princípio, um extremo ou outro, mas considerando o desejo de ambos de ter domínio sobre a vida. É então que demonstra toda a sua admiração pelo mundo antigo grego, citando a Grécia antiga como um exemplo de civilização em que o homem intuitivo e a arte se impõem, resultando em algo favorável à felicidade.
            Quanto ao homem racional, governado por conceitos, Nietzsche  sugere que, perante a infelicidade, só lhe resta mesmo o disfarce, no qual já é mestre.

            Últimas Considerações
            Ao terminar de ler Sobre Verdade e Mentira, é inevitável comparar Nietzsche a outros filósofos. E começamos a entender o porquê da enorme importância de sua filosofia no mundo todo.
            Platão olhou para cima e convenceu-se – e a outros – da existência de um mundo ideal, onde a virtude negaria nossa natureza material.  Descartes negou-se a ir à festa, fechou-se num quarto, se persuadiu de que tudo poderia ser uma grande  mentira e quis descrever a festa da vida sem estar nela. Nietzsche, longe de olhar para o céu ou de  negar a matéria, parece ter ido à festa e ter olhado bem dentro dos olhos de cada convidado, radiografando a alma humana. Detectou aí uma moral negligente, cujas intenções caminham muito longe de qualquer rota que possa levar à verdade.
            Husserl e Merleau-Ponty, depois de Nietzsche, com a fenomenologia, combateram, como ele, a ideia do homem ser o umbigo do universo e a pretensão de se ter uma visão de Deus. Também como ele,  sugeriram que olhássemos a nós mesmos com certo distanciamento, para que pudéssemos nos enxergar de forma mais realista. Perceberam que a vida se dá na relação e sempre dentro do mundo. Romperam com o pensamento clássico e entenderam o valor fundamental da arte para a vida humana.  
            Muito provavelmente, hoje, nesse exato  momento, há no mundo um sem número de filósofos lendo Nietzsche e se impressionando fortemente com suas ideias e com sua coragem. Criando sua própria filosofia, tendo-o como referência e inspiração.               
E, parece-me, é exatamente assim que deve ser.   

Ana Lucia Sorrentino  

 

domingo, 25 de setembro de 2011

Ilusões


            Estanquei alguns segundos em frente ao mural onde se lia: “Concurso de Poesia Fábio Teixeira”. A cena veio inteira: trinta anos antes, a menina que eu era, subindo ao palco, emocionada, pra receber um pequeno troféu por “Baú de Ilusões”.
A foto, no jornal da faculdade, com a melhor amiga, também vencedora, hoje já totalmente desbotada.
            Alguns versos, singelos, me vieram à mente, como se sendo escritos naquele momento:

            Nessa fragilidade de ser humano sensível
            fica, aos olhos de quem me veja, visível,
            um certo tremor, assim como o da paixão.
            É que eu vejo o baú quase cheio
            e me vem então um receio
            de nalgum dia não ter mais
            onde colocar tanta ilusão.

            Nos versos finais, meu consolo era a minha crença de que, nesse mundo, pra quem quer que estivesse vivo, um baú de ilusões nunca teria fundo.
           Entrei na sala de aula levando a lembrança da poesia e, com ela, o rolo do filme da minha vida, que se desenrolou ali, na minha frente. As ilusões que eu colocara naquele baú sem fundo provavelmente haviam se desvanecido pelo tempo, tão etéreas me pareceram naquele momento.
            O olhar pra trás não durou mais que um fiapo, tão desimportante me parece o passado agora. O que sobra dele é apenas o que de fato interessa: aquilo que sou.
            O canto de Cazuza me vem forte, como sempre, quando penso no tanto que nos iludimos, o tempo todo, em relação a tudo:
           
            O nosso amor a gente inventa pra se distrair e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu.

            Acho mesmo que a garota de 18 anos tinha alguma sabedoria...
            Porque segui pela vida enfiando ilusões nesse baú.
            Que importa se elas saíram por baixo, se se perderam no ar, se hoje nem ao menos conseguem ser lembradas com nitidez?
            O que importa é que as tive.
            E quero aqui confessar que mantenho meu baú bem guardado, e continuo a usá-lo.
            E que o que me diferencia da menina de trinta anos atrás, é apenas o tanto de lucidez que hoje tenho em relação à natureza das ilusões que coloco ali. Hoje sei que, assim como Cazuza inventava seu amor, sou eu mesma que invento minhas ilusões. Deliberadamente. E é delas que me alimento. Mesmo sabendo de antemão que quando se forem, talvez eu vá imaginar que nunca tenham existido.



Analú

Imagem: www.deviantart.com

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Não sei do amor



Eu nunca sei
- e sei que jamais saberei -
que espécie de amor seria,
não abortado fosse,
o amor que, por covardia,
como engodo abortei.
E se a minha profecia
não se auto-cumprisse
e o verdadeiro engodo
fosse a minha covardia?
Que amor eu pariria?
Que espécie de amor seria? 











Analú 

Imagem: www.deviantart.com

sábado, 9 de julho de 2011

Quando Eu Choro














Quando eu choro,
ele finge que não vê.
Mesmo que esbarre em mim,
mesmo que perceba algo,
me evita, olha por tudo em volta,
e simplesmente não vê.
É como se a água em meus olhos
espelhasse sua enorme culpa.
É como se eu fosse o reflexo
de todo mal que ele pode fazer.
Dói demais nele
enxergar em mim a dor que pode causar.
Então, quando eu choro,
ele finge que não vê.
Talvez nunca lhe tenha ocorrido
que eu possa chorar por mil coisas
que não lhe dizem respeito.
Nunca, ao me ver chorando,
imaginou que eu descascasse cebolas
ou que sentisse dó
de alguém tão mais triste que nós.
Ele nunca conseguiu se excluir de mim.
Crê que todos os meus motivos
se resumem nele.
Crê que só sinto,
se através dele.
Crê, enfim,
que meu mundo é ele.
Quase, confesso.
Mas podia perceber, se quisesse,
que às vezes choro por algo muito bonito,
que às vezes choro por uma história alheia a nós,
que às vezes choro de tanto rir,
que às vezes choro de amor...
Ele podia - eu creio - perceber
que às vezes gostaria de ter meu choro
compartilhado,
mimado, acarinhado.
Ele podia se colocar de lado,
se ausentar de mim,
e ver no meu chorar
uma simples explosão de sentimento,
um extravasamento vulgar.
Mas, não...
Quando eu choro,
ele se vê em mim.
Sofre como eu, talvez até mais,
acreditando que se não fosse ele,
eu estaria rindo.
Como o aborrece profundamente
meu choro sentido, meus olhos inchados!
Quando eu choro,
é como se o estivesse agredindo a pauladas,
querendo matar meu único e cruel motivo.
Tão tolo ele é...
Quando eu choro,
ele finge que não vê.
Sente-se acossado, sabe-se lá o quê...
E eu já não choro como antes.
Aquele chorar encharcado,
que traz uma canseira tão gostosa,
um vazio tão calmante,
um sono profundo.
Hoje, eu tento racionalizar.
Eu tento entender.
Eu tento mudar de lugar,
ver as coisas por outra ótica.
Hoje eu tento respirar fundo, relaxar.
Eu tento.
E choro porque me magoa
tentar com tanto afinco esconder o meu chorar,
uma coisa às vezes tão boa...
Eu queria que ele percebesse
com a mesma intensidade
quantas vezes sorrio por sua causa,
quantas vezes acordo só para vê-lo,
quantas vezes cresço para acompanhá-lo.
Eu queria que ele percebesse
que muitas, muitas vezes,
ele é meu bom motivo pra ser alegre.
Eu queria que ele percebesse
quantas vezes meus gestos doces
são agradecimentos.
Parece ser tão difícil...
Eu queria que ele percebesse
que às vezes choro pra ele,
que às vezes meu choro
é o chamado que não consigo fazer com palavras.
E me deitasse em seu colo,
dissesse coisas tolas e leves
e me fizesse saber que está ali.
Eu queria, simplesmente,
que ao pressentir o meu choro,
em lugar de fingir que não vê,
ele me olhasse e dissesse:
- Por quê?

Analú ( Alento, 2007)

domingo, 26 de junho de 2011

Escorro




















Estou aqui, inteira.
Dividida, subdividida,
tripartida,
projetada.
Líquida, transbordada,
escorrida.
Borbulho, cresço,
deslizo.
Me espalho,
invado,
penetro.
Umidade morna,
sem firme forma,
existo.
Tocável e intocada.
Um tudo,
e um nada.

Analú

















Crédito da imagem: http://www.deviantart.com/

sábado, 7 de maio de 2011

O Mundo

             Ainda menina mimada, pernas finas e um leve e ingênuo corpo de pura credulidade, vi o Mundo sentado num canto, como que me esperando, receptivo, e cedi à tentação: sentei no colo do Mundo. Embora agitada, e mal podendo me conter ali, tanta coisa a se viver, o colo que o Mundo me oferecia era tão confortável e caloroso, e sua aceitação de mim tão grande, que rapidamente me habituei a recorrer a seu aconchego sempre que cansada da agitação da Vida.
           Vez ou outra me esquecia de tudo o que não fosse Mundo. Recostava a cabeça em seu peito, sentia suas mãos firmes me segurando e chegava mesmo a cochilar, em total abandono.
           Com o passar dos anos, a certeza de que o Mundo estaria ali, me esperando, sempre que o procurasse, se consolidou e passei a ter nele meu porto seguro.
          Certa vez, mais encorpada, pés já tocando o chão, senti que talvez pesasse e causasse algum cansaço no mundo. Percebi uma tentativa dele em me acomodar melhor, como fora tão natural até então. Disfarçadamente, voltei-lhe a minha atenção.
          E pela primeira vez, aflita, percebi que o mundo respirava. Simulei cansaço e encostei a cabeça, como tantas vezes já fizera, em seu peito. E pude ouvir o bater acelerado do seu coração. Lembro-me de ter me sentido arrepiar. Por instantes, me falhou o ar. E fiquei quieta, sentindo o pulsar de um mundo que até então parecia estar ali apenas pra me acomodar. Olhos fechados, deixei-me arrebatar, horrorizada, pela incrível constatação de que o Mundo vivia, e talvez sofresse com minha lépida alienação. Senti raiva da Vida, sempre me ocupando e me envolvendo em suas tramas. Com certeza era dela a culpa de tamanha desatenção.
          Então não tive mais sossego.
          E se a qualquer momento o Mundo não mais quisesse me acolher? Sofri antecipando uma falta até doída da firmeza de suas mãos. Temi não mais poder sentir aquele respirar e o pulsar cadenciado do seu coração.
          E resolvi, intimamente, que seduziria o Mundo.
          Mas... tão pouco caso fizera dele, que o pobre se ressentira e agora meus esforços pra que se mostrasse eram vãos. O Mundo se fechara numa timidez crônica e percebi que teria que partir de mim o esforço pra uma aproximação. Não mais me joguei em seu colo com estabano de menina. Sentava-me de lado e, sempre que possível, buscava seu olhar. Em vez de apenas esperar que suas mãos me amparassem, passei a tocá-las carinhosamente. Vez ou outra, as mãos do Mundo respondiam ao meu toque com um leve tremor. Certo dia encostei meu rosto ao dele, senti seu calor e vi, claramente, o mundo corar. Noutra ocasião corri os dedos por seu peito e ele suspirou.
         O Mundo, em seus movimentos silenciosos, em sua relutância em se mostrar, se tornou um desafio... Que imensa vontade me dava de quebrar nossas barreiras, atingir o coração do Mundo e com ele namorar! Tive que ser paciente e ardilosa. Me mostrar para o encorajar. Aceitar sem julgar. E nunca, nunca, a seus pequenos arroubos de auto-exibição, me assustar.
         Aos poucos, fui ganhando sua confiança.
         Hoje, já consigo tocar o Mundo com mais intimidade. E embora ele ainda se retraia ao toque dos meus lábios, desconfio seriamente que o Mundo me deseje.
         Amo tanto o Mundo e seus mistérios que chego a sofrer de tanto amar...
         Nalgum dia ainda me embrenho por um desses labirintos da vida e encurralo o mundo num beco sem saída. Quero despi-lo e fazer com se mostre, sem pudor ou qualquer mágoa dos meus tempos de menina. Se bobear, ali mesmo, a céu aberto, me declaro apaixonada.
         Quero ver então se me vendo desarmada e atrevida, e me reconhecendo mulher feita, o mundo terá, afinal, coragem de me penetrar.



Analú

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Repercussão do Casamento Real - O que foi isso???

Vez ou outra, por considerar assunto de vital importância, escrevo combatendo a negação da realidade. E vez ou outra me vem a percepção do quão essa tarefa é complicada, tal o movimento contrário do mundo em que vivemos.


No último mês perdi a conta de quantas vezes me deparei com essa questão, pelo exagero e histeria que se criou em torno do casamento real.


Em alguns momentos quase cheguei a acreditar que todos os outros casamentos do planeta são irreais. E que, talvez, o príncipe e a princesa sejam feitos de alguma matéria diferente da nossa, sabe-se lá qual.


Às vezes, mediante alguns incríveis avanços tecnológicos, tenho a sensação de já estar vivendo no futuro. E, às vezes, por conta dessas atuações da mídia e da massa, que se deixa levar, me percebo em plena idade da pedra.


A quem já possa estar me acusando de amarga, estraga-prazeres ou coisa que o valha, aviso: sou uma incorrigível romântica, e a fantasia saudável é presença constante na minha vida. Acho mesmo que a fantasia nos preserva a sanidade.


O que questiono é esse empenho maciço em se alimentar a ilusão.


Num mundo em que até recém-nascidos já sabem que príncipes viram sapos e Cinderelas viram belas abóboras, tenta-se resgatar esses personagens de contos-de-fadas e, pior, com a evidente mensagem de que alguns seres humanos valem mais do que outros.


Como é que pode um selinho mixuruca entre um príncipe e uma princesa levar a multidão ao delírio? Vale mais o selinho do casal real do que o selinho do exausto trabalhador comum?


Me peguei indignada, nos últimos dias, percebendo que apresentadoras de TV mais do que vividas, falavam nisso como se fossem debutantes deslumbradas. Parece que ninguém escapou: jornalistas conceituados, psicólogos renomados, estilistas... O que foi isso?


Falou-se de tudo: da perda de peso da princesa, da calvície do príncipe, das férias de dois anos que ele pediu (!!!)... Costureiras brasileiras deliraram sobre como seria o vestido da noiva. Réplicas do seu anel foram vendidas a um Real no centro da cidade... que cooisa...


Houve um momento em que pude visualizar o casal real flanando sobre o globo terrestre, totalmente imune a terremotos, tsunamis, crises políticas e econômicas, doenças, traições...


Há tempos que percebo que quanto mais encaramos a vida como ela é e a aceitamos, mais chance temos de nos sentirmos felizes. Há tempos que vejo que quanto mais esperamos que nossa realidade esteja de acordo com os modelos ideais que nos são impostos desde que nascemos, mais quebramos a cara. Não acredito que pra se viver o amor plenamente seja necessário estar dentro daquele modelito de buquê de flores em datas predeterminadas, sexo com dia marcado, fidelidade obrigatória, cama de casal. E muitas vezes escrevo sobre isso, numa tentativa de mostrar às pessoas que somos todos seres humanos, e que, dentro dessa condição, podemos, sim, ser felizes. Sem espalhafato, sem grandes rituais, sem tanta necessidade de luxo material...


Acredito que o amor seja muito, muito mais que isso e muito, muito mais simples que tudo isso. Quanto mais apegados aos pré-conceitos, mais decepcionados ficamos. Forjamos nossa própria infelicidade, desenhando uma vida ideal que não conseguimos reproduzir em nosso cotidiano. Focados no que idealizamos e não conseguimos realizar, perdemos a riqueza da vida que passa, nos acenando com coisas lindas.


E então, um casamento real instaura uma campanha acirrada a favor de todas as ilusões possíveis e imagináveis, que, obviamente, não se tornarão realidade nem mesmo para o casal em questão. E parece-me que a coisa vai além disso. Planta-se no povo um sentimento de subserviência e distanciamento dos governantes interessante aos próprios governantes e só.


Belo desserviço prestado à humanidade...


A quem talvez, deslumbrado com as maravilhas que o casal real viverá até o fim de seus dias, esteja olhando com certo pouco caso pra sua própria vida sem glamour e pra seu companheiro falível, se é que minhas palavras valem algo, eu gostaria de dizer: esqueça essa bobagerada toda, pare de esperar o príncipe ou a princesa encantados, e olhe pro seu amor com amor de verdade, enxergando nele um ser humano cheio de imperfeições, mas que pode estabelecer com você a relação mais bonita, que é a de amor e cumplicidade. O resto é balela.






Analú

Crédito da imagem:
Froggie Pumpkin by *Diablomako
Deviantart

domingo, 17 de abril de 2011

Um continho - Memória

Desgraçadamente, pra ele, assim que a mãe de Memória viu seu choro sentido, ainda na mesa de parto, uma imagem forte da própria mãe lhe veio e, invadida por tão intensa recordação, deu-se a escolha: a menina se chamaria Memória.
Memória cruzou seu caminho num momento em que nada lhe ocupava a memória. Havia um vazio que devia ser preenchido e Memória, até pelo que representava, cumpria perfeitamente a função.
Memória entrou em sua vida, em seu corpo, em seu coração, em sua memória. Invadiu todos os cantos onde coubesse amor e plantou neles fortes sementes de Memória, cujas raízes se alastrariam e circulariam por seu sangue, vazariam por seus poros, floririam em seu sorriso, chorariam em suas lágrimas. Memória orvalhou sua ressequidão de lembranças. Escreveu em sua vida páginas e páginas de doces memórias. Ilustrou, coloriu, sonorizou, encantou. Memória se impregnou em sua memória.
Mas... como se houvesse esquecido algo nalgum lugar distante, num repente, Memória se foi. Queria buscar aquilo de que não se lembrava, mas que sabia existir. Tinha saudade do que não havia vivido. Vivera tanto e tão intensamente dentro da memória dele, que sua própria memória parecia haver se esvaziado. Sentia-se oca.
Então o oco era ele. O sangue parara de circular em suas grossas veias, agora murchas. Os poros haviam se fechado. O sorriso hibernava e, embora buscasse, não havia lágrimas para chorar.
Qualquer outra mulher, qualquer outro nome, talvez fosse possível esquecer. Mas, por ser esse o nome dela, algo lhe apontava que se a esquecesse, esqueceria de si mesmo. 
Agora, longe de Memória e sem saber como tirá-la da memória, segue errante procurando nalgum olhar algum encanto. E ora todas as horas por encontrar alguma doce menina que possa resolver a questão do excesso de Memória em sua memória.
Eis que nesse deserto por onde caminha, quase se arrastando, em condição de cactus, vislumbra algo como um pequeno oásis, com sedutoras promessas de saciar sua sede e de oferecer-lhe sombra. Aproxima-se, titubeante, e percebe um frescor que contamina. Encantamento no ar. O silêncio satisfaz, e a energia o envolve de tal forma, que, por instantes, parece ter perdido a memória.
Segue a pergunta, inevitável, e diante da resposta, a compreensão imediata da sensação de livramento: como é seu nome?
Como se houvesse acabado de nascer, ela responde, faceira: Amnésia. E o sorriso que vem junto promete.



Analú

terça-feira, 5 de abril de 2011

Você é um átomo de Urânio Enriquecido


Excetuando alguns poucos afortunados, a maior parte de nós vive presa em rotinas. Vamos quase todos os dias aos mesmos lugares, interagimos com as mesmas pessoas, executamos o mesmo tipo de tarefas. Apesar do bombardeio da mídia, a nossa vida acaba sendo feita daquilo que vivemos no dia-a-dia. O contato permanente com o mesmo contexto às vezes nos faz imaginar que o mundo é aquilo que vivemos, e só. E que somos aquilo que estamos manifestando momentaneamente, e só.

Dias atrás, ouvindo a explicação de um jornalista sobre a produção da energia nuclear, e os perigos que aí residem, percebi que somos exatamente como o átomo de urânio enriquecido, que, se bombardeado com nêutrons, libera uma quantidade absurda de energia, composta por substâncias inofensivas, mas também por outras extremamente perigosas.
Se pararmos pra pensar na infinita diversidade de seres humanos e práticas que existem no mundo, é quase inevitável chegarmos à conclusão de que somos, potencialmente, tudo.
Um tudo encapsulado numa cultura restritiva que teme se corromper caso manifestemos livremente nossas potencialidades. Alguns aspectos da nossa individualidade podem, sem dúvida, representar, para os amantes da ordem estabelecida, verdadeiros resíduos tóxicos que, provavelmente, como o plutônio-239, provocarão alguma espécie de lesão cancerígena em suas certezas.
Canso de ver gente adoecendo por negar os apelos da própria alma para se enquadrar em padrões aceitos pela sociedade.
Estamos habituados a seguir as instruções de um manual que cataloga seres humanos em categorias e determina quais os comportamentos adequados a cada uma delas.
Assim, consideramos normal afirmações taxativas sobre como é a mulher, a mãe, o pai, o filho...
Como o ser humano é muuuito mais do que essas descrições simplificadas, sua vida acaba sendo um eterno adequar-se ao restrito quadrado em que lhe é permitido atuar. Mas... e a vontade de escapar? Assim, escapamos às escondidas, e amargamos culpas eternas.
Fórmula perfeita para a infelicidade.
Como o embrião do pintinho, que, dentro do ovo, se alimenta da clara, estamos dentro de um ovo cultural, nos alimentando do sistema. E também alimentando-o. E nos pegamos, às vezes, querendo romper essa casca que nos tolhe os movimentos, para, enfim, nascer.
É claro que, vivendo em sociedade, temos que respeitar limites e tentar promover a harmonia. Estatelar o ovo no chão pra romper sua casca prematuramente pode resultar numa gema estourada e uma boa sujeira pra se limpar.
Mas... como esses artistas que pintam pequenas obras de arte em ovos, e, para esvaziá-los, furam cuidadosamente sua casca com uma agulha, você pode, com os instrumentos que tem, perfurar essa rígida camada cultural que te prende, pra pintar cores em sua vida. Há de entrar um pouco de luz nesse casulo e é grande a possibilidade de você sentir o frescor de um ar menos viciado.
Aproveite essa oxigenação e se aventure a perguntar a você mesmo o que te serve, o que te faz feliz. Ouça a resposta, e siga seu caminho, com autonomia.
Se percebemos que diferenças são saudáveis, se assumimos nossas particularidades, se vamos pelo caminho da auto-aceitação, a aceitação alheia acaba acontecendo. Quem se ama é muito mais amado pelos outros.
Sempre haverá quem te acuse, quem te olhe de soslaio, sempre haverá alguém pra apontar o quanto você é diferente, e tentar te causar algum mal-estar por isso. E dai? Se você se aceita, isso não deve ter grande importância. Como você já deve ter ouvido mil vezes por aí, nem Jesus foi unanimidade.
Às vezes, nesse mundo complicado, cheio de regras e dedos acusadores, tentando trilhar nosso próprio caminho a passinhos miúdos, nos sentimos pequeninos como uma joaninha. Mas, se estivermos com as idéias arejadas, podemos, como ela, ser vermelhos com bolinhas pretas, e encantar. E mais: podemos voar. ;)


Analú