segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Alerta aos jovens que pretendem ser médicos

   
  
 
                Alguns dias atrás, acompanhando um desses noticiários que só nos dão desgosto, surpreendi-me desgostosa além da conta. Três notícias consecutivas me deixaram tão, mas tão aborrecida, que de lá pra cá a ideia de escrever sobre isso vem me incomodando e, enfim, estou cedendo a ela. Porque, diante de alguns fatos que me levam a certas conclusões, mas contra os quais não sei como agir, o que me vem à mente é escrever. Talvez, escrevendo, eu consiga ao menos trazer à tona os absurdos que ficam camuflados no meio de tantos outros absurdos que vivemos no dia-a-dia como se nada fossem.
            A primeira notícia tratava de uma mulher que dera à luz dentro de um hospital público, no corredor, em frente à porta do banheiro, depois de esperar 13 horas pelo atendimento, em trabalho de parto. Detalhe: ela fora auxiliada pelos outros pacientes que estavam por ali, também esperando atendimento. Duas enfermeiras apareceram somente DEPOIS que o bebê já nascera.
            A segunda foi sobre a reivindicação de médicos que atendem por convênios de cobrar pelo tempo que tiverem que esperar durante o trabalho de parto. Ou seja: a gestante já paga um plano de saúde, mas, quando entrar em trabalho de parto, como este pode durar algumas horas, não contará com o acompanhamento do médico que acompanhou toda a sua gestação, exceto se pagar por isso à parte.
            A terceira falava sobre o número exagerado de cesarianas que ainda se faz no Brasil, mesmo sem necessidade. Imagino que todos que estejam lendo o meu post saibam da enorme diferença que existe entre um parto normal e uma cesariana. Para os que não sabem, grosso modo, em um parto normal o nenê vem ao mundo passando pelos estágios que naturalmente tem que passar para nascer, a produção de leite ocorre mais facilmente, a mãe se recupera muito mais rapidamente, e, salvo qualquer contratempo, logo ambos podem ir para casa, saindo da insalubridade do ambiente hospitalar. Já uma cesariana é uma cirurgia. A mãe sofre mais, o bebê nasce de supetão, a produção do leite, às vezes, é mais complicada, o desconforto é muito maior, a internação se prolonga, e os riscos aumentam.
            No entanto, apesar disso tudo, os médicos preferem fazer cesarianas. Questionada sobre isso, uma médica declarou, com todas as letras, a obviedade da situação. Na lógica comercial dela, é muito natural que os médicos assim procedam, uma vez que a cesariana é feita com hora marcada e leva menos tempo, o que garante o ganho do médico sem que ele tenha que passar horas esperando por um trabalho de parto. “Se o médico pode fazer três cesárias em um dia, e ganhar pelas três, por que deveria ele optar por realizar partos normais, se um parto normal pode ocupá-lo o dia todo?”
            Ou seja: o problema não é a segurança e tranquilidade da gestante, e não é a vida do bebê. O problema é o dinheiro. O objetivo dos médicos não é cuidar da vida humana, é ganhar dinheiro.
            Coincidente e muito infelizmente, nesse final de semana a irmã de uma amiga minha foi, em trabalho de parto, para o hospital. O que me relataram foi que o hospital estava uma bagunça, os médicos na correria, e, depois de um rápido atendimento, que, nas palavras dela, a fez sentir-se como uma cadela num pet shop (do que eu discordo um pouco, porque, talvez, uma cadela num pet shop seria muito mais bem atendida), concluíram que ela poderia voltar para casa, porque ainda não era a hora. Estranhamente, a medicaram com BUSCOPAN, que é um medicamento que qualquer mulher que menstrua sabe que suprime e alivia cólicas. Ou seja: é presumível que o médico que deveria fazer seu parto não estivesse disponível naquele momento e tenha resolvido adiar a hora em função de sua própria disponibilidade. Ela voltou para casa. E, quando foi novamente para o hospital e finalmente a internaram, havia passado da hora. A criança entrou em sofrimento e, horas depois do nascimento, morreu.
            Esse caso aconteceu mais perto de mim e eu estava consciente de toda a movimentação em torno dessa nova vida. Uma criança que vem ao mundo não é esperada apenas pelos seus pais. É esperada por toda a família, amigos, vizinhos... Nove meses não são nove dias. Toda a vida do casal passa a girar em torno daquela criança. Um acontecimento desses, de se esperar nove meses por um filho, reformatar a própria vida para recebê-lo com todo o amor e carinho que merece, pari-lo e perdê-lo horas depois é uma verdadeira desgraça para todos os envolvidos.
            E então? O que é que se pode fazer?
            No caos em que estamos vivendo, já tenho pouca esperança de que isso possa mudar. Mas, para sentir que estou fazendo um mínimo, eu gostaria de mandar um recado para os jovens que pretendem ser médicos.
            Hoje há muita informação. Vocês não devem entrar nessa carreira sem estar minimamente conscientes de como funciona o sistema de saúde nesse país. É claro que há certas coisas que somente no exercício da profissão vocês poderão vivenciar. Mas há muuuitas coisas sobre as quais vocês já podem se informar. Façam isso. Tentem perceber o que é esse mundo da saúde (que eu chamaria de mundo da doença), antes de entrar de cabeça nele. E, depois de perceberem muito bem como é que as coisas funcionam, perguntem-se se vocês querem seguir nessa profissão para ganhar dinheiro ou para cuidar do ser humano.
            É claro que todos precisamos de dinheiro para viver. É claro que ninguém quer trabalhar de graça. Mas se o seu objetivo for prioritariamente grana, por favor, faça outra coisa. Abra uma fábrica de chocolate, vá trabalhar no ramo da moda, produza qualquer coisa que você possa vender muito. Mas não vá trabalhar com vidas humanas se você não tem real amor por elas. Para ingressar nessa, você tem que estar consciente de que vai enfrentar infinitos problemas e que, se não puder ganhar o que deseja, o que é muito provável, brincar com a vida das pessoas para aumentar seus ganhos não vale.
            Médico que faz jus à profissão que abraçou fica, sim, ao lado de uma gestante por dez horas, se for preciso, para trazer uma criança saudável ao mundo, para ser cuidada por uma mãe feliz e equilibrada. Mesmo que, para isso, tenha que ganhar três vezes menos do que se fizesse partos como se estivesse em uma linha de produção.
            Dificilmente você ganhará o que merece. Sim, um médico, assim como um professor, merece ganhar muito. Mas, infelizmente, essa não é a nossa realidade. Então, se você não estiver disposto a dedicar muito tempo da sua vida para diminuir o sofrimento alheio, tendo nisso sua principal satisfação e sacrificando, na medida em que for necessário, seu próprio conforto material, não embarque nessa profissão.
            Infelizmente, são poucas as vezes que vejo médicos reivindicando melhorias no sistema de saúde. Suas reivindicações, quase sempre, são de melhoria de seu próprio salário. A classe médica me decepciona profundamente quando se adapta às condições que o sistema lhe oferece, sem questionar se ele é minimamente humano, correto, honesto e sem brigar pelos seus direitos de trabalhar de forma digna e pelos direitos do paciente.
            Sei que muitos médicos que talvez estejam lendo esse meu desabafo podem se sentir ofendidos. Sei que outros tantos terão mil argumentos para justificar sua própria negligência. Afinal, depois que se mergulha num sistema deteriorado, o normal é deteriorar-se com ele, não é? Eu não quero generalizar. Sei que há as moscas brancas, como alguns médicos que conheço e para os quais tiro o chapéu. Mas, infelizmente, eles não são maioria e digo isso sem medo de errar.
            E é exatamente por isso que eu quero dar esse alerta. Se você pretende vir a ser um médico, esteja certo de que é forte o suficiente para não se deteriorar junto com o sistema. Esteja certo de que terá forças para, se necessário, promover mudanças, reivindicar direitos, exigir condições dignas de trabalho, e até encabeçar movimentos, na busca de uma melhoria do sistema de saúde. Quem está ingressando, hoje, na medicina, tem que ter, além de vocação e talento, postura política. Porque se você simplesmente se sujeitar ao que está aí, você corre sério risco de sucumbir e transformar-se num desses comerciantes da saúde que hoje fazem cesárias em mulheres que poderiam ter partos normais, para ganhar mais. E, para mim, quem faz isso é bem capaz de estar, amanhã, traficando órgãos, porque, afinal, isso pode ser ainda mais lucrativo.
 
Ana Lucia Sorrentino
 
   
   

 
   

domingo, 2 de dezembro de 2012

Sem volta




 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Eu me queria como fui um dia,
quando ainda não sabia
coisas que depois vim a saber.
Eu me queria como antes de perceber
o que depois percebi,
sem nem ao menos querer.
Eu me queria como fui um dia:
inocente, crédula, pia.
Se a maturidade castiga
com a decepção do descrer,
a senilidade talvez seja
um indulto da natureza,
pelo envelhecer.
Custando a morte a chegar,
já fartos de aprender,
nela descansamos,
conseguindo, enfim, esquecer.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Analú
01/12/2012
 
 
 

 
 
 


 

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A noite seduz






Um brinco de pérola e diamante
reluz na pele negra da noite.
O sabiá que traz meu sono
nas sempre altas madrugadas,
hoje me falta,  
emudecido, assustado.
Creio ter se enamorado.  
Talvez não esperasse,
não havendo hoje festa,
um céu vestido a rigor.
Talvez meu fiel sabiá
tenha hoje calado de amor...

Analú
31/10/12

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Momento de Fraqueza



                 


            No Paquistão, Malala é baleada por Talibans que julgam ser
obscenidade desejar estudar.
            Na África, mulheres continuam sendo circuncidadas em nome de uma cultura de fidelidade forçada.
            Na China, cãezinhos são fatiados e grelhados na brasa, no meio da calçada, para serem gostosamente comidos.
            No Brasil, índios são despejados de suas próprias terras e resolvem se autoextinguir.
            A barbárie impera.
            Pedacinhos de maridos infiéis passeiam dentro de malas por elevadores sociais, meninas bonitas são jogadas pela janela, cuidadoras são flagradas maltratando idosos, babás judiam de nenês, enfermeiros matam pacientes injetando-lhes sopa na veia...  Nos quatro cantos do mundo fundamentalistas provocam imensas tragédias em nome de Deus. Aqui, bem pertinho, pastores evangélicos vendem o perdão e as graças divinas como se vende bananas numa feira livre: gritando histericamente, sem um pingo da serenidade que se espera de quem diz ter fé. Fazem do homossexualismo uma gripe espanhola do terceiro milênio e promovem entre política e religião um obsceno acasalamento que nos envergonha mais do que filme pornô de produção fuleira.
            Louca pra chegar em casa, circulo pelas desgraças do mundo e percebo o farol amarelo. Como um peixinho que sabe não poder ganhar a liberdade pulando do aquário, aciono lentamente o freio, já sabendo o que me aguarda. Flanelinhas entocaiados surgem de todos os lados na noite paulistana enquanto um traiçoeiro farol vermelho me faz refém.  Meu cérebro, já carcomido pelos noticiários ensanguentados de todos os dias, me coloca em estado de alerta. Um rapaz vem, amistoso, e suja meu para-brisa limpo, desenhando nele um coração de água com sabão numa descarada estratégia amorosa de se criar a necessidade para vender o produto. Tudo é tão rápido... Busco uma moeda no fundo da bolsa enquanto ele elogia meu sorriso, e finjo acreditar em sua docilidade, mas sei que se eu só tiver moedas miúdas corro o risco de ouvir algum desaforo ou de coisa pior. Já passei por isso algumas vezes. Ele é rápido, e numa só fechada de farol faz três “vítimas”. Aborreço-me. De pronto minha sirene antiautopiedade dispara, tirando-me o direito de sentir em paz o que estou sentindo. Encho-me de culpa e de vergonha por lamentar coisas tão pequenas quando sei que, na verdade, faço parte de uma minoria afortunada. Afinal, até agora, pelo menos, consegui estudar, fiz bom proveito do meu clitóris, não fui colocada numa churrasqueira nem enfiada aos pedaços numa mala...
            Mas... embora meus horrores particulares sejam pequenos, também me aterrorizam.  Tanto nos minúsculos quanto nos imensos horrores, há horror.
            Acelero pra chegar a tempo de, paradoxalmente, me embriagar com a barbárie da absurda “Avenida Brasil”, e esquecer um pouco da realidade. Há que se recorrer a algum escape... Eu não fumo, não bebo, não me drogo, e frequentemente não sei o que fazer comigo mesma.  
            Eu quero, quero muito não me lamentar, mas o que sinto grita. O mundo às vezes é constrangedor...

Analú
24/10/12

 Imagem: Google - Guernica - Pablo Picasso

           



terça-feira, 16 de outubro de 2012

Flutuemos




















Quando tudo que não foi
não mais tiver importância
nos vãos espaços das vãs lembranças;
quando tudo o que há de vir
não tiver mais o poder
de causar qualquer receio
e não mais puser a perder
do sono de hoje o esteio;
quando não mais brotar embriaguez
da fértil semente do olhar alheio
e como uma flor cansada
a vaidade murchar de vez;
quando o necessário for
vergonhosamente flagrado
em sua mais absoluta inutilidade
e as fugidias verdades compreenderem
de todas as coisas o caráter passageiro;
quando o que restar for apenas
m  o  v  i  m  e  n  t  o;
talvez, então, 
se instale, enfim, a leveza.  
Flutuaremos no nada
sorrindo zombeteiramente
das bobagens da vida...

Analú