domingo, 13 de dezembro de 2015

Família



Família é uma junção esquisita
de gente que se estranha,
mas quer a foto bonita.
Há famílias que,
surpreendentemente, "dão certo".
Há famílias cujos parentes
gostariam de não se ter por perto.
Mas a família - dizem especialistas -
é um contexto problemático
mais saudável que a solidão.
Nela treinamos bem cedo
a lidar com o desenredo
e a enfrentar confusão...  
Ocorre que, vez em quando,
esse treino tão pesado
entre gente do mesmo bando
não parece acertado...
Pois quando vamos pro mundo,
bem que pode acontecer
d'o mundo ser bom amigo
e da gente perceber
que era mesmo na família
que residia o perigo.

                                                          
                                                    Ana Lucia Sorrentino

Imagem: Google

sábado, 5 de dezembro de 2015

Reorganização revogada - e agora?


















            O Estado de São Paulo passa por gravíssima crise na educação. Crise que não vem de agora, mas que agora atingiu seu ápice, com a resolução do governo de "reorganizar" por decreto o ensino, sem prévia consulta aos diretamente interessados.       De um dia para o outro os alunos da rede pública simplesmente receberam a notícia de que haveria uma reorganização que obrigaria parte deles a se deslocar para lugares mais distantes, mudando e dificultando toda sua rotina, alterando suas relações e desconsiderando completamente o significado afetivo que uma escola tem para alunos que, muitas vezes, a frequentam há anos. Com o passar dos dias, começou a ficar claro que não apenas alunos seriam remanejados de forma a serem separados por ciclos, mas também que muitas dessas escolas passariam a ter outra função, abrigando escolas técnicas ou creches. Portanto, haveria uma diminuição efetiva no número de escolas para atender ao mesmo número de alunos, o que implicaria, necessariamente, em superlotação de salas de aula, já superlotadas na rede estadual.
            Depois de um longo e tenebroso período de protestos e ocupações de escolas, em que todos os dias ficava exposta a truculência da polícia militar contra estudantes que estavam apenas exercendo seu direito de lutar em prol de algo em que acreditavam, finalmente o governador Alckmin anunciou a revogação da "reorganização". A pressão popular falou mais alto e a promessa é de que tudo seguirá como estava. Mas não. Nada seguirá como estava, e que assim seja!
            Escrevo agora não para olhar para trás, mas para pensar sobre o que virá daqui para frente. Não vou, assim, me aprofundar em tudo o que poderia ser questionado na atuação do governo de São Paulo desde o anúncio da "reorganização". Poderíamos questionar o motivo do não investimento na construção de escolas técnicas e creches. Poderíamos perguntar ao governador por que não pensar em aproveitar a diminuição do número de alunos da rede pública - que certamente não foi apenas fruto da diminuição da natalidade, mas também do sucateamento do ensino estadual nos últimos anos -, para melhorar a qualidade de ensino, uma vez que classes com menos alunos podem promover um ensino muito superior ao que se efetiva em classes superlotadas. Poderíamos refletir sobre a eficácia da segregação na resolução de conflitos entre estudantes de idades diferentes. Afinal, o que eles aprendem se, quando brigam, simplesmente são separados uns dos outros? Poderíamos questionar se é certo permitir que a polícia militar aja como nos piores tempos da ditadura batendo, humilhando, algemando, e até prendendo estudantes que só querem uma boa qualidade de ensino. Por fim, poderíamos perguntar o quanto é válido arrumar uma justificativa fraca e mentirosa para agir em benefício dos próprios interesses.
            Mas, deixemos tudo isso de lado, para pensar um pouco justamente na fragilidade dessa justificativa e nas razões que permitiram que ela se sustentasse por algum tempo sem ser rigorosamente combatida de pronto.
            Ao primeiro anúncio da "reorganização", não me convenci. Quem estuda educação sabe que a aprendizagem se dá mais efetivamente na mistura. Mistura de raças, de idades, de condição social e intelectual. Alguns dias depois do anúncio, e já depois de muito barulho por parte dos estudantes, começaram a surgir manifestações a respeito disso. Entre elas, uma significativa análise da Universidade Federal do ABC, publicada no Estadão[1], que considera "péssima" a "qualidade técnica do estudo que está por trás de uma política desse tamanho, que desloca 311 mil alunos." O estudo, segundo a análise da UFABC, carece de elementos científicos para fundamentar a tese de que escolas estaduais de um só ciclo implicam em melhor desempenho escolar. Embora tal estudo fosse necessário para refutar com propriedade os argumentos do governo estadual, me surpreende justamente essa necessidade, porque todo bom educador deveria saber que a tese do ciclo único é vazia e, antes que o estudo fosse publicado, educadores de todos os cantos de São Paulo e até do Brasil já deveriam ter se manifestado, pelo simples conhecimento de experiências de comprovado sucesso que vão em sentido contrário.
            Ocorre que nem sempre - ou quase nunca - as coisas são como imaginamos que deveriam ser. E percebi, através de algumas trocas de ideias, que, talvez, muitos educadores não tenham conhecimento dessas experiências. Falando sobre a minha descrença na "reorganização" que o governo propunha, citei, em um comentário que fiz em um site de jornalismo, a Escola da Ponte, experiência de sucesso do grande educador José Pacheco, implantada já na década de setenta em Portugal, e o Projeto Âncora, seu similar no Brasil. Em ambas as instituições as paredes das salas de aula vieram abaixo e estudantes de todas as idades interagem em um grande pátio, reunindo-se de acordo com interesses comuns. Alunos mais velhos preparam material de estudo para os mais jovens. A aprendizagem se dá através da execução de projetos propostos pelos próprios alunos e que, portanto, já têm ao nascer, natural interesse da parte deles. Na Escola da Ponte, em uma lousa, alunos que dominam determinada área se colocam à disposição para ensinar os que têm dificuldade nessa mesma área e entre si os alunos aprendem e ensinam, subvertendo o conservador sistema do professor protagonista. Em algum outro canto há um aviso que diz que "toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta". José Pacheco nos conta que crianças chegam a ser alfabetizadas em três meses na Escola da Ponte. E ele veio para o Brasil para "fazer escola". Há um lindo texto de Rubem Alves sobre a Escola da Ponte, A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir[2], de leitura imprescindível a qualquer educador.
            Para minha surpresa e desgosto, uma "educadora" refutou meu comentário, afirmando que "já estamos cansados de experiências". Outra me perguntou se eu queria um sanduíche de mortadela, talvez querendo partidarizar o debate... Mas já não basta um governo que quer fechar escolas, ainda temos que nos deparar com educadores atrasados? Como assim "estamos cansados de experiências", se a educação se faz de experiência? A educação precisa de mente aberta, inovação e mudança constante, porque o mundo muda constantemente. Durante a faculdade eu me perguntava o tempo todo o porquê de os professores nos ensinarem que é preciso inovar, sem inovar. Eles lecionavam da mesmíssima forma que os professores deles e os professores dos professores deles! Pregavam a mudança sem mudar, em verdadeira contradição performática. Imagine um professor escrevendo na lousa que um professor não deve escrever na lousa, porque isso é antiquado. Era mais ou menos isso o que acontecia quase o tempo todo nas aulas do curso de licenciatura. Alunos fatigados do dia de trabalho brigavam contra o sono assistindo longas aulas expositivas em que eles - que em breve teriam que enfrentar seus próprios alunos - quase não tinham chance de se manifestar e menos ainda de treinar. A questão da dificuldade para nos aventurarmos à mudança é recorrente em mim. Nessas aulas em que eu quase dormia, ficava me perguntando como fazer diferente, porque sentia que isso havia se esgotado de tal forma que não havia mais como protelar a urgente mudança.
            Em Sobre Educação e Juventude[3] Zygmunt Bauman compara professores a lançadores de mísseis. O que mudou da educação da era sólido-moderna - a fase inicial da modernidade - para hoje, que estamos em tempos líquidos, é, segundo Bauman, o fato de que os alvos - os alunos - não são mais fixos e, portanto, a educação não pode se dar através do lançamento de mísseis balísticos, próprios para atingir alvos fixos! Os mísseis, hoje, precisam ser inteligentes. Ter uma "racionalidade instrumental" que lhes permita "aprender no percurso". E que, além de aprender depressa, tenham a "capacidade de esquecer instantaneamente o que foi aprendido antes". (Bauman, 2013, p. 21)
            O que Bauman está dizendo? Que educadores têm que estar atentos e abertos ao novo o tempo todo. Preparados para receber as mensagens que vêm dos alunos - seus alvos -, compreendê-las e reformular as estratégias e até mesmo os objetivos de acordo com o que os próprios alunos sinalizam. Nas palavras dele: "[...] a garantia do sucesso é não deixar passar o momento em que o conhecimento adquirido não se mostrar mais útil e for preciso jogá-lo fora, esquecê-lo e substituí-lo." (Bauman, 2013, p. 21)
             A reorganização por decreto de Alckmin representa exatamente um míssil balístico, característico da fase sólida da modernidade, pois nasceu pronta, mirou em alvos em constante movimento acreditando que ficariam parados e foi incapaz de se repensar e alterar a rota. O resultado foi o que vimos. O míssil errou o alvo e sofreu grave desgaste.
              O que será daqui pra frente?
            O fato de que os alunos poderão retornar às suas escolas como se nada houvesse acontecido não significa que tudo está igual. O espaço físico estará lá, como sempre, mas os estudantes jamais serão os mesmos. Assumiram o protagonismo da própria educação e não mais se submeterão a "ordens" vindas de cima, sem sua devida participação. Aprenderam a fazer isso com essa crise e perceberam a força que têm. A surpreendente reação dessa geração a essa tentativa de imposição de uma nova estrutura que não lhes agrada é resultado de uma educação que ultrapassa em muito as paredes de seus lares e de suas escolas. Os jovens não são mais educados apenas por seus pais, familiares e professores. O mundo lhes educa o tempo todo. São jovens que, através da internet, têm contato com tudo o que acontece em todos os cantos do planeta. Pesquisam sobre o que quer que lhes interesse e se mobilizam organizadamente e mobilizam multidões através das redes. E, nesse gesto de inconformismo, ensinaram muito a seus professores. Partiu dos alunos uma reação que há muito professores deveriam ter: a de não aceitar imposições absurdas. Tenho certeza de que, a partir de agora, muitos professores passarão a questionar o que antes não questionavam. Assim espero.
            Quero crer que o próprio governo tenha aprendido com essa lição. Em uma democracia não pode haver decisões unilaterais e ditatoriais. Governantes não podem deixar de olhar para o mundo e parar no tempo. Hoje NADA do que acontece permanece na sombra, tudo vem à tona. E eu espero, sinceramente, que todos os abusos da polícia militar de Alckmin resultem em uma mudança radical, que tem que começar a ser articulada por todos nós, cidadãos de bem que não podem aceitar tal violência contra seus jovens.
            Também espero que os professores e diretorias tenham entendido o quanto terão que se abrir ao novo o tempo todo. Que se proponham a dinamitar pirâmides hierárquicas, sair do conforto do protagonismo e aprendam com o que os jovens têm a lhes ensinar. E, olha... eu acho que é muuito.




                                                                   
                                                      Ana Lucia Sorrentino
                                                            05/12/2015