segunda-feira, 16 de julho de 2018

Perturbação



            
            Quando conheci Perturbação eu era ainda meninota. Não sei precisar o momento exato em que a vi pela primeira vez. Talvez tenha sido numa dessas interrupções abruptas de alguma brincadeira de criança à qual me entregava prazerosamente. Sei que algo quebrou o encanto e me lembro de grandes olhos de malícia me fitando e certa maldade no sorriso de canto de boca.
            Embora a estivesse percebendo pela primeira vez, me jurou que me conhecia desde o berço e que, provavelmente, nessa época, por estar tão protegida pelos cuidados familiares, eu não registrara sua presença. E prometeu que nunca me abandonaria, mesmo que nalguns momentos precisasse se ausentar. Que eu esperasse, porque a qualquer instante voltaria. Orgulha-se de ser fiel.
            Depois disso, de fato, Perturbação nunca mais deixou de me visitar. Em certas fases com maior frequência, em outras esporadicamente. Chegava sempre como quem não quer nada, com seus tamanquinhos de sola de madeira batucando algo que não música no chão. Embora o tamanco, com seu barulhinho irritante, fosse marca registrada, percebi, há pouco tempo, que Perturbação não tem um estilo. Às vezes vem séria, de preto, às vezes toda florida. Algumas vezes me apareceu linda, linda, toda em corações vermelhos, quase em fogo, e foi então que mais me tirou do prumo.
            Com seu jeito convincente de quem se julga necessária, se fez presente em todos os momentos cruciais da minha existência.
            Não raro imaginei ter Perturbação algo de diabólico, tão de supetão surgia do nada e pro nada se ia. Mas então notei que, vez ou outra, me avisava, sim, com algum pequeno sinal, de sua aproximação. Desatenta que sou, sempre lhe abri as portas e permiti que viesse, me abraçasse e me beijasse, ora com doces lábios úmidos, ora com dura frieza.
            Certa vez, tendo sua visita sido demasiado prolongada, perguntei-lhe se não negligenciava outros amigos, que, com certeza, estranhavam sua ausência. Respondeu-me que se desdobra em muitas, ignorando por completo aquela baboseira de que um corpo não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo – e riu gostosamente.
É brincalhona, com certeza. Mas quase sempre seu senso de humor me parece de duvidoso gosto.
            Hoje, mais madura, e tendo percorrido mil caminhos e chegado a mil destinos, lembro-me de ter cruzado com essa presença em quase todas as estradas. E permiti que me acompanhasse, ora por longos trechos, ora só por alguns passos. Às vezes me indicou caminhos, às vezes os atravancou. E em muitas e muitas ocasiões me pegou pela mão e me tirou de uma encruzilhada em que eu insistia em sentar e ficar, cansada que estava.
            Em nossos últimos encontros percebi algo diferente em sua feição. Perturbação não é mais a menina agitada que me viu adolescer e me acompanhou na minha primeira paixão. Não é mais a figura forte e determinada que me paralisou nas doenças, nas decepções, nas tristes constatações de impotência e solidão.
            Parece-me um pouco cansada, já traz rugas no rosto e às vezes cede à minha desatenção. Dá meia volta e se vai, um tanto quanto desgostosa, mas até que conformada. Eu a olho se distanciando morosamente e não consigo não sorrir, pensando que deve se aborrecer por não me provocar mais paixão. Mas confesso sentir algum carinho e ter até, por ela, grande consideração.
            Embora Perturbação seja inegavelmente perturbadora e tenha esse espírito promíscuo, não há como negar: é fiel e presente. E intuo que, apesar de tantas vezes rejeitada e mal recebida, é a amiga que me viu crescer e que me acompanhará, cada vez mais calma, até o último minuto da minha vida.

                                                             
                                                           Ana Lucia Sorrentino

Imagem: Google