domingo, 13 de dezembro de 2015

Família



Família é uma junção esquisita
de gente que se estranha,
mas quer a foto bonita.
Há famílias que,
surpreendentemente, "dão certo".
Há famílias cujos parentes
gostariam de não se ter por perto.
Mas a família - dizem especialistas -
é um contexto problemático
mais saudável que a solidão.
Nela treinamos bem cedo
a lidar com o desenredo
e a enfrentar confusão...  
Ocorre que, vez em quando,
esse treino tão pesado
entre gente do mesmo bando
não parece acertado...
Pois quando vamos pro mundo,
bem que pode acontecer
d'o mundo ser bom amigo
e da gente perceber
que era mesmo na família
que residia o perigo.

                                                          
                                                    Ana Lucia Sorrentino

Imagem: Google

sábado, 5 de dezembro de 2015

Reorganização revogada - e agora?


















            O Estado de São Paulo passa por gravíssima crise na educação. Crise que não vem de agora, mas que agora atingiu seu ápice, com a resolução do governo de "reorganizar" por decreto o ensino, sem prévia consulta aos diretamente interessados.       De um dia para o outro os alunos da rede pública simplesmente receberam a notícia de que haveria uma reorganização que obrigaria parte deles a se deslocar para lugares mais distantes, mudando e dificultando toda sua rotina, alterando suas relações e desconsiderando completamente o significado afetivo que uma escola tem para alunos que, muitas vezes, a frequentam há anos. Com o passar dos dias, começou a ficar claro que não apenas alunos seriam remanejados de forma a serem separados por ciclos, mas também que muitas dessas escolas passariam a ter outra função, abrigando escolas técnicas ou creches. Portanto, haveria uma diminuição efetiva no número de escolas para atender ao mesmo número de alunos, o que implicaria, necessariamente, em superlotação de salas de aula, já superlotadas na rede estadual.
            Depois de um longo e tenebroso período de protestos e ocupações de escolas, em que todos os dias ficava exposta a truculência da polícia militar contra estudantes que estavam apenas exercendo seu direito de lutar em prol de algo em que acreditavam, finalmente o governador Alckmin anunciou a revogação da "reorganização". A pressão popular falou mais alto e a promessa é de que tudo seguirá como estava. Mas não. Nada seguirá como estava, e que assim seja!
            Escrevo agora não para olhar para trás, mas para pensar sobre o que virá daqui para frente. Não vou, assim, me aprofundar em tudo o que poderia ser questionado na atuação do governo de São Paulo desde o anúncio da "reorganização". Poderíamos questionar o motivo do não investimento na construção de escolas técnicas e creches. Poderíamos perguntar ao governador por que não pensar em aproveitar a diminuição do número de alunos da rede pública - que certamente não foi apenas fruto da diminuição da natalidade, mas também do sucateamento do ensino estadual nos últimos anos -, para melhorar a qualidade de ensino, uma vez que classes com menos alunos podem promover um ensino muito superior ao que se efetiva em classes superlotadas. Poderíamos refletir sobre a eficácia da segregação na resolução de conflitos entre estudantes de idades diferentes. Afinal, o que eles aprendem se, quando brigam, simplesmente são separados uns dos outros? Poderíamos questionar se é certo permitir que a polícia militar aja como nos piores tempos da ditadura batendo, humilhando, algemando, e até prendendo estudantes que só querem uma boa qualidade de ensino. Por fim, poderíamos perguntar o quanto é válido arrumar uma justificativa fraca e mentirosa para agir em benefício dos próprios interesses.
            Mas, deixemos tudo isso de lado, para pensar um pouco justamente na fragilidade dessa justificativa e nas razões que permitiram que ela se sustentasse por algum tempo sem ser rigorosamente combatida de pronto.
            Ao primeiro anúncio da "reorganização", não me convenci. Quem estuda educação sabe que a aprendizagem se dá mais efetivamente na mistura. Mistura de raças, de idades, de condição social e intelectual. Alguns dias depois do anúncio, e já depois de muito barulho por parte dos estudantes, começaram a surgir manifestações a respeito disso. Entre elas, uma significativa análise da Universidade Federal do ABC, publicada no Estadão[1], que considera "péssima" a "qualidade técnica do estudo que está por trás de uma política desse tamanho, que desloca 311 mil alunos." O estudo, segundo a análise da UFABC, carece de elementos científicos para fundamentar a tese de que escolas estaduais de um só ciclo implicam em melhor desempenho escolar. Embora tal estudo fosse necessário para refutar com propriedade os argumentos do governo estadual, me surpreende justamente essa necessidade, porque todo bom educador deveria saber que a tese do ciclo único é vazia e, antes que o estudo fosse publicado, educadores de todos os cantos de São Paulo e até do Brasil já deveriam ter se manifestado, pelo simples conhecimento de experiências de comprovado sucesso que vão em sentido contrário.
            Ocorre que nem sempre - ou quase nunca - as coisas são como imaginamos que deveriam ser. E percebi, através de algumas trocas de ideias, que, talvez, muitos educadores não tenham conhecimento dessas experiências. Falando sobre a minha descrença na "reorganização" que o governo propunha, citei, em um comentário que fiz em um site de jornalismo, a Escola da Ponte, experiência de sucesso do grande educador José Pacheco, implantada já na década de setenta em Portugal, e o Projeto Âncora, seu similar no Brasil. Em ambas as instituições as paredes das salas de aula vieram abaixo e estudantes de todas as idades interagem em um grande pátio, reunindo-se de acordo com interesses comuns. Alunos mais velhos preparam material de estudo para os mais jovens. A aprendizagem se dá através da execução de projetos propostos pelos próprios alunos e que, portanto, já têm ao nascer, natural interesse da parte deles. Na Escola da Ponte, em uma lousa, alunos que dominam determinada área se colocam à disposição para ensinar os que têm dificuldade nessa mesma área e entre si os alunos aprendem e ensinam, subvertendo o conservador sistema do professor protagonista. Em algum outro canto há um aviso que diz que "toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta". José Pacheco nos conta que crianças chegam a ser alfabetizadas em três meses na Escola da Ponte. E ele veio para o Brasil para "fazer escola". Há um lindo texto de Rubem Alves sobre a Escola da Ponte, A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir[2], de leitura imprescindível a qualquer educador.
            Para minha surpresa e desgosto, uma "educadora" refutou meu comentário, afirmando que "já estamos cansados de experiências". Outra me perguntou se eu queria um sanduíche de mortadela, talvez querendo partidarizar o debate... Mas já não basta um governo que quer fechar escolas, ainda temos que nos deparar com educadores atrasados? Como assim "estamos cansados de experiências", se a educação se faz de experiência? A educação precisa de mente aberta, inovação e mudança constante, porque o mundo muda constantemente. Durante a faculdade eu me perguntava o tempo todo o porquê de os professores nos ensinarem que é preciso inovar, sem inovar. Eles lecionavam da mesmíssima forma que os professores deles e os professores dos professores deles! Pregavam a mudança sem mudar, em verdadeira contradição performática. Imagine um professor escrevendo na lousa que um professor não deve escrever na lousa, porque isso é antiquado. Era mais ou menos isso o que acontecia quase o tempo todo nas aulas do curso de licenciatura. Alunos fatigados do dia de trabalho brigavam contra o sono assistindo longas aulas expositivas em que eles - que em breve teriam que enfrentar seus próprios alunos - quase não tinham chance de se manifestar e menos ainda de treinar. A questão da dificuldade para nos aventurarmos à mudança é recorrente em mim. Nessas aulas em que eu quase dormia, ficava me perguntando como fazer diferente, porque sentia que isso havia se esgotado de tal forma que não havia mais como protelar a urgente mudança.
            Em Sobre Educação e Juventude[3] Zygmunt Bauman compara professores a lançadores de mísseis. O que mudou da educação da era sólido-moderna - a fase inicial da modernidade - para hoje, que estamos em tempos líquidos, é, segundo Bauman, o fato de que os alvos - os alunos - não são mais fixos e, portanto, a educação não pode se dar através do lançamento de mísseis balísticos, próprios para atingir alvos fixos! Os mísseis, hoje, precisam ser inteligentes. Ter uma "racionalidade instrumental" que lhes permita "aprender no percurso". E que, além de aprender depressa, tenham a "capacidade de esquecer instantaneamente o que foi aprendido antes". (Bauman, 2013, p. 21)
            O que Bauman está dizendo? Que educadores têm que estar atentos e abertos ao novo o tempo todo. Preparados para receber as mensagens que vêm dos alunos - seus alvos -, compreendê-las e reformular as estratégias e até mesmo os objetivos de acordo com o que os próprios alunos sinalizam. Nas palavras dele: "[...] a garantia do sucesso é não deixar passar o momento em que o conhecimento adquirido não se mostrar mais útil e for preciso jogá-lo fora, esquecê-lo e substituí-lo." (Bauman, 2013, p. 21)
             A reorganização por decreto de Alckmin representa exatamente um míssil balístico, característico da fase sólida da modernidade, pois nasceu pronta, mirou em alvos em constante movimento acreditando que ficariam parados e foi incapaz de se repensar e alterar a rota. O resultado foi o que vimos. O míssil errou o alvo e sofreu grave desgaste.
              O que será daqui pra frente?
            O fato de que os alunos poderão retornar às suas escolas como se nada houvesse acontecido não significa que tudo está igual. O espaço físico estará lá, como sempre, mas os estudantes jamais serão os mesmos. Assumiram o protagonismo da própria educação e não mais se submeterão a "ordens" vindas de cima, sem sua devida participação. Aprenderam a fazer isso com essa crise e perceberam a força que têm. A surpreendente reação dessa geração a essa tentativa de imposição de uma nova estrutura que não lhes agrada é resultado de uma educação que ultrapassa em muito as paredes de seus lares e de suas escolas. Os jovens não são mais educados apenas por seus pais, familiares e professores. O mundo lhes educa o tempo todo. São jovens que, através da internet, têm contato com tudo o que acontece em todos os cantos do planeta. Pesquisam sobre o que quer que lhes interesse e se mobilizam organizadamente e mobilizam multidões através das redes. E, nesse gesto de inconformismo, ensinaram muito a seus professores. Partiu dos alunos uma reação que há muito professores deveriam ter: a de não aceitar imposições absurdas. Tenho certeza de que, a partir de agora, muitos professores passarão a questionar o que antes não questionavam. Assim espero.
            Quero crer que o próprio governo tenha aprendido com essa lição. Em uma democracia não pode haver decisões unilaterais e ditatoriais. Governantes não podem deixar de olhar para o mundo e parar no tempo. Hoje NADA do que acontece permanece na sombra, tudo vem à tona. E eu espero, sinceramente, que todos os abusos da polícia militar de Alckmin resultem em uma mudança radical, que tem que começar a ser articulada por todos nós, cidadãos de bem que não podem aceitar tal violência contra seus jovens.
            Também espero que os professores e diretorias tenham entendido o quanto terão que se abrir ao novo o tempo todo. Que se proponham a dinamitar pirâmides hierárquicas, sair do conforto do protagonismo e aprendam com o que os jovens têm a lhes ensinar. E, olha... eu acho que é muuito.




                                                                   
                                                      Ana Lucia Sorrentino
                                                            05/12/2015

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Rebuliço





















Rebuliço

Há um rebuliço em mim:
luto pelo que morreu,
angústia pelo possível,
ânsia pelo que não vem.
Há uma pulsão,
há em mim uma pulsão também:
energia que se represa,
que se represa,
e que se afoga na seca dos dias.
Haverá algo, afinal,
que, real, se realize?
Poderá acontecer
me pegar desprevenida,
não a mediocridade:
um belo naco de vida?
Será que há de verdade
o que um dia intuí,
não vitrine nem vaidade,
nem desejo, nem saudade:
proveito agora e aqui?


Ana Lucia Sorrentino
13/10/15





quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Lentes entre nós

           


           Cena 1 - Das seis pessoas à mesa, apenas eu não tenho os olhos no celular. Isso era pra ser a comemoração de um aniversário, salvo engano. Olho ao redor, tento me fixar na decoração suave, penso em comentar algo, resisto ao ímpeto de checar meus e-mails só pra disfarçar, me deixo abater pelo constrangimento. Vontade de sair correndo. Fico, pra não arrumar encrenca, coisa fácil de se fazer. Mas tá difícil. Que bom que a comida chegou. Com esse povo, nunca mais. Belos pratos! Começa a sessão de fotos. 
        Cena 2 - O sono vem vindo. Hora da última checada nas mensagens. Quem eu queria que me respondesse, não respondeu... Normal isso já. O descaso está naturalizado. Ninguém mais se ofende com a ausência de respostas, porque tudo é sempre tanto e a gente não dá conta... Chato jogar e-mails ao vento... Acho que vou deletar todo mundo que não me responde... Não tem jeito, ainda fico ofendida.
       Cena 3 - O mesmo cara no inbox. E eu que não consigo ser grossa. Amigo, eu ainda sou do tempo do cafezinho pessoalmente, gosto de olhar pra pessoa, sentir o hálito, perceber alguma sinceridade no ar.  Não, não mando fotos, me sinto uma coisa. Tenho cam, sim, mas não uso, não gosto. Não sei por que, mas ainda tenho dó de deletar de pronto. Mas as coisas podiam se dar de forma diferente, pelo menos uma vez... Me canso e mando a deixa pro sumiço: venha, vamos nos conhecer, amanhã estou livre, pode ser? Resolvido. Eles querem fantasiar, só isso.
        Cena 4 - Uma lua deslumbrante enfeita o céu. Tudo limpo, uma beleza... Abraços e beijos, uma vontade de conversar um pouco mais, mas é tarde e a vizinhança dorme. Minha sobrinha observa que a noite fora tão gostosa que nem lembramos de nos fotografar. É mesmo... Tava tudo tão bom! Obrigada por terem vindo, adorei! Acompanho o carro deles virando a esquina, fotografando-os mentalmente. Registro a cores, na minha memória afetiva, essa sensação boa de estar entre queridos, de poder confiar, de saber que com eles posso contar. O mundo não precisa do registro digital disso, porque isso é entre nós. Mesmo porque o mundo não se importa...   
           
            Entro em casa, e, recolhendo os vestígios do encontro, enveredo por um paradoxo. Realmente, estivéramos inteiros ali, dando-nos uns aos outros. Não nos preocupamos em fotografar o momento para que outros o vissem, porque o momento era nosso. E nós éramos nós mesmos. Me ocorre que toda vez que uma lente se interpõe entre atores de uma cena ela os altera, alterando de todo a relação. Esse vício de se fotografar e compartilhar tudo o que se vive expõe um desejo incontido de que algo, ao menos uma imagem, resista, num mundo que muda tão rapidamente que momentos às vezes intensamente aguardados simplesmente evanescem. Mas também expõe, e de forma flagrante, a perda da medida entre viver e mostrar que viveu. Paradoxalmente, quando a preocupação em mostrar disputa espaço com o viver, este, sem dúvida, sai enfraquecido. Acaba-se mostrando o que se viveu, mas o que se viveu já foi vivido para ser mostrado e, portanto, não foi vivido por inteiro. A relação já foi substancialmente alterada. E um tanto de vida escoou pelo ralo da vaidade.  

            Caio no sofá, cansada e serena. É bom demais saber que há quem nos queira bem. O silêncio me agrada. Não tenho medo de me escutar. Eu não sou contra a tecnologia, mas eu não gosto de posar pra fotos. Eu gosto de fotos flagradas, porque gosto da espontaneidade, da verdade. Eu gosto de quem desliga o celular durante o encontro, pra estar ali por inteiro. De quem responde meus e-mails com atenção, demonstrando consideração. Eu gosto de quem tem coragem de se fazer presente de verdade. Gosto de experimentar, não de ficar brincando de ensaiar eternamente.  Gosto de confiar, de estar perto, gosto do que permanece dentro de mim, mesmo que mudando o tempo todo. Eu gosto de sentir que há algum chão firme em que pisar. E quando piso com confiança, torno-me confiável também. Se não for pra ser assim, melhor mesmo um sofá, a solidão e um bom livro. 

                                                           Ana Lucia Sorrentino

sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre saudade
















Porque saudade quase sempre é algo que quase nunca se sacia.
Porque saudade é muito mais sobre o que, inocentes, fomos capazes de sentir um dia.  

                                                                               Ana Lucia Sorrentino

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Acaso




















Nunca levei a vida a sério,
nem sei se algum dia levarei.
A vida é verdadeiro mistério
que nunca decifrarei.
Há quem nasça em plena miséria
e cresça alvo de pilhéria.  
Há quem nasça em trono de rei
e se submeta a coisas que... nem sei.
Há quem de útil não faça nada
e quem ganhe a vida com conversa fiada.
Há quem enriqueça do suor alheio
e zombe, e humilhe, e goze
sem o menor receio.
Há quem goste de chafurdar na lama
e quem, sem chafurdar,
se deite na cama da fama.
Há doentes que são sãos
e sãos que são tão doentes...
A vida, puro acaso,
desconfio que me veja
como acaso puro também.   
Eu não a levo a sério
e ela não leva a sério
nem a mim, nem a ninguém.


                                                                              Ana Lucia Sorrentino 
                                                                                     14/08/2014

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Para que NÃO serve um professor de filosofia? - 1

    

 

           














                                            Conversássemos aqui sobre o papel do professor de filosofia, certamente este texto se prolongaria indefinidamente. Idealmente todo professor deveria pensar constantemente sobre isso, pois se essa postura reflexiva é fundamental no exercício de qualquer profissão, que dizer no magistério? Por mais que desejemos acertar sempre, certamente erraremos muitas vezes, porque lecionar é experiência, aprendizagem contínua, e errar faz parte do processo. Mas, se pudermos, antes de entrar de cabeça nessa aventura de infinitas possibilidades, eliminarmos em nós comportamentos às vezes herdados de nossos professores - até por admirá-los muito -, e que podem ser considerados erros graves, acredito que estaremos começando com alguma vantagem. É essa a contribuição que pretendo dar aqui. Apontar posturas relativamente frequentes que, ao menos a meu ver, não deveriam ser adotadas por quem pretende se dizer professor.  

              Por ser recém-formada, é na posição de aluna, com experiências ainda frescas em mim, que relato aqui algumas situações que minha turma viveu que, sinceramente, me provocaram uma enorme tristeza, pelo tanto que as percebi deletérias para os alunos em geral. Creio que ao me reportar a situações reais possa fazer com que você que está me lendo chegue junto comigo à resposta da minha pergunta inicial.

             Vamos lá.

            Primeira semana de aula. Estávamos todos um pouco assustados, porque, apesar de muitos de nós já terem passeado por textos filosóficos, passeios não são mergulhos profundos e não tínhamos o ouvido treinado para aulas com tantos termos novos, tantas questões instigantes, tantas novidades, enfim. Não conhecíamos os professores e havia uma dificuldade real na compreensão de algumas aulas expositivas, e uma natural timidez para nos aventurarmos a perguntar. Um dos nossos professores nos perguntou por que estávamos ali. Por que resolvêramos cursar filosofia. Respondi, tímida, mas prontamente, que, de minha parte, era porque eu desejava aprender a filosofar. Recebi de volta um sorriso um tanto quanto zombeteiro que se compadecia da minha ingenuidade e me dizia claramente que minha pretensão estava acima do desejável para uma simples mortal. Naquele momento ele se esforçou por nos fazer entender que faríamos um curso de história da filosofia, e que isso já estava de bom tamanho. Creio que não só eu, mas a grande maioria da sala, saiu dali, naquela noite, um tanto quanto desvitalizada.
            
            Algum tempo depois um outro professor colocou-se precocemente à disposição para atender alunos que tivessem interesse em fazer iniciação científica. Animada, já com algo em mente, fui consultá-lo. Ele me perguntou se eu já tivera tempo de me apaixonar por algum filósofo e eu, realmente, não tivera. Mas eu tinha um objeto de estudo. Uma questão da atualidade que me intrigava. Ele me elucidou, então, que as coisas não funcionavam assim na universidade. As minhas questões sobre o mundo não interessariam a ninguém. Para escrever algo sobre filosofia eu precisava estudar um autor já consagrado e escrever sobre o que outros autores diziam sobre ele. Eu teria o papel de uma compiladora de teses alheias. E nenhum orientador aceitaria uma pesquisa que já não tivesse uma bibliografia a ser consultada. Ou seja: o valor do ineditismo era nulo. Gostaria de não criticar o professor nesse caso, pois ele estava em um sistema que só lhe permitia isso. Mas ele era, sem dúvida, peça importante na manutenção de tal sistema restritivo. E peça bem azeitada... Guardei meu embrião de tese em algum lugar de mim que nem sei e fui pra casa, mais uma vez, decepcionada.
            
          Seguiram-se outros inúmeros episódios similares que não vou contar aqui para não me estender demais. A princípio, quis me iludir imaginando que nos tratavam dessa forma por sermos iniciantes. Mas, enquanto estudava o que os filósofos consagrados pensaram, me iludia, imaginando que, em algum momento, teríamos chance de ensaiar algo realmente filosófico. Até que entendi que a intenção do curso não era essa. Havia um esforço coletivo para que nos convencêssemos de que não seríamos capazes disso.
           
        No último ano, inconformada, minha equipe abraçou uma ideia para um seminário de didática específica. Fizemos uma apresentação sobre um texto de Gonzalo Armijos Palácios, um filósofo equatoriano da atualidade: De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Nosso seminário abordou exatamente a questão da impossibilidade do aluno de filosofia filosofar. Expusemos as ideias de Palácios, manifestamos nossa própria insatisfação e reivindicamos nosso direito de pensar. Nosso professor interpretou o que fizemos como "desejo de reconhecimento prematuro". Não... Nossa apresentação manifestava nosso desejo de ter espaço para produzir filosofia, ainda que rudimentar, e nos treinarmos para, talvez, em algum momento, produzir filosofia "de verdade", se é que se pode dizer assim. Mas ele estava tão domesticado pelo sistema que sua subserviência não permitiu que compreendesse nossa mensagem.
           
            Mais surpreendente ainda foi quando, ao sairmos da sala, conversei com um colega de classe que me disse discordar de nós porque "se quiséssemos criticar a universidade, que o fizéssemos fora dela"! O curso realmente conseguira convencê-lo de que nosso papel deveria ser sempre o de vira-latas. Se bem que amo vira-latas... :(
            
             Para finalizar, quero dizer que nossa turma começou com mais de 80 alunos e no último ano éramos 20. Os que se formaram junto comigo foram oito, se não me engano. E desses oito, apenas duas mulheres. Certamente algum professor argumentará que isso ocorreu porque "filosofia é para poucos", em uma perpetuação dessa ideia elitista de que é preciso ser genial para filosofar. Filosofia não é fácil. É preciso ter obstinação e muito amor. Mas, sinceramente, não sei em que grau essa evasão se deve mais à constatação pessoal de cada um de sua própria incapacidade ou mais a esse esforço permanente para nos fazerem crer que não podemos. O que sei é que um professor de filosofia não deveria jamais servir a essa triste causa, de convencer um aluno de que ele não é capaz. Aliás, professor algum deveria se prestar a isso.
            
PS - Enquanto isso, os que tiverem fôlego e conseguirem se submeter totalmente às regras, produzirão mestrados e doutorados e pós-doutorados mesclando com certa habilidade pensamentos alheios e replicando matérias para engordar o Lattes. Li, recentemente, que é impressionante a produção de lixo acadêmico da atualidade. Mas quem se submete tem mais chance de ser contratado. Interessante, não?  

                                                                                     Ana Lucia Sorrentino
                                                                                          27/07/2015



 
               

 

 

sábado, 20 de junho de 2015

Estatuto do Desarmamento - assunto de adulto

             
                            


            É absolutamente lamentável ver jovens - e nem vou citar nomes aqui, para não dar visibilidade a quem não a merece - defendendo  o fim do Estatuto do Desarmamento. O que é que deu na cabeça dessas pessoas que acham que podem reverter conquistas positivas simplesmente porque têm mentes confusas e nenhuma coerência? Como é que se pode respeitar jovens que se manifestam de forma barulhenta contra o governo sempre que querem, pelas ruas do Brasil,  sem serem presos ou "sumirem no espaço", mas ainda assim imaginam-se numa ditadura e, ao mesmo tempo, acham que poder portar uma arma sem qualquer restrição para se "defender" é exercício de "liberdade" e "avanço",   em uma época cujos ânimos andam tão acirrados que uma simples fechada no trânsito pode resultar em assassinato ou em que um cachorrinho usando uma bandana vermelha pode ser maltratado por todo um grupo de malucos por ser petista??? Que fé é essa no bom senso geral, no autocontrole, na sanidade mental do ser humano, se olhamos em volta e vemos, o tempo todo, demonstrações que nos levam a concluir o contrário? Através de que lentes esse pessoal está olhando para o mundo, para enxergá-lo de forma tão distorcida? Como talvez perguntasse Nietzsche: qual a origem do seu pensamento?  Pense: se os homens tivessem bom senso suficiente para portar armas sem que isso representasse perigo para todos, os homens não precisariam de armas. 
                Os jovens precisam entender que quem tirou do fundo do baú essa questão do Estatuto do Desarmamento foram deputados eleitos com a ajuda da indústria de armas.  Eles precisam, agora, cumprir o que prometeram aos que bancaram suas campanhas. Precisam criar mecanismos que deem lucros para essa indústria. Precisam ajudá-la a vender armas. Simples assim. Ou seja: pouco importa o povo, a segurança, a criminalidade, os acidentes domésticos, e tudo o que beneficie seus eleitores. O que importa é só pagar sua dívida, se manter lá, e garantir patrocínio para as próximas eleições. E os que estão defendendo essa ideia esdrúxula, estão, mais uma vez, lhes servindo como massa de manobra.    
                Esses jovens deveriam estar na escola, estagiando, batalhando pra ganhar sua própria vida decentemente, constituindo família para  entender os mecanismos dos relacionamentos duradouros e aprender a valorizar a vida... Maturando suas ideias, enfim, para depois - bem depois -, começar a dar palpite em assunto de adulto. Não basta ter lido todas as enciclopédias do mundo para ser adulto. É preciso ter vivido. E é preciso, também, ter adquirido responsabilidade para lidar com a própria capacidade de persuasão e saber que sair por aí pregando tudo o que lhe passa pela cabeça pode causar grandes estragos. E Estatuto do Desarmamento é, indubitavelmente, assunto de adulto.


                               
                                                               Ana Lucia Sorrentino

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Comigo mesma





















Para agradar a quem

me faria eu outra,

diferente da que sou,

se a solidão me acolhe sem ressalvas,

semeando em mim

o que de mais genuinamente meu,

apesar do mundo,

em mim restou?

                    
                                                Ana Lucia Sorrentino