domingo, 12 de outubro de 2008

Vovó Vai ao Sus - A Charge da Vovó

Olá!
Quando publiquei o vídeo "Batatas", prometi que a Vovó, seu personagem principal, passaria a representar a terceira idade, aqui no meu blog. Hoje estou publicando a primeira Charge da Vovó, "Vovó Vai ao Sus". As charges da Vovó serão pequenos vídeos que abordarão situações vividas por todos os idosos, e nas quais temos que pensar! Graças a Deus, Vovó é super positiva, e sempre dá a volta por cima, então, prometo que, apesar das situações, muitas vezes, serem extremamente sérias, a charge será sempre agradável, pois carregará em si esse espírito jovem da Vovó! :) Verdadeiras lições de vida! Espero que se divirtam, e que comentem, para que esse trabalho tenha desdobramentos enriquecedores! Logo abaixo do vídeo, transcrevo o texto original, caso alguém tenha interesse!


Charge da Vovó I - Vovó Vai ao Sus

Essa noite Vovó dormiu muito mal. Assim que acordou e se sentou na cama, percebeu uma dor horrível no ombro direito. Logo lembrou que passara toda a tarde de ontem lavando roupas. Erguera e abaixara o varal inúmeras vezes. A danada da bursite voltara. Levantou, desanimada, e, enquanto fazia e tomava o café da manhã, já decidiu que iria até um posto de saúde, tentar passar por uma consulta. Não queria ficar com aquela dor... Arrumou a casa da melhor forma que pôde, e saiu. Tomou a maior canseira no ponto. Seu ônibus não vinha nunca! Acabou ficando sozinha! Até que, finalmente, seu ônibus apontou na esquina! Se adiantou, fez o sinal, e foi se posicionando. Mas, como é baixinha, e o braço doía muito, não conseguia alcançar o degrau do ônibus. O motorista não teve paciência, acelerou, e foi embora! Vovó ainda tentou fazer um gesto, pedindo que parasse, mas ele não deu a mínima! E ela ficou lá, desacorçoada e cheia de dor! Pelo tanto que esperara, calculou que já devia ser quase uma hora da tarde. Logo estaria morrendo de fome. Resolveu voltar pra casa. Assim que chegou, tomou umas gotinhas de novalgina, uma sopa quentinha, e foi descansar assistindo TV, na poltrona da sala. Se distraiu, relaxou, e acabou dormindo. Até que roncou alto, e acordou, assustada! Hi... - pensou. Cadê a dor? A dor tinha passado! Levantou-se rapidamente, deu uma testadinha no ombro, e se certificou de que estava bem! Imediatamente, lembrou que as roupas já deviam estar secas. Correu à lavanderia, abaixou o varal e começou a recolhê-las. Nessa idade - pensou - cada minuto de saúde tem que ser aproveitado! E agradeceu a Deus, feliz da vida!

Beijos!

Analú

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

XVII - Começando a pensar no "Barba Azul"

Olá! Vamos começar a estudar "O Barba Azul"? Mais uma vez, vou propor que pensemos a respeito do assunto antes de ler o conto. Acredito que, dessa forma, você amadurece e se abre para captar nele sua riqueza, e aproveitar suas lições.

Antes de começar a escrever sobre "O Barba Azul", fiquei me perguntando qual seria a melhor abordagem para dar início a esse tema. Sei que muitas mulheres conhecem esse conto, mas tenho certeza de que isso não acontece entre a grande maioria. Sempre que converso com mulheres a respeito do "Mulheres que Correm com os Lobos", acaba sendo quase inevitável falar sobre o Barba Azul, tal a importância do conto dentro dessa obra, e do personagem em nossas vidas. E, surpreendentemente, percebo que a grande maioria delas não tem a menor idéia de quem é o Barba Azul. Digo surpreendentemente porque esse personagem marcou minha infância de tal forma, que, para mim, seria inimaginável pensar que outras pessoas não o conhecessem. Seria como se hoje, alguém nos dissesse não conhecer Harry Potter, ou James Bond. Lembro-me de ter lido e relido esse conto inúmeras vezes, muito provavelmente porque ele me aterrorizava e consolava, uma vez que o Barba Azul é vencido pela mocinha apavorada. Naquela época, é claro, eu não tinha consciência da riqueza do conteúdo do texto. Apenas o lia e relia, e me encantava com um desenho em branco e preto, cujo único detalhe colorido era o azul de uma mecha da enorme barba do "monstro".

Vejam como não podemos subestimar o valor das histórias: mesmo não tendo maturidade para compreender todos os aspectos abordados no conto, o principal eu apreendi - o mal existia. Às vezes, podia travestir-se de riqueza e amabilidade. E precisávamos estar atentas para nos proteger dele!

Recentemente, tive a grata satisfação de descobrir que a maravilhosa escritora Ruth Rocha publicou, pela Editora FTD, sua versão dessa história para crianças. Espero que muitas meninas possam se beneficiar com seus ensinamentos. E que possam entrar na vida mais preparadas para enfrentar esses monstros, sejam eles personagens do mundo ao seu redor, sejam eles parte de sua psique. Porque, o grande perigo para uma mulher, não é não conhecer o conto "O Barba Azul". Mas desconhecer que o Barba Azul existe, na vida real, e também dentro de sua psique.

Assim, decidi que minha abordagem começa por aqui:

O Barba Azul Existe - e você precisa enxergá-lo

É claro que qualquer pessoa que esteja lendo este post já percebeu que o Barba Azul representa algo de mal. Clarissa o define como um verdadeiro potentado predatório, cuja intenção é nos destruir. Ele pode ser um parente ou conhecido seu, no mundo físico, mas ele também existe dentro de você. É um aspecto de sua psique que trabalha contra a sua natureza, e contra tudo o que for positivo: contra o desenvolvimento, contra a harmonia e contra o que for selvagem. Ele "surge no meio dos planos mais significativos da alma, isola a mulher de sua natureza intuitiva e a faz sentir-se frágil diante da vida".

E, por que insisto em dizer que o Barba Azul existe, se, no mundo em que vivemos, a mídia privilegia a desgraça, e basta ligar a TV ou abrir o jornal para que o Mal seja cuspido na nossa cara? Será que você já não sabe disso? Pra que ficar estudando o Barba Azul, se são tantos os “monstros” da vida real, enclausurando famílias inteiras, estuprando as próprias filhas, jogando garotinhas pela janela, escravizando seres humanos, que essa idéia de que “o mal existe”, e de que precisamos estar preparadas pra nos proteger dele já deveria estar mais do que entranhada em nós. Pergunto: está?

Estamos preparadas para, na presença do predador, detectá-lo, e combatê-lo? Estamos preparadas para detectar qual parte de nossa psique joga contra nós, e anular o efeito de suas cruéis investidas? Se não, por quê? Vamos pensar nisso.

Quero trabalhar aqui a irrefutável teoria de Clarissa, sobre a negação do Mal, e também uma teoria minha, baseada em minha experiência pessoal, que acredito poder se aplicar à grande parte das mulheres. Neste post vamos pensar um pouco sobre a teoria de Clarissa.

Qualquer mulher que já tenha parado para pensar na educação que recebeu e no que a sociedade demonstra esperar dela, percebeu que há uma mensagem que se repete, implícita ou explicitamente: não veja, não tenha insight, não fale, não haja. Clarissa chama isso de "introjeções sombrias que, para as mulheres, são objeto de controvérsia". Ou seja: você recebe essas mensagens a vida toda, acaba acreditando que são verdadeiras, e as incorpora em seu modo de ser. Mas... sua mulher selvagem, sua alma, sabe que isso não está certo. O antídoto para o mal, a forma de expulsar o predador, é fazer exatamente o contrário. Clarissa nos aconselha: "tente prestar atenção à sua voz interior; faça perguntas; seja curiosa; veja o que estiver vendo; ouça o que estiver ouvindo; e então aja com base no que sabe ser verdade."

Um conselho como este pode parecer estranho: veja o que estiver vendo, ouça o que estiver ouvindo. Não é até engraçado? Não! Não é engraçado! É muito triste. O fato é que somos treinadas, desde crianças, a não ver o que estamos vendo, não ouvir o que estamos ouvindo. Aprendemos, desde cedo, a dourar a pílula. Amenizar as situações. Esconder o que é feio. Usamos eufemismos, palavras à meia-boca, expressões de constrangimento, e varremos a sujeira pra debaixo do tapete. Tanto fingimos não ver o que estamos vendo, que acabamos nos convencendo de que aquilo que estamos vendo realmente não existe. Complicado, não? Nem tanto.

Vou relatar aqui uma experiência pessoal que ilustra perfeitamente essa situação, e peço que vocês pensem nisso, e, se possível, me ajudem a encontrar as respostas para as inevitáveis perguntas que nos vêm à mente.

Eu era muito criança, e minhas irmãs e primas já eram adolescentes. Um bando, aliás. As meninas estavam sempre juntas, em cantos, ou trancadas em quartos ou banheiros, procurando privacidade para as conversas próprias da idade. As festas de família eram super agitadas, pois éramos em muitos primos, e quase todos na puberdade.

Um parente distante nos convidou para o aniversário de uma de suas filhas, adolescente também, e embora muito pequenina na época, tive a percepção de que a ocasião seria realmente especial, pelo clima de excitação que pairou em minha casa durante toda a semana anterior à festa. Especulava-se que roupas as meninas deveriam usar, quem estaria lá, que delícias haveria para comer... Mas não me lembro de ter ouvido nenhuma recomendação especial por parte de ninguém. Estaríamos entre parentes e amigos e, conseqüentemente, deveríamos estar seguras, em ambiente inofensivo. O clima era festivo, e todos só pensavam em coisas boas.

A festa foi ótima, mas, repentinamente, aconteceu algo que só vim a entender realmente agora, mais de quarenta anos depois! Num determinado momento, uma das meninas quis ir ao banheiro, e, como era costume quando se juntavam, todas a acompanharam. Iam retocar o batom, se olhar no espelho, falar bobagens, meninas em grupo no banheiro era (e continua sendo) sempre uma farra. Como era a caçula, e me consideravam criança demais pra me convidar pra esse tipo de bagunça, eu observava de fora. Lembro-me de ter visto todas entrando no banheiro, fazendo uma grande algazarra. Mal a porta se fechara atrás da última a entrar, e a festiva bagunça se transformou numa enorme gritaria. A porta se abriu, e as meninas saíram correndo, apavoradas, uma querendo passar por cima da outra, para sair dali o mais rapidamente possível! Sem entender o que acontecera, fui atrás, mas os convidados já se concentravam em frente ao bolo, para cantar parabéns, e a agitação das meninas acabou se diluindo na bagunça generalizada. Eu sabia que havia acontecido algo, mas era muito pequena, e, como ninguém comentou nada, também não perguntei. A coisa morreu ali. Não fosse um certo clima de consternação geral na semana seguinte ao ocorrido, poderia se dizer que, realmente, nada acontecera.

Alguns anos depois, adolescente, eu ainda me lembrava do episódio, que me causara grande estranheza. Toquei no assunto, e minha irmã mais velha desconversou. Muito à meia-boca, falou algo sobre alguém da família ter hábitos estranhos, e, sinceramente, continuei não entendendo nada. Meses atrás, voltei a tocar nesse assunto, com a mesma irmã, e conversamos de mulher para mulher, como não poderia deixar de ser. Só então fiquei sabendo o que acontecera realmente naquela ocasião.

Vou contar pra vocês, com todas as letras, como seria absolutamente normal se a nossa sociedade tivesse interesse em descortinar a verdade: quando as meninas entraram no banheiro, deram de cara com um conhecido da família com as calças abertas e o pênis ereto para fora! Ele estava ali, naquela situação, propositalmente, esperando-as para se exibir! Elas, totalmente desavisadas, saíram todas correndo, apavoradas!

O mais grave nisso tudo é que os adultos da família sabiam que esse homem estaria na festa, e tinham consciência dessa sua tendência, que já se revelara em ocasiões anteriores.

Pergunto, e gostaria muito que vocês me respondessem:

- Não seria o caso de terem alertado as meninas, para que elas se cuidassem?
- Não era importante que, pelo menos, conversassem com elas depois do acontecido, para saber que impacto isso lhes causara?
- Será que era tão complicado assim falar abertamente sobre esse assunto?
- O fato de ninguém ter conversado a respeito do episódio, embora todos percebessem o quão constrangedor ele fora, significou o quê?

Pois saibam: não se falou abertamente, nem de forma alguma. O episódio foi enterrado sem maiores explicações. Quem não tivesse compreendido o porquê da atitude daquele homem, que metabolizasse o acontecido como pudesse, porque nenhum adulto se proporia a falar sobre o caso.

Hoje, você pode pensar que não se pode usar como parâmetro uma história de quarenta e tantos anos atrás, porque o mundo e as pessoas evoluíram muito de lá pra cá. Mas, olho a nossa realidade atual e vejo inúmeras situações semelhantes, e não percebo uma mudança muito significativa na maneira das pessoas lidarem com elas... Apesar de termos muito mais acesso à informação, quando os problemas estão muito perto de nós, há uma enorme dificuldade em se falar abertamente sobre eles.

Infelizmente, ficamos sabendo, a todo momento, de casos e mais casos de famílias inteiras acobertando todo tipo de loucura. Pais pedófilos, que abusam por anos a fio dos próprios filhos, sem que isso venha à tona; alcoólatras que nem ao menos percebem que são alcoólatras, porque ninguém tem coragem de falar sobre isso; mulheres que apanham freqüentemente, e que não conseguem pedir ajuda a ninguém; pessoas doentes, que não têm coragem de se assumir doentes... Tanta coisa...

Quem já não mordeu a língua para não chamar de agiota aquele conhecido que vive de emprestar dinheiro a juros extorsivos, porque seria ofensivo? Na nossa sociedade, é falta de educação ou "preconceito" (veja só!) chamar o gordo de gordo, o careca de careca, o pobre de pobre, o negro de negro, o velho de velho... Ou seja: não podemos dar nomes aos bois, porque é feio.

Não estou defendendo aqui a idéia de que devamos sair por aí fofocando a respeito da vida alheia, julgando e condenando, ou atirando pedras em quem tenha problemas. Defendo uma maneira realista de ver o mundo e a vida, o que nos dará competência para enxergar o Barba Azul, se ele aparecer. No caso em questão, a família poderia, sim, de forma discreta, ter alertado as meninas que iriam à festa, explicando-lhes a situação, não para que se apavorassem, mas para que não estivessem despreparadas, e soubessem se defender do perigo latente. E, uma vez que se criou a situação desagradável, essas meninas mereciam, sim, que algum adulto conversasse com elas a respeito do problema, para que não restassem, no final, dúvidas incômodas em suas vidas. Podemos saber como cada uma metabolizou o acontecido? Provavelmente, o que, para uma delas, menos sensível, foi apenas algo engraçado, para outra pode ter sido um fator determinante do seu comportamento sexual, por ter enxergado agressividade na sexualidade masculina.

Imagino que, no final das contas, mediante o absoluto silêncio que se fez em relação ao caso, a mensagem que restou na cabeça das meninas que correram do banheiro, tenha sido: quando a coisa parece ser muito feia, melhor fingir que nada aconteceu. E posso dizer que, se cada uma de nós começar a pensar na própria vida, vai encontrar inúmeras situações em que a conclusão a que chegamos foi essa.

Você lembra de algo assim em sua vida? Alguma coisa que foi tão abafada por todos ao seu redor, que você chegou à conclusão de que o melhor a fazer seria fingir não ter visto, não ter ouvido, e não falar nada? Será que, de tanto passar por isso, você não introjetou essa idéia de não enxergar o que é muito feio ou ruim? De negar a realidade? Pense nisso. E me conte. Abra os olhos e veja, de verdade, o mundo ao seu redor.

Essa situação me fez lembrar dos três macaquinhos da lenda dos três macacos sábios. Você conhece? Vamos falar sobre ela no próximo post!

Mas vou ficar aqui, esperando seus relatos de "negação da realidade".

Beeeijos!

Analú :)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

XVI - Batatas

Olá! No último post, que foi há muuuuuito tempo, eu havia comentado que estava preparando um vídeo, o Batatas, que tinha tudo a ver com o conteúdo desse blog. De lá prá cá, a ausência de novos posts se deve justamente à trabalheira que foi fazer esse conto ilustrado. Eu havia imaginado que seriam umas 90 ilustrações, mas foram mais de 140!

O importante é que acho que valerá a pena. Ele também é mais uma "provocação" que quero fazer aqui. Ele fala justamente sobre algo que repito sempre: cuidar de tudo e de todos não é suficiente para que você seja feliz. É preciso que você cuide de você. Nada contra cuidar dos outros também, se essa é sua vocação, mas nunca se esqueça de você mesma. Nunca se abandone, nunca se deixe esvaziar, nunca se distancie de sua alma.

Fiz questão de me dedicar a esse trabalho, porque acredito que um vídeo com um toque de graça possa atingir muito mais pessoas do que um conto, e desejo, do fundo do meu coração, que, dessa forma, um número grande de mulheres possa parar para pensar um pouco. Em tudo: na vida, na velhice, na solidão... nem sei quantos sentimentos posso despertar contando essa pequena história tão simples, mas verídica.

É esse justamente o meu objetivo: que vocês assistam o vídeo, que se emocionem, que pensem a respeito, que se solidarizem com essa velhinha tão simpática. Que, aliás, de hoje em diante representará a terceira idade aqui no meu blog.

E peço que comentem, que falem a respeito de seus sentimentos, que me digam o que pensam a respeito da velhice, se a temem ou se a esperam tranqüilamente. Ou se nem pensam nisso. Que me contem suas próprias histórias, ou histórias que conhecem, que tenham a ver com esse tema.

Espero que, apesar do conteúdo do vídeo ser extremamente sério, vocês possam se divertir um pouco. Abaixo do vídeo vou transcrever o texto na íntegra, caso interesse a alguém.

Bom vídeo!



Batatas

Batatas. Precisava comprar batatas. Se tivesse algumas agora, não passaria por esse apuro. Ficara esperando o neto durante toda a tarde. Viria buscá-la pra passar o fim de ano com a família. Mas... O que acontecia, que ele não aparecia? Se soubesse que estaria em casa até uma hora dessas, teria dado uma saída, até a quitanda, ao menos. Comprava algumas batatas e pronto. Fazia uma sopinha...
Voltou à cozinha. Abriu de novo a geladeira. Não era preciso muito esforço pra chegar à conclusão de que estava "a zero". As prateleiras vazias pareciam zombar dela. Fechou a geladeira, aborrecida. Podia ir até a padaria, comprar uns pãezinhos... Mas... E se o neto aparecesse, nesse meio - tempo? Iria embora, se não a encontrasse. Era isso. Se não a encontrasse, não teria paciência pra esperar. Iria embora, com certeza.
Sentou, desgostosa, na poltrona em frente à TV. Uma TV centenária, que o outro neto lhe dera. As imagens mudas, em branco e preto, não faziam sentido. Levantou-se, foi à janela. O mundo a cores era bem melhor.
Esticou o olhar pro relógio cuco, na parede. Oito e meia. Estava tarde. Talvez fosse melhor ir até o orelhão, dar uma ligada pra filha. Saber o que é que estava acontecendo... Não. Não estava acontecendo nada - disse a si mesma. O neto estava atrasado como sempre, só isso. A fome é que estava aumentando sua impaciência.
Foi à cozinha, esquentou um pouco de café. Vasculhou o armário e encontrou algumas bolachas de água e sal. Se tivesse um pouco de manteiga... Manteiga. Nunca mais comprara manteiga. Só margarina. Desde que sua pensão fora cortada pela metade, havia uma série de coisas que não fazia mais. Deixara de fazer mercado, porque o genro lhe garantia uma cesta básica. Era sozinha, não precisava de muito para viver... Mas, que diabo... - pensou. Ficar na lona desse jeito era até uma vergonha... Às vezes tinha vergonha. Não sabia ao certo de quê, não importava que estivesse só. Era uma vergonha íntima, perante si mesma. Jamais comentara isso com ninguém, mas era algo que a incomodava profundamente. Essa sensação de vergonha. Vivera toda sua vida se dedicando aos outros. Ao marido, aos filhos, aos netos... Trabalhara arduamente, durante toda a vida. Agora tinha que dividir uma mísera pensão com a segunda mulher do marido. - Coitada... - Pensou, sorrindo, nessa outra infeliz. Que faria ela com a parte que lhe cabia? Devia sentir vergonha, também...
Lavou a xícara, sacudiu a toalha no tanque, e então ouviu uma buzina. Enfim, o neto chegara. Correu à sala, fechou a janela, desligou a TV, voltou à cozinha, certificar-se de que fechara o gás, e saiu.

Na casa da filha, a bagunça era grande. Muita gente. Os filhos, genros e noras, os netos com suas esposas e alguns bisnetos. Crianças barulhentas. Comiam vorazmente, muito agitadas. Lúcia lhe deu um prato e disse que se servisse. Estava em casa, sabia disso. Sabia? - Vovó perguntou a si mesma. Não era isso o que sentia. Segurava o pesado prato de porcelana, indecisa. Lúcia montara uma mesa enorme. Havia uma variedade tão grande, que vovó não sabia ao certo o que escolher. Se comesse de tudo, com certeza passaria mal. A filha, percebendo sua angústia, arrebatou-lhe o prato da mão e começou a servi-la. Uma boa porção de salpicão, arroz com uvas-passas, farofa e perú. Não. O peito não. A carne era muito seca, entalava na garganta. Lúcia lhe cortou uma sobrecoxa e arrumou-lhe uma cadeira. Que comesse bastante, era fim de ano!
Vovó comeu demais. Talvez tivesse bebido um pouco demais, também. O genro lhe enchera por três vezes o copo de vinho. Agora estava mal. Lúcia lhe pegou pela mão e levou-a ao quarto de Jorge, o único neto solteiro. Ajudou-a com as roupas. Pronto. Um "engov" e cama. Acordaria bem. Abriu o respiro da janela, pra que se sentisse melhor.
- Boa noite. Feliz ano novo, mãe. - Saiu, batendo a porta.
Estava só de novo. Não, agora era diferente. Ouvia o ruído do pessoal, lá embaixo. Não era como quando apagava o abajur, em seu quarto, todas as noites. Não havia aquele silêncio assustador que parecia querer engoli-la. Podia relaxar. Não era preciso nem rezar... Havia gente por perto.
Em alguns minutos roncava.

O primeiro de ano fora bom, também. Ajudara Lúcia com o almoço, se fartara de comida e de companhia. Assistira TV colorida, conversara com alguns conhecidos que há tempos não via... Estava feliz. Lúcia insistiu para que ficasse até quarta. Acabou ficando. Embora tivesse consciência de que não podia ficar ali eternamente, não havia porquê voltar às pressas. Não tinha ninguém lhe esperando...

Estava só, na cozinha, aguardando que Jorge lhe chamasse. Ia levá-la pra casa. De repente, lembrou-se de que estava "a zero" em casa. Talvez no dia seguinte, à tarde, fizesse algumas compras, mas não tinha nada para o almoço... Correu os olhos pela cozinha e achou batatas, numa fruteira, ao lado do fogão. Se levasse duas ou três já seria suficiente para uma sopa. Procurou numa gaveta um saco plástico, guardou duas batatas, - duas bastavam, eram muito grandes - colocou o saco dentro da sacola de papel onde levava as roupas, e saiu. Jorge já descia, com a chave do carro na mão. Despediu-se de todos e se foi.

A casa lhe pareceu mais vazia. Era sempre assim. Jogou a sacola de roupas num canto da lavanderia, foi ao banheiro, disse "boa noite" à própria imagem, no espelho, e foi dormir.
Não quis enfrentar o quarto escuro. Acendeu o pequeno abajur, no criado-mudo. Às claras o silêncio não parecia tão assustador. Pensou nas noites que passara dormindo ao lado de Jorge. Era reconfortante estar perto de alguém. Pensou na filha. No genro. Nos netos e bisnetos. Pensou na vida. E na própria solidão.
Planejou o dia seguinte. Acordaria cedo, como sempre. Lavaria as roupas que trouxera sujas da casa da filha, faria uma sopa para o almoço... As batatas! - Lembrou. Estavam dentro da sacola de roupas, jogadas na lavanderia! Não havia mal nenhum nisso... Afinal, não estavam jogadas no meio da roupa suja... Havia colocado-as dentro de um saco plástico... Não sabia exatamente porquê, mas a idéia das batatas no meio da roupa a deixava aflita. Teve a sensação de que não dormiria bem se não as levasse para a cozinha, se não as colocasse num local apropriado. Levantou-se e, com um passo arrastado, chegou à lavanderia. Pegou a sacola de papelão, tirou de dentro dela as roupas que teria que lavar no dia seguinte e não encontrou mais nada a não ser um saco plástico vazio. Confusa, pegou o pequeno saco e então viu que estava furado. Assim como haviam entrado por um lado, as batatas haviam saído pelo outro. E, provavelmente, haviam rolado para o piso do carro de Jorge. Então se deixou dominar por uma aflição enorme. Numa fração de segundo pôde ver Jorge encontrando as batatas, no carro. Acharia estranho, as levaria para casa e comentaria com a mãe. Lúcia, imediatamente, ligaria os fatos. Chegaria à conclusão de que a mãe pegara as batatas sem avisá-la. Sentiu um mal-estar. Correu à cozinha, para sentar. Jamais poderia ter pego qualquer coisa sem pedir a permissão de Lúcia! De repente lhe ficava claro que um gesto que lhe parecera tão natural, poderia ser interpretado como... como roubo! É claro! - Pensou. Pegar algo sem o consentimento do dono era o quê? Roubo! Roubara as batatas e havia sido pega. Agora tinha que se explicar.
Voltou à cama. Olhou o relógio. Já era madrugada. Não poderia ligar agora para a filha. Assim que amanhecesse, iria à casa dos fundos, pediria para telefonar. Explicaria tudo à Lúcia. Que pegara as batatas num momento em que estava sozinha, que esquecera de lhe avisar... Pediria desculpas, havia agido mal. Passou a noite toda se revirando nos lençóis. Estava quente, e a preocupação não a deixou dormir.
De manhã, depois de um rápido banho, sem nem ao menos ter tomado um café, correu à vizinha.
- Lúcia! - Exclamou, ao ouvir a voz da filha ao telefone. Então, muito sem jeito, explicou-lhe o que acontecera.
Lúcia riu. Achou graça na preocupação da mãe. Deu-lhe até uma bronca carinhosa por ter se preocupado com tal bobagem.
Vovó desligou, com o coração aliviado. Percebeu-se trêmula, e respirou fundo, ainda meio angustiada. Agradeceu à vizinha e foi pra rua.
Durante a caminhada até a quitanda, pôde pensar com mais calma a respeito de tudo. Restou uma sensação estranha de que algo em sua vida dera errado. Mas o quitandeiro já perguntava: - Que vai querer?
- Batatas. - Vovó respondia, magoada.


Este conto faz parte da coletânea Acasos, da autora deste blog, à venda pela Internet.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

XV - Férias Selváticas

Olá! Acabaram-se minhas férias auto-impostas, e cá estou eu, cumprindo meus ciclos. Espero que você tenha entrado em 2008 com o pé direito, e que este ano te traga muitas coisas boas! Desejo, do fundo do meu coração, que você consiga viver de acordo com suas mais profundas convicções. E, se você perceber que nem ao menos sabe exatamente quais são suas convicções, meu desejo é o de que você pense profundamente sobre isso.

Foi o que fiz, no início de janeiro. Depois das festas de final de ano, e de toda aquela obrigatória euforia generalizada, veio uma calmaria gostosa, e entrei numa introspecção que me ajudou a rever tudo o que tenho feito na vida. Posso dizer que, verdadeiramente, mergulhei fundo em meus sentimentos e, mais uma vez, bati longos papos comigo mesma. E me senti super bem, porque vi que tenho estado a meu favor.

Durante os últimos anos eu vinha fazendo contatos íntimos com minha alma, que, muitas vezes, clamava por coragem, para realizar mudanças que a fariam mais feliz. Depois de conhecer “Mulheres que correm com os lobos”, vi que havia um respaldo científico para tudo aquilo em que acreditava e passei a escutar minha mulher selvagem com muito mais carinho e atenção. Como resposta, ela parece ter se expandido, se manifestando muito mais claramente, e me apoiando em decisões difíceis, mas que eu sabia que me trariam tranqüilidade. Nunca, em toda minha vida, eu havia vivido tão intensamente o que sou de fato, e isso foi muito bom! Nunca tive uma percepção tão clara do que me faz bem, e do que não me faz bem. E nunca consegui defender tão ferrenhamente meu direito de viver como gosto, estando com quem quero, fazendo as coisas que amo, adequando-me aos meus ciclos, respeitando e sendo respeitada, sem hipocrisias. Posso dizer que consegui delimitar meus territórios, que estive alerta, mais consciente e intuitiva, que falei e agi em minha própria defesa, sempre que foi necessário, que já sei a quê pertenço e, finalmente, que já estou tendo uma visão bem mais clara de quem é da minha matilha. Enfim, apesar de ter problemas, como todo mundo, nunca estive tão confortável na minha própria vida, e isso minimizou incrivelmente esses problemas. Além disso, tenho identificado cada vez mais os lados negros da minha psique, conseguindo, na maior parte das vezes, dialogar civilizadamente com eles.

Outro saldo positivo do ano foi o fato de eu ter provado a mim mesma, empiricamente, que, quando me aceito, e fico do meu lado, as pessoas que realmente valem a pena também me aceitam.

Passada a fase introspectiva, foi natural ter o desejo de criar (você se lembra da história dos três rabinos?). Estive envolvida com artesanato, confeccionando algumas peças decorativas para enfeitar a minha casa, que agora digo que é uma casa feita à mão, de acordo com essa vida feita à mão que quero ter (você entenderá melhor essa expressão quando estudarmos a história dos sapatinhos vermelhos). Fiz um abajur de passa-fita multicolorido, pintei um velho vaso e o enfeitei com flores secas, e comecei a fazer um par de quadros que ainda não consegui terminar, porque é um trabalho muito elaborado. Mas estão ficando bonitos. Decorei uma caixa de madeira com um desenho feito em alumínio, e a presenteei ao meu filho, para guardar algumas tranqueiras. Ficou bacana! E andei fazendo bijuterias, que, ao lado das revisões de texto, são minha fonte de renda mais imediata. Como sempre, não consigo fazer o óbvio. Pesquisei várias formas de moldar e colorir a cerâmica plástica, que é o material com o qual mais trabalho, porque me encanta a idéia de pegar um pedaço disforme de massa e transformá-lo numa peça de arte que fará com que alguma mulher se sinta mais bonita.

Também assisti vários filmes bons, que não havia assistido no cinema. E estive me dedicando às ilustrações de um conto que vou postar nesse blog, porque tem tudo a ver com o conteúdo dele. O nome do conto é “Batatas”, e fala sobre uma velhinha que se vê muito solitária depois de uma vida dedicando-se aos outros. Já fiz 73 ilustrações. Acho que até o final serão umas 90. Esse conto me emociona, e espero que emocione minhas leitoras também. As ilustrações darão um toque levemente divertido a uma história triste. Descobri que ilustrar pode ser incrivelmente interessante, e espero que seja uma das minhas atividades profissionais, num futuro não muito distante.

Puxa vida, quanta coisa! Se alguém tivesse me perguntado à queima-roupa o que fizera durante as férias, talvez eu não lembrasse de nada! Porque não viajei fisicamente para lugar nenhum e, no consenso geral, férias são feitas para se viajar. Mas viajei em tudo o que realmente gosto. E fico feliz por estar vivendo de acordo com o que acredito e prego, e constatar, com a minha experiência pessoal, que o que venho estudando e defendendo é real. Eu vinha, há muito tempo, recolhendo meus ossos e, durante o ano de 2007, comecei a cantar para eles.

Um último comentário: quando comecei a escrever este texto, repassei tudo o que havia escrito nesse blog. E, ao reler a descrição que Clarissa dá dessa verdadeira síndrome que acomete as mulheres modernas, a “falta de alma”, senti um prazer gostoso, de quem fez o dever de casa. Reveja estes sintomas:

“Sensações de vazio, fadiga, medo, depressão, fragilidade, bloqueio e falta de criatividade são sintomas cada vez mais freqüentes entre as mulheres modernas, assoberbadas com o acúmulo de funções na família e na vida profissional. Esse problema, no entanto, não é recente. Ele veio junto com o desenvolvimento de uma cultura que transformou a mulher numa espécie de animal doméstico. "

Você ainda está nessa? Eu, não mais! rsrsrs...

O próximo post será sobre “O Barba Azul”! E, em breve, “Batatas”, um conto ilustrado!

Beijão!

Analú