São
Paulo, 10 de maio de 2012
Querido
Germano:
Hoje, antes mesmo que eu acordasse, Lou
Salomé veio me ver.
Eu não sei se se apiedou de mim, por
conta da difícil semana que tive, mas veio doce e parecia cheia de vida,
querendo me dar algum consolo. Estava mesmo com um ar compassivo, como se
quisesse me aliviar, mostrando-me que é possível passar por tudo e sobreviver.
Sua presença ao meu lado, sentada em minha cama, me dizia isso, veladamente. Trazia
os cabelos soltos, e nunca, em nenhuma foto sua seu farto volume me parecera
tão belo. A luz própria que eu sempre ouvira dizer que ela tem era ainda mais
viva do que nos relatos que eu lera. Estava ofuscante, como se estivesse sob o
sol numa pintura impressionista. Linda.
Disse ter lido o que postei no blog,
e ter se identificado tanto com minha sede de viver, que teve vontade de passar
por aqui para me confortar e me dizer que me compreende. E me trouxe algumas
palavras, uma pequena poesia, num papel amarelecido. Fiquei tão emocionada,
Germano, que guardei o pequeno papel na gaveta da minha mesa-de-cabeceira e
agora ele está lá, me esperando, para que eu o leia antes de adormecer. Não
tive coragem de ler na presença de Salomé e percebi que ela me entendeu
perfeitamente, consentindo, com um sorriso, que eu guardasse seu escrito. Lerei
imediatamente antes de fechar os olhos, pra que suas palavras fiquem impressas
em minha mente e, quem sabe, ela volte a me aparecer em sonho.
Quando me percebeu surpresa ao saber
que lera o que escrevi, me confessou que já me lê há um bom tempo e que o que a
acordou para os meus escritos foi o fato de, por duas vezes, eu ter te enviado
aquele lindo poema dela, em que ela nos aconselha a ousar. Percebendo tamanha
admiração da minha parte, quis saber quem era essa mulher que tanto a conhecia
sem que ela a conhecesse. Curiosa, passeou pelos meus textos, e encontrou neles
algo que lhe agrada. Não me disse exatamente o quê, mas me olhou como se já
conhecesse minha alma e tivesse por ela grande amizade.
Disse-me, então, que quis me
conhecer de perto, para poder me dizer algumas palavras de estímulo e de
coragem. Que sabe das dificuldades que enfrento por não me curvar ao que
esperam de mim. Que percebeu que sou um pouco rebelde e muito apaixonada. E que
lhe ficou evidente que me movimento muito mais em função de meus estímulos
internos do que dos externos, e tudo isso lhe agradou. Notou, em algumas das
minhas poesias, questionamentos que sempre se fez em relação ao amor e às
regras mesquinhas que a sociedade lhe impõe, apequenando-o infinitamente para
que caiba dentro de pequenas saletas sem janelas, onde, talvez, amantes inseguros
se sintam mais protegidos do que num mundo tão cheio de paixões. E se riu
disso, porque, afinal, são as paixões que colorem a vida, e se os amantes
compreendessem que temos uma individualidade e que nem tudo precisa ser
revelado, as paixões durariam muito mais.
Também percebeu o quanto me encantam
jovens poetas, e como me relaciono bem com homens, no que se identifica comigo.
Também os acha apaixonantes. Rimos, alegres, por percebermos em nós uma
compreensão tão grande da outra, que parecia nem ser necessário conversarmos,
tudo estava dito. E, nesse instante, percebi que sua casa deve mesmo ser a
felicidade e concordei sem ressalva alguma com sua ideia de que a única
perfeição é a alegria.
Germano, ainda com um resto de
sorriso nos lábios Salomé voltou a falar de você. Me contou que lhe agradou
demais essa nossa amizade, porque percebeu algo de belo no nosso interesse
mútuo, que nos faz crescer e produzir. Tenho pra mim que Salomé ama tanto o
amor e a criação, que veio para me estimular a prosseguir, porque sabe que preciso
ganhar a minha vida e que às vezes fraquejo, porque escrever ainda não me
garante a subsistência. Como que me apontando uma saída, me falou dos textos
que vez ou outra comercializa para cobrir suas despesas, e me disse viver na
simplicidade, mas mostrou-se consciente sobre ser o meu mundo muito diferente
do dela.
Contei-lhe que nos dias de hoje, aqui onde vivo, é preciso se
trabalhar muito para se viver com um mínimo de dignidade, mesmo que tenhamos um
estilo de vida simples, e que nossos valores morais se sobreponham aos
materiais. Mas não me prolonguei nesse
assunto, por achar que Salomé poderia considerá-lo enfadonho, uma vez que é
enfadonho de fato.
Perguntei-lhe então se também lia
seus textos, Germano, e ela me disse que lera apenas uma poesia sua, por estar
entre as minhas. Justamente a poesia que
você me dedicou, naquele dia em que eu estava injuriada por ter sido ofendida
por um leitor mal-educado. “Não deixe de escrever”. Obrigada, mais uma vez, Germano. Sua poesia
transformou aquele dia que havia começado tão mal num dia feliz. Creio ter sido
essa poesia que fez saltar aos olhos de Salomé o quanto de positivo há no nosso
relacionamento, poeta.
Mas,
embora tenha lido apenas essa poesia, ela leu a carta que você mandou pro
Rilke, porque ele falou sobre você e sobre a carta com tanto carinho e respeito,
que a curiosidade a fez pedir-lhe que lhe mostrasse. Leu sua carta ao lado de
Rilke, e me disse que os dois se emocionaram. E que a resposta que Rilke lhe
deu, na verdade, já pressupunha a sua resposta aos questionamentos que ele lhe
fez. Que simplesmente pela beleza de sua carta, Germano, já seria possível,
mesmo sem ler qualquer poema seu, concluir que não poderia viver sem escrever.
Se Salomé e Rilke se emocionaram juntos ao ler sua carta, quem não se
emocionará ao ler suas poesias?
Por fim, Salomé me passou um recado
de Rilke, pedindo-me que o repassasse a você. Na verdade, um pedido. Pediu que continuemos
a amar e a criar, porque assim os deuses jamais nos abandonarão. E que não nos
percamos buscando grandes propósitos, porque a vida está nas pequenas coisas, como
nas grandes. No que é apenas visível e no que é imenso.
Quero que sinta, daí, a certeza que
estou sentindo aqui. E que, como eu, prossiga, sem vacilações, e contando
comigo.
Hoje, meu amigo, não há cético
convicto ou sofista talentoso que, mesmo com irretocável retórica, me convença
de que o afeto que nutrimos um pelo outro, por se dar nesse mundo virtual, seja
irreal. Aliás, você sabe que jamais considerei o virtual irreal. Se não pudéssemos amar quem
não podemos tocar eu não poderia amar Proust nem você Drummond. No entanto, bem
sabemos o quanto podemos ser intimamente tocados, mesmo sem sermos tocados
fisicamente. E o quanto, muitas vezes, quem nos toca fisicamente não chega
sequer a resvalar em nossa alma.
Essa visita de Salomé me caiu como uma
bênção, um endosso a tudo o que tenho feito e um estímulo para prosseguir,
confiante. Se Salomé me compreende como nenhuma irmã ou amiga jamais me
compreendeu, não preciso mais de compreensão alguma. Que esses mortos-vivos que
se arrastam por aí fiquem no mundo dos mortos, por que estou irreversivelmente
amasiada com a vida.
Germano, desculpe-me pela extensão
da carta. Mas a presença de Salomé me colocou em tal estado de alegria que mal
posso me conter e qualquer mínimo detalhe desse encontro e do que provocou em
mim me parece importante demais para ser omitido.
Vou agora em busca da poesia que
Salomé me deixou. E embora saiba ser grande a possibilidade de nada encontrar
na pequena gaveta de minha mesa-de-cabeceira, isso é absolutamente irrelevante,
porque sua passagem por aqui já me impregnou toda. Estou poesia pura.
Um
abraço apertado,
Analú
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