segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Meu desejo pra 2014


               
 
                 Já já 2013 acaba e começa 2014. A gente vai piscar e num instante vai ter passado toda essa euforia que trazem o Natal e o final do ano. E, como disse Saramago ao receber o Nobel: e daí?

                Não. Eu não quero criticar os que estão comemorando efusivamente. Desejo sinceramente que todos sejamos felizes à própria maneira.  

                Mas hoje me deu vontade de contar que duas perguntas insistiram em me acompanhar ao longo do ano: “e daí?” e “pra que tudo isso?”. E creio que elas me ajudaram, e muito, a definir minhas prioridades.

                Estive o ano todo fazendo o que era possível. Pouco pude escolher, o que muitas vezes me pareceu uma bênção. Mas, as poucas escolhas que pude fazer, as fiz todas no sentido de simplificar.   

                Enquanto 2013 caminhava, as pessoas polemizavam. Sobre tudo, absolutamente tudo. E eu me perguntava: e daí? O que resulta disso? Cansei de ver, neste ano que passou, inúmeras boas ações, públicas e privadas, serem duramente criticadas porque “poderiam ser melhores”. O bem se transformando em mal simplesmente porque havia uma grande disposição de muitos para a crítica destrutiva.  Compreendi que é melhor fazer, calado, mesmo correndo o risco de ser criticado, do que criticar e não fazer.

                Frente à enxurrada de contradições promovida pelos jogos midiáticos, por partidos políticos e por especialistas e leigos em todo e qualquer assunto, à febre opinativa que se deflagrou como praga pelas redes sociais, à falta de respeito pela opinião alheia, à agressividade em detrimento da boa argumentação, à leviandade das boatarias e à impossibilidade absoluta de se checar uma a uma as informações que se espalhavam com rapidez jamais vista, muitas vezes me vi ceticamente muda e muitas vezes senti que, afinal, o que importa de verdade é indizível. Escrevi pouco, fiquei mais introspectiva.

                Esse ano que passou eu me mudei de um décimo segundo andar - onde a vista era maravilhosa, mas de onde eu via o mundo de longe -, para um prédio antigo, sem elevador, em uma rua de paralelepípedos, que não parece estar dentro de São Paulo. Estou montando meu lar à mão. Eu mesma revesti a parede da minha cozinha, fiz meu abajur, forrei meu gaveteiro antigo, e fiquei orgulhosa do resultado! Minha casa está ficando com a minha cara. Tive o prazer de conseguir escutar novamente o silêncio da noite, o despertar dos pássaros logo cedinho, e crianças brincando na rua. De ouvir a chuva, de ver estrelas, de ficar debruçada na janela. Encontrei gente simples, mais solícita e interessada. Fui trabalhar a 150 passos de onde moro e meti a mão na massa, literalmente. Fabriquei montanhas de pão sem glúten, na certeza de estar dando um alento aos celíacos.  E um dos melhores dias do meu ano foi o último dia de trabalho, lavando todo o equipamento da cozinha sob um sol forte, me relacionando com a água como não fazia há tempos. Me perguntei por que foi mesmo que eu fiquei tanto tempo revisando textos alheios, de gente que nem ao menos escreve por amor ou pela verdade e que tem na escrita uma roupagem de gala para o Oscar de uma vida de mentira.  Pra que tudo isso?

                Nos últimos meses desse ano eu raramente me maquiei, raramente pintei as unhas, e aposentei de vez o salto alto. E como foi bom... E cada vez mais, quando vejo mulheres se autoflagelando em horas e horas de cabeleireiro, montadas em saltos-agulha de sapatos de bicos finos, enfiadas em soutiens estruturados e jeans esturricados, me pergunto: pra que tudo isso?

                No ano que vem, eu quero ter apenas as contas que eu possa pagar, pra poder trabalhar apenas o suficiente. Quero trabalhar com prazer e junto de pessoas gentis. Quero estudar, porque amo estudar. Quero poder não só comer, mas saborear. Quero poder dormir até descansar. Eu quero conseguir dar atenção a quem me procura, compreender quem quer se fazer entender, ser compreendida por quem tem interesse no que penso e estar perto de quem me quer perto. E quero produzir. Produzir coisas boas de todas as espécies. Comidinhas, textos, poesias, arte, afetos... Eu quero assumir cada vez mais a minha simplicidade, e quero que as pessoas sintam que é fácil lidar comigo. E quero lidar com gente também fácil, acessível, gente de verdade.

                Esse ano que passou eu voltei a sentir que tenho pele. Ano que vem eu quero estar de pé no chão, cara lavada, coração aberto. Eu quero uma vida simples. Eu quero simplesmente dar conta da minha vida.

                E, se há algo bacana pra eu desejar a todos que talvez venham a ler esse texto, acho que é isso: eu desejo que  vocês deem conta das suas vidas. Que tenham caráter e dignidade. E que tenham tempo e disponibilidade interna pra serem felizes. Porque, acredito eu, é em cada um que começa um mundo melhor. 
                                                                     
                                                                  Beijão! :)          
                                                        Ana Lucia Sorrentino
 
PS: A perereca aí em cima sou eu mesma. ;)
 

 

 

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Faz sentido


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Que o momento filosófico
mais interessante
seja aquele em que,
por um instante,
você se perca.
Não na complexidade
do meu raciocínio,
mas em meus seios tesos
sob a camisa de tecido fino.
Que a inadequada questão pessoal
te flagre despreparado
e te faça corar,
inexperiente menino.
Que o que pulsa em mim
te deixe mais perturbado
que o fantasioso deus de Leibniz
e mais atônito
que o mundo ideal platônico.
Quando racionalmente
chegarmos à conclusão
de que ter prazer e ser feliz
é subversão
e quando,
buscando a minha verdade,
teus hábeis dedos
se embrenharem sem medo
por baixo do meu vestido,
terei então compreendido
que filosofar pode fazer sentido.
                                                             Ana Lucia Sorrentino
                                                                  07/11/2013                                                                       

terça-feira, 22 de outubro de 2013

De boa


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Eu vou desconsiderar prós e contras
e me livrar da confusão.
Quero estar por aí às tontas
e desformar  minha opinião
Quero viver que nem planta:
terra, sol, respiração.
Se chover, broto.
Florindo, então...
Desencano de vez de ter razão.
 
Ana Lucia Sorrentino
        23/10/2013

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Timidez


                                                         
                                                 A timidez, inesgotável origem de tantas infelicidades
                                                 na vida prática, é a causa direta, mesmo única, de toda
                                                 a riqueza interior.

                                                                                              Emil Cioran

 
Sempre que não foi, nunca mais seria. Passou.
Como o sonho que se quis prolongar e ao amanhecer voou.  Como o sol que a nuvem encobriu e a noite, por fim, roubou. Como a palavra atrasada, o consentimento tardio, o fervilhante beijo que sumiu pela balada. O olhar não percebido, o telefone perdido, a espera que desistiu. O encontro adiado, o entusiasmo amainado, o desejo domado. A gozada tão sonhada que a temida brochada frustrou. Vuupt! Já era.
Há, entre a vontade e a ação, o quase nunca vencido medo, que se fortalece em segredo.
A oportunidade é fumaça em campo aberto, qualquer brisa leva pra longe...
Seguimos, sem saber de nós nem de ninguém. 
 
                                                               Ana Lucia Sorrentino
                                                                                                       19/10/2013

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Liberdade é Monogâmica





















Firmei compromisso com a liberdade
e, de pronto, perdi a liberdade
de amasiar-me com qualquer outro alguém.
Com seu jeito serelepe,
promessas de grandes voos
e de muita novidade,
contraditoriamente
a liberdade é, das amantes,
a mais possessiva e monogâmica.
Ingenuamente pensei que teria liberdade.  
Hoje sei que me enganei.
Na verdade, a liberdade é que me tem. 

Analú
26/07/2012
 

domingo, 29 de setembro de 2013

Serena




                               
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Enovelei as teias
das minhas desilusões
e teço,
em fios de desesperança,
macia manta
que nem pronta já me aquece.
Silêncio de fim de tarde.  
Eu e minhas agulhas.
Pela cortina,
um sol que arde.
Em mim,
um coração sem fagulhas.
Me introspecto,
me assereno,
me aquieto.
Embalada pelo prazer
de não mais querer tanto,   
pra meu próprio espanto
descanso em mim,
enfim.
 
Ana Lucia Sorrentino  
Set/2013
 
Imagem:
 http://lilianaporter.com/individual.php?sectionId=5&section=installations&pieceId=668&title=Weaver (with hat)&currentImage=Weaver_with_blue_hat 10.jpg&pageNo=1&orderBy=date
Liliana Porter
Weaver (with hat) (2010)
wooden shelf, figurine, fabric
 

domingo, 16 de junho de 2013

Alckmin - tiro no pé


           

 
            “De repente surge um movimento que vem da internet e tem sua dose de irracionalidade e incendeia milhares de jovens.” (Luis Nassif, entrevistando Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, sobre a atual onda de protestos).           

            Dilma estava com a popularidade a mil. Haddad assumiu e em menos de seis meses já deu mostras de enorme competência. De repente, um aumento de tarifa dentro do já previsto, abaixo da inflação, detona uma onda de protestos que se dá de forma desorganizada, constituída tanto por gente que age de forma democrática e racional, quanto por mal intencionados que agem irracionalmente, depredando, bagunçando, provocando tumultos e, pior, que não respondem à abertura que Haddad dá para a conversa, uma vez que nem ao menos uma liderança organizada têm. Gente que se alia a um movimento sem prestar muita atenção a que bandeira estão defendendo ou a exatamente o que estão combatendo. E que acaba se deixando usar por uma direita mal intencionada que, ao abusar do poder que tem, atinge Haddad e Dilma e, enfim, ao governo PT.            

            A ação da polícia nas últimas manifestações foi realmente revoltante, mas temos que nos perguntar o porquê disso. Nada como colocar uma polícia agressiva e repressora nas ruas, calando à força uma juventude que não tem uma cultura de participação política e que tenta um ensaio, para provocar uma revolta geral contra tudo e contra todos. Surgem, de repente, protestos sobre tudo aquilo que está entalado em nossas gargantas. Num contexto em que todos os dias nos envergonhamos por ter que engolir políticos que se mantêm a todo custo no governo, mamando nas tetas do povo, sem ao menos termos a oportunidade de deliberar diretamente sobre isso (vide Renan Calheiros), é natural que a violência policial detone uma verdadeira revolução. O povo quer se fazer ouvir, e deve querer. Mas é preciso se organizar para atuar em causa própria, e não acabar virando joguete na mão de uma direita que não aceita o bom andamento dos dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. Lula e Dilma são uma pedra no sapato de uma direita conservadora que não engole o fato de um trabalhador ter provocado uma verdadeira revolução no Brasil, ao inserir a classe menos favorecida em um contexto no qual nunca teve espaço. Para aqueles que, como Danuza Leão, sofrem desgraçadamente ao perceber que o porteiro de seu prédio já pode ir a Nova Iorque fazer comprinhas, Lula e Dilma são como uma bala que entalou na garganta e que tem que ser cuspida a todo custo, mesmo que para isso seja necessário usar de golpes baixos.            

            Quem se manifesta precisa estar muito bem organizado e informado para fazer valer seu protesto. Segundo Haddad, manifestantes abordaram motoristas de ônibus exigindo que se aliassem ao movimento, uma vez que não haviam tido aumento de salários. Ao que os motoristas se surpreendiam, pois sabiam que haviam tido, sim, aumento de 22% ao longo dos últimos 3 anos. Os manifestantes também desconsideraram o bilhete único, que, ao ser implantado, fez com que os R$3,20 passassem a representar uma passagem e meia, não apenas uma passagem. Faltou informação, foco e organização.  

            Walter Benjamin, pensador do começo do século XX, em seu texto “Experiência e pobreza”, fala sobre os resultados do inacreditável desenvolvimento tecnológico da época. Diz Benjamin que uma geração que usara bondes puxados por cavalos na primeira fase da vida se viu, na idade adulta, agredida com extrema violência por uma tecnologia que se desenvolvera em ritmo dramático, em função da destruição. A esse desenvolvimento tecnológico que deu ao homem um poder de destruição do próprio homem jamais antes imaginado, Benjamin se referirá como “uma nova forma de miséria”. A experiência das duas guerras mundiais do início do século empobreceu o homem a tal ponto que ele precisou começar novamente do nada. Isso foi resultado do imenso poder da tecnologia. Para Benjamin, a extrema valorização da racionalidade terminou por produzir a irracionalidade. 
 
            De lá para cá, temos convivido com uma tecnologia que se impõe à força através da publicidade de forma tão agressiva, que a maior parte de nós se curva a ela sem muito questionamento. É claro que é fantástico podermos escrever, denunciar, mobilizar. Nunca tivemos tanta chance de gritar e de sermos ouvidos. Mas precisamos ter consciência de que estamos fazendo uso de instrumentos poderosos e de que, se é graças a eles que podemos nos informar, divulgar nossas ideias, formar opiniões e até mesmo organizar movimentos extremamente importantes para que o mundo caminhe para a frente, também é graças a eles que recebemos muita informação confusa, e, se não tomarmos cuidado, podemos encabeçar movimentos fundamentados em informação errônea, nos transformar em massa de manobra e promover o atraso. Isso é racionalidade produzindo irracionalidade.   

            Por fim, quero comentar que, embora seja possível teorizar sobre a forma ideal de se agir politicamente, há na política, como na vida, interessantes reviravoltas que parecem subverter qualquer planejamento e que me dão, às vezes, uma gostosa sensação de que vale a pena esperar pra ver. Um protesto que começou com a revolta por um aumento de R$0,20 nas passagens de ônibus, respondido pelo governo do estado com violência policial – e aqui precisamos lembrar que policiais são trabalhadores como todos nós, que cumprem ordens, mesmo que muitas vezes a contragosto, para continuar tendo o seu ganha-pão (seja isso válido ou não), está se transformando em uma enorme manifestação que pede a saída de Geraldo Alckmin. Tiro no pé. Bem feito. ;)
 

Ana Lucia Sorrentino
 

sábado, 20 de abril de 2013

Perspectiva



















Meu olhar me desencoraja
sinalizando que mais além
a larga alameda florida
finda em beco sem saída.
A experiência me assopra
que lhe dirija desdém.
Sigo em frente com coragem
e, passo a passo, abro passagem.
Então já não me detém
o que parecia findar.
Pois o fim nada mais era
senão o limite do meu pobre olhar.

                                               Ana Lucia Sorrentino



















































































 

sábado, 30 de março de 2013

Piva, a deselitização da filosofia e a desestigmatização da figura do ateu

        
 

         Recentemente Paulo Jonas de Lima Piva (1), um muitíssimo querido professor de filosofia da Universidade São Judas Tadeu, esteve no Super Pop, programa da Luciana Gimenez na Rede TV, representando a ATEA - Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, numa conversa miscelânica que tentava associar acontecimentos recentes, como a queda de um meteoro na Rússia e a renúncia do Papa, ao fim do mundo (2).
         Faço questão de frisar logo de início o quanto esse professor é querido para já no primeiro parágrafo deste texto dar uma martelada nietzscheana certeira nesse monstro pré-histórico que é o preconceito contra ateus. Ateus podem, sim, ser muito queridos e não há absolutamente NENHUMA justificativa para que se pense o contrário.
         Apesar do comportamento um tanto quanto estapafúrdio da apresentadora, a iniciativa foi louvável e Piva conseguiu usar de forma competente o pouco espaço que teve, deixando de lado a proposta sensacionalista inicial para esclarecer os equívocos que sempre rondam o ateísmo e a figura do ateu, provando que é possível aproveitar muito bem as “brechas da mídia conservadora” (nas palavras dele) em favor do esclarecimento.
         Durante cerca de uma hora um representante da igreja católica, um ufólogo, um sheik, um “especialista e pesquisador de ordens iniciáticas” - seja lá o que isso for -, um astrônomo e um ateu puderam estar num mesmo espaço mostrando seus diferentes pontos de vista, numa verdadeira lição de tolerância e respeito. Eventos como esse fazem o mundo caminhar para frente.
         Em fevereiro deste ano, quando aconteceu o Primeiro Encontro Nacional de Ateus e Agnósticos, em que Piva foi um dos palestrantes, o abordei para confessar meu estranhamento ao ver ateus organizando encontros e militando em favor do ateísmo, pois sempre me parecera que por sua característica autonomia intelectual eles prescindiam desse tipo de manifestação coletiva, tão própria das religiões. E ele me fez ver que nada há de estranho no fato de pessoas que compartilham das mesmas ideias desejarem estar juntas, debater, se confraternizar.  Percebi, então, que o ateu tem a mesma necessidade de pertencimento que qualquer um de nós tem, em maior ou menor grau, e que, talvez, para ele, seja ainda mais importante encontrar a sua turma, uma vez que ela é uma minoria e, pior, uma minoria estigmatizada.
         Basta um pouco de reflexão para que percebamos o que pode motivar um ateu a se manifestar publicamente em favor do ateísmo. Se pensarmos nas tantas barbáries cometidas pelos homens em nome de Deus, nos estragos que em pleno século XXI ainda fazem as hediondas guerras santas consequentes do fundamentalismo religioso, na manipulação e na exploração desmedidas que algumas religiões fazem de seus fiéis; se pensarmos no tanto de preconceito que se planta dentro das igrejas, em pregações que equivocadamente consideram a prática homossexual uma opção ou uma doença, que colocam a mulher em posição de submissão e que julgam e condenam sumariamente quem fez um aborto, já teremos justificativas suficientes para colocar em dúvida as tão propaladas virtudes da religião. Além disso, religiões trabalham com a fórmula “medo + culpa”, que quase sempre resulta em obediência cega, e promovem a não aceitação do que somos de fato, o que faz muita gente sofrer.
         Há aí muito mais do que “pequenos” motivos para que o ateu, sentindo-se liberto, deseje, num impulso altruísta, libertar quem ainda esteja preso aos grilhões da fé religiosa. Mesmo porque num mundo em que só alguns são livres, a liberdade não se realiza de fato.
          Também não é nada difícil compreender o desejo do ateu de vir a público não apenas para defender o ateísmo, mas para defender a si mesmo. As poucas vezes em que me perguntaram qual era a minha religião e eu respondi que eu era agnóstica, a perturbação criada pela minha resposta quase se solidificou no ar. As pessoas ficam constrangidas, sem saber o que dizer, e às vezes quase soltam um “sinto muito”.  Imagino a confusão interna que lhes acomete quando cruzam a ideia preconceituosa que têm do ateu com o que sou. Devem se perguntar: como é que pode, a Analú, essa pessoa do bem, agnóstica???
         Respondendo a um questionamento sobre religiosidade em uma de suas palestras, o respeitadíssimo médico e escritor Drauzio Varella relatou exatamente isso. Que muita gente que o admira não consegue compreender “como pode um homem tão bom não acreditar em Deus”. Que ser ateu parece invalidar, para essas pessoas, todas as boas ações que ele de fato fez. Que o olham como se ele fosse imoral, como se não respeitasse a vida. (3) É essa confusão que o senso comum faz que precisa ser definitivamente debelada.  
          A aparição de um filósofo ateu em um programa de TV e sua defesa da tolerância e do respeito ao pensamento alheio são exemplos que os ativistas ateus deveriam se empenhar em seguir. Porque nesse momento em que ateus estão conseguindo se organizar e expor publicamente seus argumentos, talvez mais importante do que metralhar a religião seja  a desestigmatização da figura do ateu. Só ateus que conseguirem respeitar e se fazer respeitar, penso eu, conseguirão desestruturar a argumentação religiosa sedimentada. Um discurso agressivo, ainda que fundamentado na razão, acaba, quase sempre, sendo um tiro no pé. O religioso tem uma resistência imensa a ouvir tudo o que destoa das pregações religiosas a que está habituado. E se a argumentação do ateu vier carregada de agressividade e ironia ou insinuar que o religioso é menos inteligente por acreditar em Deus, já haverá aí motivo suficiente para que todas as atenções se voltem contra o comportamento agressivo do ateu e sua argumentação racional seja totalmente ignorada.
         Leandro Karnal, Doutor em História Social pela USP, costuma dizer em suas palestras que “a religião tem se comportado historicamente como chantilly: quanto mais se bate, mais cresce.” Diz Karnal que ao longo de toda a história das religiões, sempre que uma religião foi combatida ganhou mais força. (4)  Isso é um dado histórico, não é especulação. E é o que me faz crer que, nesse momento, talvez mais efetivo do que bater esse chantilly seja deixá-lo azedar.  Ateus e filósofos podem mostrar ao mundo que há estilos de vida mais saborosos e menos sofridos fora da religião, e que estes estilos não desconsideram a moral ou a ética. E podem, com argumentação racional, fazer com que as pessoas percebam que a moral independe da religião e que adultos devem ser capazes de deliberar sobre todas as questões com as quais se defrontam baseando-se em sua própria razão. O senso comum precisa desconstruir essa ideia preconceituosa de que o religioso é necessariamente um homem bom e o ateu necessariamente um homem mau. O mundo está cheio de religiosos de caráter duvidoso e de ateus virtuosos. Quem, em sã consciência, colocaria em dúvida as virtudes do sociólogo ateu Herbert de Souza, o já falecido “Betinho”, ativista dos direitos humanos e combatente da miséria?  
         Em outubro de 2012 me envolvi com a questão da demarcação das terras dos índios Guaraní-Kaiowás e resolvi me juntar aos movimentos que já aconteciam pelo Facebook. Pedi ajuda a alguns conhecidos e de pronto a recebi. Um amigo me ajudou a fazer a página do evento, outros me ajudaram a divulgá-la; um outro se propôs a fazer uma arte para a confecção de folhetos, e um último a imprimi-los em sua gráfica, gratuitamente. Eram todos ateus. Tenho visto muito isso. Enquanto religiosos vão a cultos louvar a Deus, ateus têm se preocupado e se envolvido em campanhas contra o desmatamento, contra a homofobia, contra o racismo, contra maus tratos aos animais, contra abusos de todas as espécies. Enfim: campanhas em prol de um mundo menos cruel. Por que esses ateus não podem ser considerados homens virtuosos?  
          Todas as vezes em que vejo um religioso perguntando a um ateu como ele estabelece seus próprios limites sem ter uma religião que o norteie, fico profundamente desconfiada.  Acredito ser muito mais fácil confiar em alguém que não precise de um Deus ou de uma religião para lhe impor limites ou regras do que em alguém que só se mantenha dentro do moralmente aceitável por temer as represálias de Deus. Acredito mais nos homens que autenticamente assumem suas fraquezas do que naqueles que se travestem de bonzinhos para caber no modelito cristão que dificilmente veste bem em homens de carne e osso. Como a gorducha linda a quem todos admiram, mas que vive frustrada por não caber nas minúsculas roupas que a ditadura da moda impõe, o cristão, por mais bem intencionado que seja, está sempre aquém de suas próprias expectativas, porque elas se baseiam numa perfeição rigorosa demais para o padrão humano. Homens são fracos, falíveis, e estão sempre tentando sobreviver num mundo difícil demais.
         Exista ou não um Deus, estejamos ou não próximos desse tão pouco provável  fim do mundo, pertençamos ou não a uma religião, o que todos nós precisamos é de compreensão e tolerância. A convivência pacífica é sinal de inteligência. Assim como é saudável que religiosos comecem a se abrir para os argumentos ateístas, acredito que também seja salutar aos ateus perceberem que alguns dos mais brilhantes pensadores da história da filosofia, embora se opusessem à religião - o que acredito ser a causa mais interessante -, tinham uma concepção própria de Deus, não o descartando por completo. Quem já leu Sêneca (5) ou Spinoza (6) sabe que é possível pensar em Deus sem imaginá-lo de barba branca e cajado na mão se ocupando das nossas mazelas particulares, falando em códigos de difícil compreensão através de textos inspirados e nos incutindo culpa. Se é ingenuidade acreditar na existência de Deus, também é ingenuidade a pretensão da verdade. E o respeito ao pensamento alheio deve estar acima das discordâncias. Vale lembrar uma frase de Voltaire (7) que cabe perfeitamente aqui: “Discordo daquilo que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de o dizeres”.
         Um doutor em filosofia pela USP, com passagem pela Sorbonne, ateu, se propor a ir a um programa popular para falar sobre assunto tão controverso é uma demonstração de falta de preconceito e de coragem. É preciso ter coragem para romper com padrões preestabelecidos e para se expor publicamente e é preciso não ter preconceito para combater o elitismo que vive assombrando o mundo da filosofia.
         Se a filosofia acadêmica se faz de história, de erudição, de citações, de notas de rodapé, a filosofia para a vida conjuga tudo isso com a atitude. Quando escrevemos sobre algo provocamos reflexões que podem ser, para alguns, extremamente profícuas. Mas quando vivemos aquilo em que acreditamos contaminamos todo o nosso entorno.  O pensamento filosófico precisa se infiltrar por todas as brechas possíveis para combater o preconceito, uma verdadeira ferrugem que corrói a sociedade. E isso não se faz apenas com o discurso, mas com a atitude. Parabéns, Piva.
                                                                  Ana Lucia Sorrentino
 Para entender melhor:

1 - PIVA, Paulo J. L. - Pós-doutor em filosofia pela FAPESP, autor dos livros Ateísmo e Revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier  e O Ateu Virtuoso: materialismo e moral em Diderot, além de ter participação em algumas outras obras. É também um dos organizadores do livro Dez provas da inexistência de Deus e autor do blog "O Pensador da Aldeia". 

2 – Fonte:<  http://www.youtube.com/watch?v=hB2BX7nCDtA> - acesso em 30/03.2013

3 – Fonte: < http://www.youtube.com/watch?v=gnSzuRAkqQ0> - acesso em 30/03/2013

4 – Fonte: < http://www.youtube.com/watch?v=KsGYDTIWhF8> - acesso em 30/03/2013

5 – SÊNECA, Lucius Annaeus – (Córdoba, 4 a.C. – Roma, 65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano. Pensador estoico, sua obra literária e filosófica inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia.

6 – SPINOZA, Baruch – (24/11/1632, Amsterdã – 21/02/1677, Haia) foi um dos grandes racionalistas do séc. XVII, dentro da chamada Filosofia Moderna. É considerado o fundador do criticismo bíblico moderno. 

7 – VOLTAIRE – François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (Paris, 21/11/1694 – 30/05/1778) foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês.