sábado, 24 de janeiro de 2015

Je suis reprimida



            Desde a grande comoção causada pelos assassinatos dos jornalistas do Charlie Hebdo por fundamentalistas islâmicos que se sentiam ofendidos pelas charges que envolviam a figura de Maomé, a questão da liberdade de expressão não me sai da cabeça.  De repente um ataque terrorista totalmente previsível - os cartunistas do Charlie estavam sendo ameaçados disso há tempos - fez o mundo inteiro se horrorizar e sair em marcha pela liberdade de expressão e contra o terrorismo. Diga-se de passagem, o mesmo terrorismo que fez cerca de duas mil vítimas na Nigéria alguns dias antes. Vítimas que, aliás, não estavam provocando ninguém, apenas tentavam viver suas vidas.
             Se das vítimas da Nigéria pouco se falou, ao contrário, pelas da França se fez um grande espetáculo de autenticidade questionável, por envolver líderes de vários países que lançam mão de práticas terroristas ou as subsidiam quando assim lhes convém. Como podem líderes terroristas se dar as mãos para dizer ao mundo que são a favor da liberdade de expressão e contra o terrorismo?  Habermas teria um nome perfeito para isso: contradição performática.   
             Imediatamente após os assassinatos, como seria de se esperar, recrudesceu-se, na França, o cerco contra qualquer manifestação em favor dos fundamentalistas islâmicos. E um comediante francês que se mostrou simpático a um ataque contra um mercado judeu teve seu texto interpretado como apologia ao terrorismo e foi detido para ser submetido a um interrogatório. Ou seja: enquanto a França e o mundo se indignavam por doze jornalistas, milhares de vítimas de Baga eram ignoradas. Indignação seletiva. E enquanto a França tentava explicar ao mundo o quanto a liberdade de expressão lhe é cara, a própria França praticava restrições a essa liberdade. Liberdade de expressão relativa.
             Como acontece sempre nesta nossa grande vitrine mundial, onde só tem valor o que se pode vender, logo trataram de transformar a desgraça e a reivindicação de liberdade de expressão em uma afirmação de poder altamente rentável. Uma edição histórica do Charlie trouxe novamente Maomé, essa figura tão severamente sagrada para os islâmicos, e se esgotou quase que instantaneamente. "Nós podemos" - era a mensagem implícita. A Folha noticiou que já está programada uma nova tiragem de 3 milhões de cópias - a tiragem habitual era de 60 mil exemplares - e brevemente os engajados com a questão da liberdade poderão comprá-la aqui no Brasil.
           Enquanto a desgraça de muitos se transformava em lucro para outros, eu assistia aos noticiários tendo a impressão de que um assunto de extrema gravidade estava sendo tratado como brincadeira de criança.  Tipo birra mesmo. E ao fundo desse cenário de poderosos hipócritas encenando momentânea união em nome de algo que não praticam e nem permitem, rolavam tristes repercussões do episódio. Não sei, hoje, quantas pessoas já morreram por conta disso. Jamais negarei o direito à liberdade de expressão - embora eu não saiba exatamente o que é isso - e jamais considerarei aceitável que se mate em função de crenças religiosas. Como jamais considerarei aceitável que qualquer ser humano se julgue no direito de tirar a vida de outro, seja lá por que motivo for. Mas a questão é que não estamos falando de nada razoável. Não se pode esperar bom senso de fundamentalistas. E espera-se que pessoas que tenham algum amor à vida não os provoquem, por simples questão de autopreservação. E pela responsabilidade que devemos ter quando aquilo que fazemos pode repercutir em desgraça para muitos. Na verdade, creio que a liberdade de expressão em nada difere da liberdade, de uma forma geral. Ambas exigem responsabilidade. Todos as desejam, quase ninguém as experimenta e ninguém deixa de sofrer as consequências da sua prática.
           Certa vez, em uma aula de filosofia antiga, quando eu, inocentemente, me pus a falar sobre liberdade, meu professor me olhou assustado, como que me perguntando em que mundo eu estava, porque - disse ele - "não há liberdade". Demorei a compreender a extensão do que ele afirmara. Mas hoje me ocorre perguntar o mesmo aos festivos defensores da liberdade de expressão.  Porque a procuro pelos quatro cantos do mundo, pra ver se a consigo enxergar por inteiro, ao menos uma vez na vida. Mas, sinceramente, não estou sendo feliz nessa empreitada.

           Basta pensar em nossa jornada desde que começamos a balbuciar as primeiras palavras, quando a sociedade já nos indica claramente o que é "adequado" ou não, até a demência da velhice, que é quando, enfim, a vida nos dá um passe livre para a liberdade de expressão, uma vez que já não temos quase nada a perder e que ninguém mais leva a sério o que dizemos. Entre o início e o fim, estamos entrevados em relações hierárquicas que podem ser seriamente abaladas por excesso de transparência. Por sorte alguns de nós podem contar com um amigo de verdade ou um analista para, às vezes, lavar a alma sem sofrer grandes consequências. De resto, dizemos ou escrevemos o que pensamos e estamos sujeitos, sempre, ao julgamento alheio, à divulgação distorcida do que dissemos, a retaliações , a grandes aborrecimentos e também a processos, algumas vezes milionários. Dizemos, mesmo assim, porque somos corajosos. Mas há uma tentativa de repressão permanente. Experimente soltar um palavrão em alto e bom som em um ambiente masculino e receberá, de pronto, uma carimbada. Ou dizer ao seu rígido professor o quanto lhe considera medíocre. Ou explicar ao seu chefe que você está cansado de receber ordens de alguém menos capaz do que você. Experimente chamar, em um regime democrático, defensor da igualdade de direitos e da tolerância, um gordo de gordo, um negro de negro, um careca de careca, pra ver o que é tolerância. Experimente defender seu partido entre ferozes opositores. Diga claramente a um marido machista que você não o ama e não quer mais viver com ele. Você sabia que no Brasil, por conta de uma afirmação dessas, inúmeras mulheres ainda são assassinadas todos os dias? Pois é... os "fundamentalistas" não estão tão longe assim de nós não...  Haja coragem... É impossível não lembrar aqui de Nietzsche, em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. O desejo de verdade do homem se dá em um sentido restrito. Ele fica feliz quando falsas verdades lhe fazem feliz. O homem quer e aceita as verdades que lhe sejam agradáveis.           
            Na vida real é muito mais provável encontrarmos personagens como o do advogado encenado por Jim Carrey no filme "O Mentiroso", cuja vida se torna um verdadeiro caos ao ver-se privado da possibilidade de mentir, do que esses personagens livres, que dizem o que bem entendem sem se importar com as consequências, como fingem acreditar existir os que se reuniram na manifestação na França. Se eles tivessem lido Bauman, compreenderiam quão pendular é a relação liberdade/segurança. Quanto mais liberdade, menos segurança. E vice-versa. Aliás, eu gostaria muito que eles me explicassem, afinal, o que é exatamente essa tal "liberdade de expressão". Porque, se eles a esbanjam, devo estar em outro mundo, porque o que sinto, sinceramente, é que je suis reprimida.

                                                              
                                                                                Ana Lucia Sorrentino