sábado, 30 de março de 2013

Piva, a deselitização da filosofia e a desestigmatização da figura do ateu

        
 

         Recentemente Paulo Jonas de Lima Piva (1), um muitíssimo querido professor de filosofia da Universidade São Judas Tadeu, esteve no Super Pop, programa da Luciana Gimenez na Rede TV, representando a ATEA - Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, numa conversa miscelânica que tentava associar acontecimentos recentes, como a queda de um meteoro na Rússia e a renúncia do Papa, ao fim do mundo (2).
         Faço questão de frisar logo de início o quanto esse professor é querido para já no primeiro parágrafo deste texto dar uma martelada nietzscheana certeira nesse monstro pré-histórico que é o preconceito contra ateus. Ateus podem, sim, ser muito queridos e não há absolutamente NENHUMA justificativa para que se pense o contrário.
         Apesar do comportamento um tanto quanto estapafúrdio da apresentadora, a iniciativa foi louvável e Piva conseguiu usar de forma competente o pouco espaço que teve, deixando de lado a proposta sensacionalista inicial para esclarecer os equívocos que sempre rondam o ateísmo e a figura do ateu, provando que é possível aproveitar muito bem as “brechas da mídia conservadora” (nas palavras dele) em favor do esclarecimento.
         Durante cerca de uma hora um representante da igreja católica, um ufólogo, um sheik, um “especialista e pesquisador de ordens iniciáticas” - seja lá o que isso for -, um astrônomo e um ateu puderam estar num mesmo espaço mostrando seus diferentes pontos de vista, numa verdadeira lição de tolerância e respeito. Eventos como esse fazem o mundo caminhar para frente.
         Em fevereiro deste ano, quando aconteceu o Primeiro Encontro Nacional de Ateus e Agnósticos, em que Piva foi um dos palestrantes, o abordei para confessar meu estranhamento ao ver ateus organizando encontros e militando em favor do ateísmo, pois sempre me parecera que por sua característica autonomia intelectual eles prescindiam desse tipo de manifestação coletiva, tão própria das religiões. E ele me fez ver que nada há de estranho no fato de pessoas que compartilham das mesmas ideias desejarem estar juntas, debater, se confraternizar.  Percebi, então, que o ateu tem a mesma necessidade de pertencimento que qualquer um de nós tem, em maior ou menor grau, e que, talvez, para ele, seja ainda mais importante encontrar a sua turma, uma vez que ela é uma minoria e, pior, uma minoria estigmatizada.
         Basta um pouco de reflexão para que percebamos o que pode motivar um ateu a se manifestar publicamente em favor do ateísmo. Se pensarmos nas tantas barbáries cometidas pelos homens em nome de Deus, nos estragos que em pleno século XXI ainda fazem as hediondas guerras santas consequentes do fundamentalismo religioso, na manipulação e na exploração desmedidas que algumas religiões fazem de seus fiéis; se pensarmos no tanto de preconceito que se planta dentro das igrejas, em pregações que equivocadamente consideram a prática homossexual uma opção ou uma doença, que colocam a mulher em posição de submissão e que julgam e condenam sumariamente quem fez um aborto, já teremos justificativas suficientes para colocar em dúvida as tão propaladas virtudes da religião. Além disso, religiões trabalham com a fórmula “medo + culpa”, que quase sempre resulta em obediência cega, e promovem a não aceitação do que somos de fato, o que faz muita gente sofrer.
         Há aí muito mais do que “pequenos” motivos para que o ateu, sentindo-se liberto, deseje, num impulso altruísta, libertar quem ainda esteja preso aos grilhões da fé religiosa. Mesmo porque num mundo em que só alguns são livres, a liberdade não se realiza de fato.
          Também não é nada difícil compreender o desejo do ateu de vir a público não apenas para defender o ateísmo, mas para defender a si mesmo. As poucas vezes em que me perguntaram qual era a minha religião e eu respondi que eu era agnóstica, a perturbação criada pela minha resposta quase se solidificou no ar. As pessoas ficam constrangidas, sem saber o que dizer, e às vezes quase soltam um “sinto muito”.  Imagino a confusão interna que lhes acomete quando cruzam a ideia preconceituosa que têm do ateu com o que sou. Devem se perguntar: como é que pode, a Analú, essa pessoa do bem, agnóstica???
         Respondendo a um questionamento sobre religiosidade em uma de suas palestras, o respeitadíssimo médico e escritor Drauzio Varella relatou exatamente isso. Que muita gente que o admira não consegue compreender “como pode um homem tão bom não acreditar em Deus”. Que ser ateu parece invalidar, para essas pessoas, todas as boas ações que ele de fato fez. Que o olham como se ele fosse imoral, como se não respeitasse a vida. (3) É essa confusão que o senso comum faz que precisa ser definitivamente debelada.  
          A aparição de um filósofo ateu em um programa de TV e sua defesa da tolerância e do respeito ao pensamento alheio são exemplos que os ativistas ateus deveriam se empenhar em seguir. Porque nesse momento em que ateus estão conseguindo se organizar e expor publicamente seus argumentos, talvez mais importante do que metralhar a religião seja  a desestigmatização da figura do ateu. Só ateus que conseguirem respeitar e se fazer respeitar, penso eu, conseguirão desestruturar a argumentação religiosa sedimentada. Um discurso agressivo, ainda que fundamentado na razão, acaba, quase sempre, sendo um tiro no pé. O religioso tem uma resistência imensa a ouvir tudo o que destoa das pregações religiosas a que está habituado. E se a argumentação do ateu vier carregada de agressividade e ironia ou insinuar que o religioso é menos inteligente por acreditar em Deus, já haverá aí motivo suficiente para que todas as atenções se voltem contra o comportamento agressivo do ateu e sua argumentação racional seja totalmente ignorada.
         Leandro Karnal, Doutor em História Social pela USP, costuma dizer em suas palestras que “a religião tem se comportado historicamente como chantilly: quanto mais se bate, mais cresce.” Diz Karnal que ao longo de toda a história das religiões, sempre que uma religião foi combatida ganhou mais força. (4)  Isso é um dado histórico, não é especulação. E é o que me faz crer que, nesse momento, talvez mais efetivo do que bater esse chantilly seja deixá-lo azedar.  Ateus e filósofos podem mostrar ao mundo que há estilos de vida mais saborosos e menos sofridos fora da religião, e que estes estilos não desconsideram a moral ou a ética. E podem, com argumentação racional, fazer com que as pessoas percebam que a moral independe da religião e que adultos devem ser capazes de deliberar sobre todas as questões com as quais se defrontam baseando-se em sua própria razão. O senso comum precisa desconstruir essa ideia preconceituosa de que o religioso é necessariamente um homem bom e o ateu necessariamente um homem mau. O mundo está cheio de religiosos de caráter duvidoso e de ateus virtuosos. Quem, em sã consciência, colocaria em dúvida as virtudes do sociólogo ateu Herbert de Souza, o já falecido “Betinho”, ativista dos direitos humanos e combatente da miséria?  
         Em outubro de 2012 me envolvi com a questão da demarcação das terras dos índios Guaraní-Kaiowás e resolvi me juntar aos movimentos que já aconteciam pelo Facebook. Pedi ajuda a alguns conhecidos e de pronto a recebi. Um amigo me ajudou a fazer a página do evento, outros me ajudaram a divulgá-la; um outro se propôs a fazer uma arte para a confecção de folhetos, e um último a imprimi-los em sua gráfica, gratuitamente. Eram todos ateus. Tenho visto muito isso. Enquanto religiosos vão a cultos louvar a Deus, ateus têm se preocupado e se envolvido em campanhas contra o desmatamento, contra a homofobia, contra o racismo, contra maus tratos aos animais, contra abusos de todas as espécies. Enfim: campanhas em prol de um mundo menos cruel. Por que esses ateus não podem ser considerados homens virtuosos?  
          Todas as vezes em que vejo um religioso perguntando a um ateu como ele estabelece seus próprios limites sem ter uma religião que o norteie, fico profundamente desconfiada.  Acredito ser muito mais fácil confiar em alguém que não precise de um Deus ou de uma religião para lhe impor limites ou regras do que em alguém que só se mantenha dentro do moralmente aceitável por temer as represálias de Deus. Acredito mais nos homens que autenticamente assumem suas fraquezas do que naqueles que se travestem de bonzinhos para caber no modelito cristão que dificilmente veste bem em homens de carne e osso. Como a gorducha linda a quem todos admiram, mas que vive frustrada por não caber nas minúsculas roupas que a ditadura da moda impõe, o cristão, por mais bem intencionado que seja, está sempre aquém de suas próprias expectativas, porque elas se baseiam numa perfeição rigorosa demais para o padrão humano. Homens são fracos, falíveis, e estão sempre tentando sobreviver num mundo difícil demais.
         Exista ou não um Deus, estejamos ou não próximos desse tão pouco provável  fim do mundo, pertençamos ou não a uma religião, o que todos nós precisamos é de compreensão e tolerância. A convivência pacífica é sinal de inteligência. Assim como é saudável que religiosos comecem a se abrir para os argumentos ateístas, acredito que também seja salutar aos ateus perceberem que alguns dos mais brilhantes pensadores da história da filosofia, embora se opusessem à religião - o que acredito ser a causa mais interessante -, tinham uma concepção própria de Deus, não o descartando por completo. Quem já leu Sêneca (5) ou Spinoza (6) sabe que é possível pensar em Deus sem imaginá-lo de barba branca e cajado na mão se ocupando das nossas mazelas particulares, falando em códigos de difícil compreensão através de textos inspirados e nos incutindo culpa. Se é ingenuidade acreditar na existência de Deus, também é ingenuidade a pretensão da verdade. E o respeito ao pensamento alheio deve estar acima das discordâncias. Vale lembrar uma frase de Voltaire (7) que cabe perfeitamente aqui: “Discordo daquilo que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de o dizeres”.
         Um doutor em filosofia pela USP, com passagem pela Sorbonne, ateu, se propor a ir a um programa popular para falar sobre assunto tão controverso é uma demonstração de falta de preconceito e de coragem. É preciso ter coragem para romper com padrões preestabelecidos e para se expor publicamente e é preciso não ter preconceito para combater o elitismo que vive assombrando o mundo da filosofia.
         Se a filosofia acadêmica se faz de história, de erudição, de citações, de notas de rodapé, a filosofia para a vida conjuga tudo isso com a atitude. Quando escrevemos sobre algo provocamos reflexões que podem ser, para alguns, extremamente profícuas. Mas quando vivemos aquilo em que acreditamos contaminamos todo o nosso entorno.  O pensamento filosófico precisa se infiltrar por todas as brechas possíveis para combater o preconceito, uma verdadeira ferrugem que corrói a sociedade. E isso não se faz apenas com o discurso, mas com a atitude. Parabéns, Piva.
                                                                  Ana Lucia Sorrentino
 Para entender melhor:

1 - PIVA, Paulo J. L. - Pós-doutor em filosofia pela FAPESP, autor dos livros Ateísmo e Revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier  e O Ateu Virtuoso: materialismo e moral em Diderot, além de ter participação em algumas outras obras. É também um dos organizadores do livro Dez provas da inexistência de Deus e autor do blog "O Pensador da Aldeia". 

2 – Fonte:<  http://www.youtube.com/watch?v=hB2BX7nCDtA> - acesso em 30/03.2013

3 – Fonte: < http://www.youtube.com/watch?v=gnSzuRAkqQ0> - acesso em 30/03/2013

4 – Fonte: < http://www.youtube.com/watch?v=KsGYDTIWhF8> - acesso em 30/03/2013

5 – SÊNECA, Lucius Annaeus – (Córdoba, 4 a.C. – Roma, 65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano. Pensador estoico, sua obra literária e filosófica inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia.

6 – SPINOZA, Baruch – (24/11/1632, Amsterdã – 21/02/1677, Haia) foi um dos grandes racionalistas do séc. XVII, dentro da chamada Filosofia Moderna. É considerado o fundador do criticismo bíblico moderno. 

7 – VOLTAIRE – François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (Paris, 21/11/1694 – 30/05/1778) foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês.

 

                 

 

 

           

             

 

                       

 

 

 










































































































































































           
           
 
           
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 9 de março de 2013

O Valor do Silêncio


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Ana Lucia Sorrentino