domingo, 17 de abril de 2011

Um continho - Memória

Desgraçadamente, pra ele, assim que a mãe de Memória viu seu choro sentido, ainda na mesa de parto, uma imagem forte da própria mãe lhe veio e, invadida por tão intensa recordação, deu-se a escolha: a menina se chamaria Memória.
Memória cruzou seu caminho num momento em que nada lhe ocupava a memória. Havia um vazio que devia ser preenchido e Memória, até pelo que representava, cumpria perfeitamente a função.
Memória entrou em sua vida, em seu corpo, em seu coração, em sua memória. Invadiu todos os cantos onde coubesse amor e plantou neles fortes sementes de Memória, cujas raízes se alastrariam e circulariam por seu sangue, vazariam por seus poros, floririam em seu sorriso, chorariam em suas lágrimas. Memória orvalhou sua ressequidão de lembranças. Escreveu em sua vida páginas e páginas de doces memórias. Ilustrou, coloriu, sonorizou, encantou. Memória se impregnou em sua memória.
Mas... como se houvesse esquecido algo nalgum lugar distante, num repente, Memória se foi. Queria buscar aquilo de que não se lembrava, mas que sabia existir. Tinha saudade do que não havia vivido. Vivera tanto e tão intensamente dentro da memória dele, que sua própria memória parecia haver se esvaziado. Sentia-se oca.
Então o oco era ele. O sangue parara de circular em suas grossas veias, agora murchas. Os poros haviam se fechado. O sorriso hibernava e, embora buscasse, não havia lágrimas para chorar.
Qualquer outra mulher, qualquer outro nome, talvez fosse possível esquecer. Mas, por ser esse o nome dela, algo lhe apontava que se a esquecesse, esqueceria de si mesmo. 
Agora, longe de Memória e sem saber como tirá-la da memória, segue errante procurando nalgum olhar algum encanto. E ora todas as horas por encontrar alguma doce menina que possa resolver a questão do excesso de Memória em sua memória.
Eis que nesse deserto por onde caminha, quase se arrastando, em condição de cactus, vislumbra algo como um pequeno oásis, com sedutoras promessas de saciar sua sede e de oferecer-lhe sombra. Aproxima-se, titubeante, e percebe um frescor que contamina. Encantamento no ar. O silêncio satisfaz, e a energia o envolve de tal forma, que, por instantes, parece ter perdido a memória.
Segue a pergunta, inevitável, e diante da resposta, a compreensão imediata da sensação de livramento: como é seu nome?
Como se houvesse acabado de nascer, ela responde, faceira: Amnésia. E o sorriso que vem junto promete.



Analú

terça-feira, 5 de abril de 2011

Você é um átomo de Urânio Enriquecido


Excetuando alguns poucos afortunados, a maior parte de nós vive presa em rotinas. Vamos quase todos os dias aos mesmos lugares, interagimos com as mesmas pessoas, executamos o mesmo tipo de tarefas. Apesar do bombardeio da mídia, a nossa vida acaba sendo feita daquilo que vivemos no dia-a-dia. O contato permanente com o mesmo contexto às vezes nos faz imaginar que o mundo é aquilo que vivemos, e só. E que somos aquilo que estamos manifestando momentaneamente, e só.

Dias atrás, ouvindo a explicação de um jornalista sobre a produção da energia nuclear, e os perigos que aí residem, percebi que somos exatamente como o átomo de urânio enriquecido, que, se bombardeado com nêutrons, libera uma quantidade absurda de energia, composta por substâncias inofensivas, mas também por outras extremamente perigosas.
Se pararmos pra pensar na infinita diversidade de seres humanos e práticas que existem no mundo, é quase inevitável chegarmos à conclusão de que somos, potencialmente, tudo.
Um tudo encapsulado numa cultura restritiva que teme se corromper caso manifestemos livremente nossas potencialidades. Alguns aspectos da nossa individualidade podem, sem dúvida, representar, para os amantes da ordem estabelecida, verdadeiros resíduos tóxicos que, provavelmente, como o plutônio-239, provocarão alguma espécie de lesão cancerígena em suas certezas.
Canso de ver gente adoecendo por negar os apelos da própria alma para se enquadrar em padrões aceitos pela sociedade.
Estamos habituados a seguir as instruções de um manual que cataloga seres humanos em categorias e determina quais os comportamentos adequados a cada uma delas.
Assim, consideramos normal afirmações taxativas sobre como é a mulher, a mãe, o pai, o filho...
Como o ser humano é muuuito mais do que essas descrições simplificadas, sua vida acaba sendo um eterno adequar-se ao restrito quadrado em que lhe é permitido atuar. Mas... e a vontade de escapar? Assim, escapamos às escondidas, e amargamos culpas eternas.
Fórmula perfeita para a infelicidade.
Como o embrião do pintinho, que, dentro do ovo, se alimenta da clara, estamos dentro de um ovo cultural, nos alimentando do sistema. E também alimentando-o. E nos pegamos, às vezes, querendo romper essa casca que nos tolhe os movimentos, para, enfim, nascer.
É claro que, vivendo em sociedade, temos que respeitar limites e tentar promover a harmonia. Estatelar o ovo no chão pra romper sua casca prematuramente pode resultar numa gema estourada e uma boa sujeira pra se limpar.
Mas... como esses artistas que pintam pequenas obras de arte em ovos, e, para esvaziá-los, furam cuidadosamente sua casca com uma agulha, você pode, com os instrumentos que tem, perfurar essa rígida camada cultural que te prende, pra pintar cores em sua vida. Há de entrar um pouco de luz nesse casulo e é grande a possibilidade de você sentir o frescor de um ar menos viciado.
Aproveite essa oxigenação e se aventure a perguntar a você mesmo o que te serve, o que te faz feliz. Ouça a resposta, e siga seu caminho, com autonomia.
Se percebemos que diferenças são saudáveis, se assumimos nossas particularidades, se vamos pelo caminho da auto-aceitação, a aceitação alheia acaba acontecendo. Quem se ama é muito mais amado pelos outros.
Sempre haverá quem te acuse, quem te olhe de soslaio, sempre haverá alguém pra apontar o quanto você é diferente, e tentar te causar algum mal-estar por isso. E dai? Se você se aceita, isso não deve ter grande importância. Como você já deve ter ouvido mil vezes por aí, nem Jesus foi unanimidade.
Às vezes, nesse mundo complicado, cheio de regras e dedos acusadores, tentando trilhar nosso próprio caminho a passinhos miúdos, nos sentimos pequeninos como uma joaninha. Mas, se estivermos com as idéias arejadas, podemos, como ela, ser vermelhos com bolinhas pretas, e encantar. E mais: podemos voar. ;)


Analú