segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Receita de sucesso – de grátis

 

Não faça drama e aceite que tudo é natural.
A morte à espera lá fora, seus valores na sarjeta, o mal tornado banal.
Sua vida comandada por uma gente boçal, seus amigos mais queridos vendidos de baciada.
Nunca ninguém te disse que você não vale nada?
Pense bem, a culpa é sua. A vida é luta. Sem dor, sem ganho.
Entre na internet, inscreva-se num curso, agora eles ensinam até mudo a fazer discurso.
Pegue o seu fracasso e faça dinheiro!
Seja forte, toque a vida, coma e cague, você é um tubo. E cague e ande pra tudo. Pra tudo!
Se você é mulher, seja vadia. Ou pensa que vai poder passar a vida sem se vender?
Se é homem, seja canalha. Negue, minta, finja estar doente, se esconda, não responda, não tenha nunca nada a declarar.
Creia! Nunca vão te pegar!
Não tenha escrúpulo, nem vergonha. Chega dessa baboseira!
Invoque Deus, fique bravo, seja porco e imprudente. Barbarize frequentemente, que logo ninguém mais liga.
Desrespeite, desprestigie, desorganize, desestruture, desestabilize, cause intriga. Pratique a ignorância obstinadamente. Aos poucos ela se espalha e quem sabe, de repente, a vida te recompensa e você vira despresidente.

 

                                                                          Ana Lucia Sorrentino

 


domingo, 2 de agosto de 2020

Desistória

   

 

Eu escrevo esta desistória para que não se perca no nada, de onde veio e de onde, talvez, guarde alguma saudade. Temo que suma no vazio da memória. Nutre-me o ânimo pensar que, escrevendo-a, posso dela reter alguma beleza que, tivesse sido vivida, poderia ter. Escrevo pensando-a como uma não-desilusão, porque já foi gestada fadada a ser em vão. Não me foi permitido crer que viesse a acontecer, senão em minha fértil imaginação. Vivo, desde sempre, abortando gestações imaginárias. E não, não deixarei de engravidar. A ideia do inédito, à parte o descrédito que merece o mundo, me alimenta a alma e me permite atravessar esses áridos e inférteis desertos com alguma alegria. Está em mim. Brota. Floresce. Quero crer que em algum momento a vida possa, de fato, ser. Enquanto isso, sigo tecendo-a com fios do que não foi. Há nessa desistória personagens que poderiam ser lindos, não fossem tragados pela negação do belo. Há vontade, muita vontade, e uma imensa predisposição à compreensão e à cumplicidade. Há doçura, lealdade, há sentimentos nobres e olhares que entram pelas retinas e flecham, como um cupido, nossos corações já tão vividos. Que desistória bonita essa que nunca foi!... Causa-me um sentimento cujo nome ainda não existe essa impossibilidade de me sentir triste por saber que minha possível tristeza tem muito mais a ver com o que imaginei do que com o que de fato existe... Mas quando olho, assim tecida, a trama da minha vida, agrada-me encontrar tanta cor e tanta luz. Aqueles longos fios de tristeza dos inúmeros não-vividos não raro emprestaram real beleza e até mesmo alguma alegria aos tons tão pastéis de tudo...

 

    Eu escrevo esta desistória para que não se perca no nada, de onde veio e de onde, talvez, guarde alguma saudade. Temo que suma no vazio da memória. Nutre-me o ânimo pensar que, escrevendo-a, posso dela reter alguma beleza que, tivesse sido vivida, poderia ter. Escrevo pensando-a como uma não-desilusão, porque já foi gestada fadada a ser em vão. Não me foi permitido crer que viesse a acontecer, senão em minha fértil imaginação.
    Vivo, desde sempre, abortando gestações imaginárias. E não, não deixarei de engravidar. A ideia do inédito, à parte o descrédito que merece o mundo, me alimenta a alma e me permite atravessar esses áridos e inférteis desertos com alguma alegria. Está em mim. Brota. Floresce. Quero crer que em algum momento a vida possa, de fato, ser. Enquanto isso, sigo tecendo-a com fios do que não foi.
    Há nessa desistória personagens que poderiam ser lindos, não fossem tragados pela negação do belo. Há vontade, muita vontade, e uma imensa predisposição à compreensão e à cumplicidade. Há doçura, lealdade, há sentimentos nobres e olhares que entram pelas retinas e flecham, como um cupido, nossos corações já tão vividos. Que desistória bonita essa que nunca foi!...
    Causa-me um sentimento cujo nome ainda não existe essa impossibilidade de me sentir triste por saber que minha possível tristeza tem muito mais a ver com o que imaginei do que com o que de fato existe...
    Mas quando olho, assim tecida, a trama da minha vida, agrada-me encontrar tanta cor e tanta luz. Aqueles longos fios de tristeza dos inúmeros não-vividos não raro deram algum sentido, emprestaram real beleza e até mesmo alguma alegria aos tons tão pastéis de tudo...

           
                                                            Ana Lucia Sorrentino