quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Filosofia, a vizinha bisbilhoteira de Literatura


                                                                
 











                                                       Para Germano Xavier, 
                                 o poeta por quem Literatura se apaixonou.      


 Estava Literatura a delirar, gostosamente jogada no sofá, sob um grosso cobertor felpudo. Bebericava um bom vinho e até suspirava, buscando no teto a doce imagem do jovem poeta com quem cruzara à tarde. Se enamorara. Conhecendo-se bem, via aí uma só possibilidade: a do amor.
            O encontro havia sido rápido, em condições inapropriadas, mas o rapaz levava na mão Alguma Poesia. Segurava Drummond com segurança e leveza e vez ou outra acariciava suavemente os relevos dourados da capa. Mas era na expressão do rosto, cheia de dignidade e mistério, que residia a sedução. Literatura sabia que se desvirginasse aquele olhar, encontraria lá no fundo um sem fundo de emoções. Sob a aparente quietude, experiente, ela vislumbrava um turbilhão de ânsias, dúvidas, medos, paixões.
            Embora Drummond já tivesse iniciado o processo, Literatura, fascinada por inventar, matutava engenhosamente qual estratégia usaria, qual o subterfúgio para chamar-lhe a atenção, quando o soar incômodo da campainha insiste em lhe trazer pro chão.    
            Aborrecida, joga o cobertor de lado e abre a porta pra barulhenta vizinha, que encontra em total estado de confusão. Pálida, magra, rabo-de-cavalo desgrenhado, olheiras profundas sob o vidro de garrafa de enormes óculos redondos, se apresenta como Filosofia e estica, trêmula, um pote vazio. Tão perturbada estivera durante o dia, tentando achar pelo em ovo, que esquecera de passar no mercado. Agora se via assim: dependente e carente, precisando desesperadamente de uma xícara de café bem doce e quente.
 Tanta rima em alguém que parecia tão prosa soou estranho à Literatura. Enfim, se o vício do café vinha acompanhado pelo do açúcar, não seria ela, ainda mais no estado em que se encontrava, a negar um pouco de doçura. Enche o pote, pedindo a  Deus que a vizinha importuna se vá logo e a deixe de novo a devanear.
            Mas... como toda boa bisbilhoteira, Filosofia, em vez de se ir com seu açúcar, avança pelo corredor e invade a sala, na desculpa de admirar o belo quadro,  na parede sobre o sofá.
            Literatura, vaidosa, se deixa envolver pelo interesse e admiração da nova amiga, e num arroubo de exibicionismo, louca pra falar do borbulhar de seus sentimentos, a convida ao vinho e até mesmo ao cobertor.
Filosofia não resiste à tentação. Afinal, pra quem esperava da noite um bule de café na solidão, estar sob um cobertor quentinho, inebriada pelo vinho e em companhia de tão sedutora Literatura a levava a imaginar que, enfim, os deuses haviam se lembrado de a presentear.
            Já meio alta, Literatura, viciada em intimidade, envereda por conversas pessoais e acaba por narrar em detalhes suas intenções em relação ao jovem poeta. Como o conhecera, o que ele lhe despertara, o que vinha matutando desde o primeiro minuto em que o encontrara.
Filosofia, já corada, escuta, atenta, interferindo apenas com pequenos gestos, olhares assustados e suspiros de admiração. Não teria coragem de se expor assim... de falar de seus próprios sentimentos, de se confessar apaixonada por um inocente rapaz a alguém que acabara de conhecer. Nem ao menos sabia se seria capaz de se apaixonar, nalgum dia... Tamanha autoexposição parecia, a Filosofia, verdadeira extravagância. De seu deserto íntimo, tentava imaginar como Literatura conseguia mergulhar tanto em tão recente sentimento e se perguntava se nalgum dia teria tal capacidade de entrega.
            O fato é que enquanto desenvolvia esse raciocínio, quase sem perceber, Filosofia se abandonava  à doce voz de Literatura. Aos poucos, a aflição do dia se desvanecia.  Desvencilha-se do apertado elástico do rabo- de-cavalo, desfaz-se dos sapatos e da tensão. Acomoda-se melhor, se serve de um pouco mais de vinho e percebe a figura da amiga ficar desfocada, seus lábios em movimentos mais lentos, a voz se distanciando. Envereda por um cochilo em que os sons se vestem de letras, e as letras dançam em harmoniosas frases de sedução. É o poeta, tão jovem, e suas mãos segurando um livro. A expressão cintilando de curiosidade. Seu sorriso comedido, a atenção focada. A paixão, invasiva, penetrando as palavras através do olhar do poeta e as palavras, atrevidas, penetrando o poeta...
            Embalada pelo sono, Filosofia sente a fina pele de Literatura empurrando suas pernas, procurando espaço. Ouve, longe, seus suspiros, talvez desejo de ar puro.
            Mas, tão possuída pelo sono estava Filosofia, e tanto lhe agradava aquele sono acompanhado, que pouco se importou com o desejo de liberdade da amiga.
Amanhece ao seu lado, e, ainda sonolenta, num susto, percebe-se apaixonada.  Sem desejar ir, se vai.
            Ao acordar, Literatura sente a sombra de Filosofia ainda pela casa. A taça vazia do vinho, o interesse enroscado ao cobertor, o elástico que lhe apertava as ideias jogado num canto qualquer. Guarda-o cuidadosamente, prevendo um retorno da amiga, que, com certeza, estranharia ter as próprias ideias circulando muito livremente.    
            Como era de se esperar, ao entardecer Filosofia vem em busca do elástico opressor.                                                       
           O primeiro encontro se dera por conta de alguma doçura. O segundo pelo esquecimento. O terceiro se daria por nenhum outro motivo senão o da já avançada paixão. E a cada dia, pílulas de novidades enchiam mais e mais de crescente interesse a já tão curiosa Filosofia. Porque o poeta fora fisgado e já tinha, com Literatura, todos os dias, um encontro marcado.  
            E se no primeiro momento Filosofia se apaixonara, a cada nova aventura amorosa da engenhosa amiga, sua paixão crescia. Um querer saber, um querer entender, um querer, talvez, ser, através da outra.
            Os encontros diários com o poeta vinham emprestando à Literatura um viço cada vez mais flagrante, e as pesquisas da curiosa amiga adicionavam a isso algo ainda mais instigante.  
E, se Filosofia vinha saber das carícias que Literatura trocava com o jovem rapaz, Literatura também não se furtava a tentar compreender as frustrações da amiga. Que lhe confidenciava coisas estranhas e tristes. Que se julgava incapaz de criar por si mesma, e que raramente dizia algo que não se baseasse em alguma aventura alheia. Que se enamorava muito, mas não se fixava nem entrava de cabeça. Que tinha dificuldade em se entregar. Que tomava, por precaução, um anticoncepcional que a tornava estéril e que, embora isso lhe frustrasse, lhe trazia alguma tranquilidade, pois sempre temera parir algo que lhe desse asas para voar.
Acontece, enfim, o previsível: Filosofia se vicia nos relatos de Literatura sobre os encontros com o novo amante. Nas descrições pormenorizadas de seu íntimo relacionamento. Na doçura de suas palavras ao falar do toque suave dos dedos gordinhos do poeta correndo por seus parágrafos. De seu hálito, invadindo suas páginas em suspiros prolongados sempre que se mostrava atrevida. De seus dentes, muito brancos e alinhados, em lindos sorrisos roubados. Das emoções, na partilha dos sentimentos, nas constatações de experiências similares. Do bater de seu coração, que se acelerava sempre que o provocava, perturbadora. De seu silêncio, um silêncio cheio de significados. E do desejo, um desejo pulsante de encontros infinitos, sem tréguas, sem pausas. Dos mergulhos profundos de um no outro. E do pesar, do imenso pesar no momento da separação diária.
Não foi preciso muito para que aquela que se julgava incapaz de se apaixonar se descobrisse duplamente apaixonada: por aquela que lhe relatava suas intimidades com o amante e pelo amante, cuja atenção  invejava.
Filosofia, ciumenta,  questionava Literatura pela imprudente bigamia. Como se atrevia a se entregar ao poeta e ao leitor, e sem culpa, sem remorso, sem qualquer ranço de pudor?
Literatura, paciente, tentava fazer com que Filosofia entendesse que nada havia de vergonhoso no que fazia. Era o poeta que lhe imprimia seus atributos mais caros. Era dele que lhe vinha a graça, a cadência, a intensidade. Era ele que a enriquecia com sentimentos confusos, rimas raras, esplendorosas imagens.  E o leitor, com sua admiração e fidelidade, lhe enchia de vaidade e dava sentido à sua vida. O poeta a paria, o leitor a consumia. E Literatura estava radiante, pois encontrara  os dois num só, e vinha se sentindo duplamente amada.
Que infinita agonia se apossou de Filosofia ao perceber que Literatura não mais se satisfaria com encontros públicos... Em uma conversa a portas muito fechadas Literatura confidenciou à amiga que encontros em agradáveis cafés já não lhe bastavam. Carícias leves, correr de dedos, olhares apaixonados sempre sob a vista de curiosos vinham deixando Literatura mais ansiosa a cada dia. Não. Ela queria o poeta ali, debaixo de seus lençóis. Queria que ele estremecesse aos seus sussurros, que navegasse em seus mistérios, que a desnudasse e se deixasse desnudar. Que a vasculhasse despudoradamente por todos os recantos, que se desgovernasse em suas entrelinhas mais sutis e que encontrasse nela alento para todos os desencantos da vida. Queria que ele pudesse, na intimidade de seu quarto, chorar aconchegado em seu peito, gemer juras de amor ao seu ouvido, gozar o mais puro gozo dos apaixonados. Que mergulhado nela, o poeta pudesse, enfim, esquecer por completo da realidade. Que ficassem longe, muito longe, todos os medos e todas as dúvidas. Que seu amor fosse a resposta para suas infinitas perguntas e que pudesse lhe trazer, enfim, alguma certeza.
Tão excitada estava Literatura, tão corada e possuída pela expectativa,  que nem percebia a palidez crescente da amiga enquanto lhe contava que o poeta lhe visitaria, ali mesmo, em sua casa, naquela noite. Que prepararia algo especial para o jantar, que haveria velas espalhadas por todos os ambientes, e que pretendia que a noite terminasse em sua cama. Separara alguns trechos de seus escritores preferidos, e seu plano era de que o poeta, bom leitor que é, os lêsse baixinho ao seu ouvido.
De repente, Filosofia se entrega a intensa vertigem e não fosse a amiga amparar-lhe nos braços, teria se estatelado de cara no chão. Segue-se então uma série de cuidados. Que sentasse confortavelmente no sofá, que respirasse fundo, que se acalmasse, que esperasse que já faria um chá... afinal, o que é que lhe perturbara tanto?
Depois de uma conversa cheia de reticências, rubores e aflições, firma-se um acordo. Generosa, Literatura não poderia deixar Filosofia minguar consumida pela curiosidade. Se era mesmo verdade o que lhe confessara sobre seu caráter parasitário, muito provavelmente, enquanto literatura estivesse fazendo amor com o poeta, Filosofia estaria sofrendo desgraçadamente no apartamento ao lado.
Não... embora às vezes fosse difícil e um tanto quanto sem graça, Filosofia não merecia isso...
Seria assim o combinado: caso mais à noite – e em todas as outras noites também – Filosofia se sentisse só e precisasse de um café, e percebesse ter esquecido de comprar açúcar, que viesse. A porta estaria sempre destrancada. Podia entrar e se servir. E... caso ouvisse gemidos de amor no fundo do corredor, se soubesse se aproximar pé ante pé, sem se fazer perceber, a porta do quarto estaria sempre entreaberta. Que fosse discreta.
Quanto ao receio de desagradar ao leitor e ao poeta com sua intrusão, Literatura sugeriu à amiga que deixasse por sua conta. Se já conhecia, ao menos um pouquinho, sua natureza, saber de alguém espreitando por uma fresta provavelmente seria mais um componente para aumentar-lhes o tesão.
E – conjecturou Literatura, sonhadora - quem sabe, nalgum dia, fizessem amor a quatro...



Analú
22/02/2012