sábado, 24 de maio de 2014

Não sei não, Hegel...




















Embora Hegel queira crer
que progrido em espiral
num próspero aprender
rumo ao absoluto,
parece-me que minha vida
se sucede sempre em ciclos:
início e fim,
nascimento e luto.
Cada ciclo que se encerra
encerra algum saber,
das vivências algum fruto
muda algo em meu ser.
Cada ciclo que se inicia
me apresenta novos fatos,
novas gentes e lugares,
um constante acontecer.
Sigo assim, sempre assustada,
pois aquilo que aprendi,
apesar de me alterar,
não me garante nada.
A vida é sempre espanto,
do início até o fim:
do berço ao túmulo
a sorte é quem cuida de mim.



                                                                                       Ana Lucia Sorrentino

domingo, 18 de maio de 2014

Sobre saúde, mídia e má-fé


 

            Como me aborreço demais com a guerra midiática e como tenho consciência de que lendo isso ou aquilo ou vendo esse ou aquele noticiário estamos sempre sendo manipulados de alguma forma, resolvi tentar só escrever sobre o que vejo de perto, o que sinto na carne, o que posso dizer que considero verdade.
            Assim, não estranhem se não recorro a dados estatísticos, matérias alheias ou citações de gente mais legitimada como porta-voz do que eu. Recorrerei apenas à minha realidade e à que posso atestar à minha volta. Longe de superestimar o valor da minha opinião, pretendo, com isso, provocar algumas reflexões que talvez sejam positivas neste momento em que se acirra a falta de compromisso com a verdade, a ira preconceituosa de quem vive bem, mas não aceita que outros também vivam e a falta de escrúpulos de quem levianamente levanta bandeiras tendo como referência apenas seu próprio umbigo e como objetivo apenas uma derrota do PT nas urnas.
            Semanas atrás me cortei em um objeto enferrujado. Fui a um posto de saúde perto de casa, e uma hora e meia depois já estava vacinada contra tétano. Esperei sentada, fui atendida por gente educada e não tenho do que reclamar. Problema resolvido. Jamais pensaria em recorrer a um posto de saúde pública há quinze anos. 
            Perdi meu pai há alguns anos. Ele tinha 84 anos, subitamente teve leucemia, foi internado em um hospital municipal, passou por quimioterapia e, enfim, não resistiu. Sofremos muito, enfrentamos inúmeros aborrecimentos, mas ele foi atendido da forma como era possível, nada nos foi cobrado e nada garante que se estivesse em um hospital particular - excetuando em relação ao conforto -, as coisas se dariam de forma diferente.
            Também há alguns anos, desconfiada da competência da saúde pública para resolver um problema de uma amiga querida, levei-a ao meu ginecologista particular, em quem confiava plenamente. Ele não conseguiu detectar um câncer de útero já em estágio avançado. Prescreveu-lhe uma reposição hormonal que poderia ter acelerado o processo de sua doença e ela só sobreviveu por mais 4 anos porque, ao passar mal, recorreu a um posto de saúde, onde fizeram o diagnóstico correto, a encaminharam para cirurgia e, a partir daí, todo o seu tratamento foi feito gratuitamente.
            Meu irmão passou quatro anos lutando contra um câncer em hospitais públicos. Difícil? Muito. Mas, no momento em que precisou se alimentar por uma sonda, para se recuperar de uma cirurgia dificílima, teve, no hospital público, duas vezes por dia, refeições de uma substância de custo absurdamente alto, que JAMAIS lhe seria fornecida em hospitais particulares, através de planos de saúde.   
            Minha mãe foi operada de uma fratura no fêmur, em hospital particular. O ortopedista que a operou a enxergava como um “fêmur”, ignorando todos os seus outros problemas de saúde. Falou, totalmente alterado, na frente dela, que ela “era velha e que velha dava trabalho” e se referiu ao seu fêmur como “podre”. Foi despachada para casa antes de poder sentar, totalmente debilitada, para liberação do leito. Uma senhorinha doce de mais de oitenta anos, totalmente fragilizada.
            Minha sobrinha faz plantões em um hospital particular. Estava em seu plantão quando um senhor com suspeita de enfarte chegou. Pediram-lhe que esperasse, sem lhe dar a menor atenção. Tendo esperado muito tempo e passando muito mal, tentou recorrer a um médico que passava por ali, e este lhe pediu que pegasse sua ficha no guichê de atendimento. Ao dizer à atendente que queria pegar sua ficha, ela lhe respondeu, ironicamente, que “pegasse, pois o médico não lhe dissera para pegar?” Os três homens que o acompanhavam pularam o balcão e começaram a quebrar tudo. Chamaram a polícia, mas antes que ela chegasse o doente e seus acompanhantes saíram enlouquecidos em busca de um hospital que os atendesse.
            Sei que o assunto não é nada agradável e peço desculpas por isso. Poderia ficar aqui contando casos e mais casos de sucesso e fracasso tanto da saúde pública quanto da privada. Mas vou poupar o leitor, terminando agora, com o de um colega de classe. Ele teve que passar por um transplante de rim, foi atendido em hospital público, faz acompanhamento permanente, está super bem e recentemente nos contou, em sala de aula, que recebe na porta de casa, através de um entregador, um medicamento caro que o governo fornece gratuitamente. E sendo, como eu, mais velho do que a maior parte da turma e tendo passado por outros governos, declarou publicamente que, embora soubesse que muitos não iriam gostar do que estava dizendo, a saúde no Brasil melhorara muito depois de Lula.
            Sempre que alguém faz um relato pessoal desse tipo na frente de opositores sistemáticos do PT, faz-se um silêncio. Porque fica difícil ao opositor refutar uma experiência pessoal positiva, e ele se sente incomodado, porque é movido a preconceito. Ter alguém fazendo-lhe repensar aquilo que afirma apenas porque ouviu tanto que se pôs a repetir -  que a saúde pública no Brasil é uma desgraça -  perturba. Será mesmo que é? Será que, baseando-nos apenas nos casos que cito acima, dá pra generalizar assim? Será que o problema é sempre e na saúde pública? Ou que todos os que dependem da saúde pública estão às traças? Não creio.
            O problema da saúde é um problema extremamente complexo, porque não se trata somente de infraestrutura, mas de material humano. De cultura. De convicções. De motivação interna. De tanta coisa... Há profissionais bons, medianos e péssimos tanto na saúde pública quanto na privada. Tanto na infraestrutura sofisticada quanto na escassez de recursos.
            Um dos grandes, enormes, problemas que o brasileiro enfrenta ao precisar da atenção de um médico é cultural. No Brasil, o médico se julga em um plano superior e espera do paciente uma postura subserviente, o que já mina essa relação e o bom andamento de qualquer tratamento. A vinda de médicos cubanos para cá trouxe à tona esse e outros problemas, que precisam ser pensados. A reação da classe médica brasileira ao refutar o programa Mais Médicos, alegando se tratar de trabalho escravo, se faz com a mesma lógica daquela que quer desqualificar o sucesso de Lula, depois de ter tirado milhões de brasileiros da miséria,  alegando que ele, quando jovem, queria se mutilar para receber benefícios.  Uma coisa nada tem a ver com a outra. Como poderiam os médicos brasileiros estar preocupados com o trabalho escravo de médicos cubanos, quando não se preocuparam nem em atender milhões de brasileiros carentes de saúde? Hipocrisia pura. Nós vivemos em uma República. O foco é o povo. As ações têm que beneficiar a grande maioria.  Tenho conversado com muita gente que se sente muito mais feliz hoje do que há dez, doze anos. E percebo que há, na outra ponta, uma turma de descontentes que, surpreendentemente, não parecem estar descontentes com sua própria vida, mas com a melhoria da vida dos outros.
            Precisamos deixar de acreditar que o mundo se resume ao que o telejornal mostra. Ele não mostrará o alimento caríssimo que o Estado forneceu ao meu irmão, garantindo sua vida. Mas terá amplo espaço para repetir inúmeras vezes alguma cena de terror em algum hospital público. A desgraça no telejornal é quase sempre pública, raramente privada. Seus objetivos são sempre em benefício próprio: aumentar a audiência, conseguir anunciantes, militar “disfarçadamente” em favor de seu próprio candidato. Dias atrás, em meu horário de almoço, liguei a TV e, depois de ouvir inúmeras desgraças, perguntei pra minha irmã: “Você já imaginou quanta coisa boa está acontecendo por esse Brasil afora enquanto estamos aqui, estragando nosso almoço, mergulhadas na desgraça que a mídia divulga propositalmente, com fins determinados?” Desligamos a TV, para preservar nossa saúde mental.
            Se tentarmos avaliar o mundo olhando à nossa volta, pensando em nossa própria vida e não apenas acreditando no que a má-fé propaga por aí e se deixarmos de repetir sem reflexão as frases soltas que se espalham como peste sem a menor responsabilidade, já estaremos fazendo uma grande coisa. Por nós, pela nossa saúde, por um Brasil e por um mundo melhor.               
                                                                     
                                                               Ana Lucia Sorrentino
 
 

 

             

           

              

 

 

 

sábado, 3 de maio de 2014

Sobre Cristãos, a esquerda, o bolsa-família e o ódio ao PT


 
 
          No domingo de Páscoa entrei no Facebook e me deparei com uma charge que resumiu de uma só vez tudo o que vem me aborrecendo terrivelmente já há um bom tempo: Jesus, ao centro, dizendo que multiplicara pães e peixes e dera aos famintos. Ao seu redor, uma turma de revoltados o chamava de comunista, de assistencialista, de populista e de “petralha”.  Referiam-se aos famintos como “vagabundos” e gritavam contra o “bolsa-esmola”, defendendo o ensino da pesca em lugar da doação de peixe.  Por fim, mandavam Jesus ir para Cuba. Acima da imagem, a frase: “Será que um dia a ficha cai?”.
            Desde que comecei a postar sobre o que me agrada na esquerda, vira e mexe alguém invade o meu mural usando exatamente essas palavras para combater minha defesa de um mundo menos desigual. Seus “argumentos” vão de xingamentos a gargalhadas, que acabo deletando sumariamente, porque não há diálogo possível nesses termos.   
            Tenho me perguntado todos os dias sobre o real motivo desse desproporcional ódio ao PT e à esquerda, porque jamais senti isso com tanta intensidade como no último ano. À medida que as eleições se aproximam, a animosidade contra o PT se recrudesce de forma assustadora. Os que têm manifestado seu ódio tentam, muitas vezes, justificar sua sistemática oposição ao governo recorrendo aos episódios de corrupção que nada têm de diferente dos de governos anteriores, senão o fato de que quando o acusado é petista a lei é moldada artificialmente com o objetivo de mandá-lo para a cadeia, enquanto acusados direitistas se safam, até porque os julgamentos são tão adiados que os crimes prescrevem. Mas estou me convencendo de que o grande pedregulho no sapato de quem odeia o PT é a redistribuição de renda. O olhar especial que o PT tem para os mais pobres e seu esforço para diminuir a imensa e doentia desigualdade que vivemos.
            Passei meu domingo de Páscoa entre cristãos. Clima de confraternização em meio à prosperidade. Orações, agradecimentos, fartura. Em certo momento escutei um militante da direita dizer que “agora era torcer pro Brasil perder a Copa, porque só o povo estando muito aborrecido com uma derrota na Copa pra não votar na Dilma”. Considerei isso uma clara declaração de que o atual governo é muito bem sucedido. Paradoxalmente, mais tarde, alguém citou um artigo da Veja, demonstrando preocupação com a “terrível situação do Brasil”. Não pude me conter: - Não leia a Veja, por favor. – pedi.  Mas eu quis saber qual seria, exatamente, a “terrível situação do Brasil”, porque não me parecia que estavam se referindo ao Brasil em que vivo. De mais a mais, se a situação do Brasil fosse tão terrível assim, não seria preciso perder a Copa para o povo não votar na Dilma...  Iniciou-se aí uma conversa que enveredou por um caminho tortuoso de citações duvidosas de fatos substancialmente irrelevantes que tentavam desenhar uma realidade que eu não reconhecia. E que, por fim, me levou à inevitável pergunta: “mas, afinal, o que piorou na vida de vocês nos últimos dez, onze anos?” Silêncio. Que alguém quebrou expressando pleno repúdio a “todo e qualquer tipo de bolsa”. Por quê? – perguntei. As pessoas em geral acham injusto o governo cobrar impostos dos mais afortunados e redirecioná-los a miseráveis. E todas as vezes em que converso sobre isso percebo que quase ninguém tem consciência do que é “estar abaixo da linha da miséria”. Apoiam-se em casos pontuais de declarações infelizes dadas a jornais tendenciosos sobre o bolsa-família “não dar nem pra comprar um jeans pra minha filha” e desconsideram completamente que há gente que passa fome. E que quando alguém não tem o que comer, não tem força nem para pensar em trabalhar. Quanto mais para ir à escola, evoluir, aprender um ofício, procurar um emprego. Para aprender a pescar é preciso ter força para segurar a vara. Para frequentar uma escola é preciso ter algo para comer e algo para vestir. No mínimo.
            Quando falo sobre isso sinto que há uma enorme refratariedade no ar. Talvez porque só consigamos ter empatia pelo que está muito perto de nós, não sei. Talvez porque alguém da classe média consiga sentir mais dó de alguém que não tem dinheiro para comprar um tênis de marca do que de alguém que não tenha um naco de pão pra comer. Porque esta última realidade está tão distante da sua que o reconhecimento é difícil.
            Me intriga especialmente o repúdio de cristãos à redistribuição de renda. Porque se alguém tem Cristo como seu líder espiritual e se o idolatra como exemplo de bondade e caridade, qual a lógica desse mesmo alguém refutar tanto a ideia de que a riqueza deve ser minimamente redistribuída?
            Questionaram-me sobre se acho certo os impostos cobrados dos mais ricos serem transferidos para os mais pobres. Sim, acho. Acho certa toda e qualquer ação que redistribua renda. Perguntaram-me se acredito que o governo está fazendo isso. Sim, acredito. Cada vez que se cobra mais impostos de ricos e menos de pobres, se distribui renda. Cada vez que se aumenta o custo de serviços públicos para bairros nobres e se diminui para a periferia, se distribui renda. Cada vez que se direciona impostos que os mais ricos pagam para beneficiar os mais pobres com o bolsa-família, bolsa-escola e outros programas do mesmo tipo, o governo está redistribuindo renda.
            Mas parece-me que as pessoas não entendem um ponto crucial desses programas: quando se redistribui renda, não é apenas o miserável que está sendo beneficiado. TODOS estamos sendo beneficiados. Porque o governo está não só possibilitando ao pobre que se alimente, frequente uma escola, procure um emprego, etc., mas está transformando-o em um consumidor. Está injetando dinheiro no mercado.
            Aquele que até então não podia comprar comida para alimentar sua família, ou roupa, ou seja lá o que for, passa a fazê-lo. E quando vai às compras está movimentando a economia. Isso é garantia de que o dono do mercado ou da loja venderá mais, conseguirá manter seu estabelecimento funcionando, precisará de mais empregados para ajudá-lo e poderá consumir mais também. Esse empresário pagará seus impostos e eles serão novamente redirecionados e assim cria-se um ciclo de mais prosperidade. Além disso, aquele que recebe o benefício sai de uma situação da qual jamais sairia se não recebesse alguma ajuda, porque sabemos muito bem que quanto menos se tem, menos chance de sair dessa situação se tem também. Ninguém, ou quase ninguém, dá emprego a um mendigo. Em última instância, se for pra sermos altruístas egoístas, temos que concordar que um mendigo a menos, um assaltante a menos, um flanelinha a menos nas ruas sempre representará uma melhoria nas vidas de todos nós.
            Também já escutei, algumas vezes, que esse dinheiro que é entregue às famílias pobres acaba não sendo usado para os fins a que se destina. Que a mulher que o recebe entrega-o ao marido para que ele vá beber no bar. Mas esses programas têm mecanismos de controle que conseguem, ao menos em parte, cobrar dos beneficiados aquilo que ficou acordado. E, se em casos pontuais o marido for beber no bar, ainda assim ele estará consumindo, ou seja, injetando dinheiro na economia. Claro que não é o ideal, mas também não é o que ocorre massivamente.
            Outra crítica que sempre ouço sobre as políticas de transferência de renda é de que elas produzem pessoas acomodadas, que se habituam a receber dinheiro do governo e passam a não querer trabalhar. Eu não sei exatamente quais os parâmetros que as pessoas têm para afirmar tal coisa. Mas, para mim, é absolutamente inimaginável acreditar que alguém que receba, digamos, R$70,00 do governo para, assim, completar uma renda mensal de R$140,00, possa suprir todas as suas necessidades com isso, a ponto de não querer mais trabalhar. Para mim, soa como piada. De mais a mais, embora o governo não estipule prazo determinado para recebimento dos benefícios, mais de 1,7 milhão de famílias já devolveu o cartão espontaneamente, o que vai contra a tese de que o governo está criando vagabundos.  
            Por fim, me perguntaram o porquê da ausência desses que defendem o bolsa-família em ações como distribuição de café da manhã ou sopão aos mendigos, pelas ruas da cidade. Eu respondi que acredito que quando se trabalha em prol de um programa como o bolsa-família se faz muito mais do que isso. E quando cheguei à minha casa, metabolizando tudo o que havia sido conversado nesse domingo cristão, lembrei de uma frase de Paulo Freire que diz com mais precisão o que eu queria dizer:
            “Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.”
            Nasci, cresci, e virei mulher vendo a elite só lembrar de que os pobres existem quando precisa deles para lhe prestar serviços a preços módicos ou quando tem que, forçosamente, se deparar de frente com eles. Hoje, com as trocas de opiniões nas redes sociais, percebe-se claramente o quanto a elite está incomodada por ver uma hierarquia de subjugação solidamente alicerçada pelo capital sair da zona de conforto e ter que se repensar. A educação, a inclusão, a informação mais acessível a todos e a consciência da cidadania são fatores que vêm competir com o simples poder aquisitivo. E isso se conquistou com um governo de esquerda. Quero crer que apenas a ignorância possa explicar essa resistência em enxergar que um mundo menos desigual seria mais confortável para todos. Se não for por ignorância, o que explicaria isso? Tenho medo de pensar em outra resposta.
                                                                                      Ana Lucia Sorrentino 
Alguns links interessantes para entender melhor: