No domingo de Páscoa entrei no
Facebook e me deparei com uma charge que resumiu de uma só vez tudo o que vem me
aborrecendo terrivelmente já há um bom tempo: Jesus, ao centro, dizendo que
multiplicara pães e peixes e dera aos famintos. Ao seu redor, uma turma de
revoltados o chamava de comunista, de assistencialista, de populista e de “petralha”.
Referiam-se aos famintos como
“vagabundos” e gritavam contra o “bolsa-esmola”, defendendo o ensino da pesca
em lugar da doação de peixe. Por fim,
mandavam Jesus ir para Cuba. Acima da imagem, a frase: “Será que um dia a ficha
cai?”.
Desde que comecei a postar sobre o
que me agrada na esquerda, vira e mexe alguém invade o meu mural usando exatamente
essas palavras para combater minha defesa de um mundo menos desigual. Seus “argumentos”
vão de xingamentos a gargalhadas, que acabo deletando sumariamente, porque não há
diálogo possível nesses termos.
Tenho me perguntado todos os dias
sobre o real motivo desse desproporcional ódio ao PT e à esquerda, porque jamais
senti isso com tanta intensidade como no último ano. À medida que as eleições
se aproximam, a animosidade contra o PT se recrudesce de forma assustadora. Os
que têm manifestado seu ódio tentam, muitas vezes, justificar sua sistemática
oposição ao governo recorrendo aos episódios de corrupção que nada têm de
diferente dos de governos anteriores, senão o fato de que quando o acusado é
petista a lei é moldada artificialmente com o objetivo de mandá-lo para a
cadeia, enquanto acusados direitistas se safam, até porque os julgamentos são
tão adiados que os crimes prescrevem. Mas estou me convencendo de que o grande
pedregulho no sapato de quem odeia o PT é a redistribuição de renda. O olhar
especial que o PT tem para os mais pobres e seu esforço para diminuir a imensa
e doentia desigualdade que vivemos.
Passei meu domingo de Páscoa entre
cristãos. Clima de confraternização em meio à prosperidade. Orações, agradecimentos,
fartura. Em certo momento escutei um militante da direita dizer que “agora era
torcer pro Brasil perder a Copa, porque só o povo estando muito aborrecido com
uma derrota na Copa pra não votar na Dilma”. Considerei isso uma clara declaração
de que o atual governo é muito bem sucedido. Paradoxalmente, mais tarde, alguém
citou um artigo da Veja, demonstrando preocupação com a “terrível situação do
Brasil”. Não pude me conter: - Não leia a Veja, por favor. – pedi. Mas eu quis saber qual seria, exatamente, a “terrível
situação do Brasil”, porque não me parecia que estavam se referindo ao Brasil
em que vivo. De mais a mais, se a situação do Brasil fosse tão terrível assim,
não seria preciso perder a Copa para o povo não votar na Dilma... Iniciou-se aí uma conversa que enveredou por
um caminho tortuoso de citações duvidosas de fatos substancialmente
irrelevantes que tentavam desenhar uma realidade que eu não reconhecia. E que,
por fim, me levou à inevitável pergunta: “mas, afinal, o que piorou na vida de
vocês nos últimos dez, onze anos?” Silêncio. Que alguém quebrou expressando pleno
repúdio a “todo e qualquer tipo de bolsa”. Por quê? – perguntei. As pessoas em
geral acham injusto o governo cobrar impostos dos mais afortunados e
redirecioná-los a miseráveis. E todas as vezes em que converso sobre isso
percebo que quase ninguém tem consciência do que é “estar abaixo da linha da
miséria”. Apoiam-se em casos pontuais de declarações infelizes dadas a jornais
tendenciosos sobre o bolsa-família “não dar nem pra comprar um jeans pra minha
filha” e desconsideram completamente que há gente que passa fome. E que quando alguém
não tem o que comer, não tem força nem para pensar em trabalhar. Quanto mais
para ir à escola, evoluir, aprender um ofício, procurar um emprego. Para
aprender a pescar é preciso ter força para segurar a vara. Para frequentar uma
escola é preciso ter algo para comer e algo para vestir. No mínimo.
Quando falo sobre isso sinto que há
uma enorme refratariedade no ar. Talvez porque só consigamos ter empatia pelo
que está muito perto de nós, não sei. Talvez porque alguém da classe média
consiga sentir mais dó de alguém que não tem dinheiro para comprar um tênis de
marca do que de alguém que não tenha um naco de pão pra comer. Porque esta
última realidade está tão distante da sua que o reconhecimento é difícil.
Me intriga especialmente o repúdio
de cristãos à redistribuição de renda. Porque se alguém tem Cristo como seu
líder espiritual e se o idolatra como exemplo de bondade e caridade, qual a
lógica desse mesmo alguém refutar tanto a ideia de que a riqueza deve ser
minimamente redistribuída?
Questionaram-me sobre se acho certo
os impostos cobrados dos mais ricos serem transferidos para os mais pobres.
Sim, acho. Acho certa toda e qualquer ação que redistribua renda.
Perguntaram-me se acredito que o governo está fazendo isso. Sim, acredito. Cada
vez que se cobra mais impostos de ricos e menos de pobres, se distribui renda.
Cada vez que se aumenta o custo de serviços públicos para bairros nobres e se
diminui para a periferia, se distribui renda. Cada vez que se direciona
impostos que os mais ricos pagam para beneficiar os mais pobres com o
bolsa-família, bolsa-escola e outros programas do mesmo tipo, o governo está
redistribuindo renda.
Mas parece-me que as pessoas não
entendem um ponto crucial desses programas: quando se redistribui renda, não é
apenas o miserável que está sendo beneficiado. TODOS estamos sendo beneficiados.
Porque o governo está não só possibilitando ao pobre que se alimente, frequente
uma escola, procure um emprego, etc., mas está transformando-o em um
consumidor. Está injetando dinheiro no mercado.
Aquele que até então não podia
comprar comida para alimentar sua família, ou roupa, ou seja lá o que for, passa
a fazê-lo. E quando vai às compras está movimentando a economia. Isso é
garantia de que o dono do mercado ou da loja venderá mais, conseguirá manter
seu estabelecimento funcionando, precisará de mais empregados para ajudá-lo e
poderá consumir mais também. Esse empresário pagará seus impostos e eles serão
novamente redirecionados e assim cria-se um ciclo de mais prosperidade. Além
disso, aquele que recebe o benefício sai de uma situação da qual jamais sairia
se não recebesse alguma ajuda, porque sabemos muito bem que quanto menos se
tem, menos chance de sair dessa situação se tem também. Ninguém, ou quase
ninguém, dá emprego a um mendigo. Em última instância, se for pra sermos
altruístas egoístas, temos que concordar que um mendigo a menos, um assaltante
a menos, um flanelinha a menos nas ruas sempre representará uma melhoria nas
vidas de todos nós.
Também já escutei, algumas vezes,
que esse dinheiro que é entregue às famílias pobres acaba não sendo usado para
os fins a que se destina. Que a mulher que o recebe entrega-o ao marido para
que ele vá beber no bar. Mas esses programas têm mecanismos de controle que
conseguem, ao menos em parte, cobrar dos beneficiados aquilo que ficou acordado.
E, se em casos pontuais o marido for beber no bar, ainda assim ele estará consumindo,
ou seja, injetando dinheiro na economia. Claro que não é o ideal, mas também
não é o que ocorre massivamente.
Outra crítica que sempre ouço sobre
as políticas de transferência de renda é de que elas produzem pessoas
acomodadas, que se habituam a receber dinheiro do governo e passam a não querer
trabalhar. Eu não sei exatamente quais os parâmetros que as pessoas têm para
afirmar tal coisa. Mas, para mim, é absolutamente inimaginável acreditar que
alguém que receba, digamos, R$70,00 do governo para, assim, completar uma renda
mensal de R$140,00, possa suprir todas as suas necessidades com isso, a ponto
de não querer mais trabalhar. Para mim, soa como piada. De mais a mais, embora o
governo não estipule prazo determinado para recebimento dos benefícios, mais de
1,7 milhão de famílias já devolveu o cartão espontaneamente, o que vai contra a
tese de que o governo está criando vagabundos.
Por fim, me perguntaram o porquê da
ausência desses que defendem o bolsa-família em ações como distribuição de café
da manhã ou sopão aos mendigos, pelas ruas da cidade. Eu respondi que acredito
que quando se trabalha em prol de um programa como o bolsa-família se faz muito
mais do que isso. E quando cheguei à minha casa, metabolizando tudo o que havia
sido conversado nesse domingo cristão, lembrei de uma frase de Paulo Freire que
diz com mais precisão o que eu queria dizer:
“Eu sou um intelectual que não tem
medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas
e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da
caridade.”
Nasci, cresci, e virei mulher vendo
a elite só lembrar de que os pobres existem quando precisa deles para lhe
prestar serviços a preços módicos ou quando tem que, forçosamente, se deparar
de frente com eles. Hoje, com as trocas de opiniões nas redes sociais, percebe-se claramente o quanto a elite está incomodada por ver uma hierarquia
de subjugação solidamente alicerçada pelo capital sair da zona de conforto e
ter que se repensar. A educação, a inclusão, a informação mais acessível a
todos e a consciência da cidadania são fatores que vêm competir com o simples
poder aquisitivo. E isso se conquistou com um governo de esquerda. Quero crer
que apenas a ignorância possa explicar essa resistência em
enxergar que um mundo menos desigual seria mais confortável para todos. Se não
for por ignorância, o que explicaria isso? Tenho medo de pensar em outra
resposta.
Ana
Lucia Sorrentino
Alguns links interessantes para
entender melhor: