Certa vez, assistindo a uma palestra
de José Thomaz Brum1, impressionou-me a resposta do palestrante a um
rapaz que lhe perguntou sobre o sentido da morte na obra de E. M. Cioran2.
Disse Thomaz Brum que lhe parecia que quando Cioran falava sobre a morte não
estava falando da morte tal qual a conhecemos, mas de tudo aquilo que não
vivemos. Que logo que despontamos para a adolescência começamos a perceber o
quanto a vida é rica em possibilidades, mas mesquinha em realizações. E que era
a essa defasagem que Cioran provavelmente se referia.
Algum tempo antes, eu lera um artigo
de Gustavo Gitti3 em que ele colocava em questão exatamente essa
discrepância entre a abundância com que a vida nos acena e a pouca vida que
vivemos de fato. O foco central do texto eram os relacionamentos e Gitti usava
um tom encorajador, estimulando o leitor a ser mais proativo na tentativa de
realizar os próprios desejos. Defendia que todos queremos as mesmas coisas –
atenção, carinho, amor - e que, portanto, devíamos ser mais corajosos na
exposição de nossos sentimentos, e, enfim, mais transparentes e afetuosos.
Essa questão era recorrente nas
minhas reflexões e imediatamente me identifiquei com as ideias do autor. Naquele
momento, eu vinha protelando uma necessária conversa com um amigo, por temer
sua reação à minha autoexposição. O texto de Gitti foi como um pontapé no
traseiro, e me fez superar meus receios e ser clara. O que resultou numa enorme
frustração, porque meu amigo não estava habituado a lidar com a clareza e menos
ainda com a liberdade. Assustou-se, e passamos
por um período conturbado que, felizmente, foi superado.
As pessoas em geral estão tão
acostumadas a dissimular e restringir quando há afetividade em jogo, que o
blefe e a imposição de regras rígidas muitas vezes são mais bem-vindos do que
uma aposta sincera num exercício de liberdade. Afinal, como viver um
relacionamento sem regrá-lo? Para a grande maioria, isso é verdadeiramente
angustiante. E é assim que essa questão vira um bicho de sete cabeças, que a
noção de uma vida plena acaba parecendo piada e que nós vivemos apenas um fiapo
do que poderíamos viver, numa constante manutenção dessa defasagem entre vida
possível e vida vivida.
Quando Thomaz Brum fala sobre as
infinitas possibilidades com que a vida nos acena também está falando em
liberdade e em coragem. Porque, se há tanta coisa para se viver, é preciso que tenhamos
liberdade para fazer nossas escolhas e coragem pra vivê-las. Mas, me parece que
quanto mais livres nos sentimos, mais numerosas e sedutoras são as
possibilidades, mais nosso desejo se dispersa, confuso, provocando angústia e
enfraquecendo nossa coragem, e mais nos frustramos por termos que abrir mão de
muitas delas para viver apenas muito poucas.
Há alguns dias, lendo um artigo de
Luiz Felipe Pondé4, me deparo com uma citação que ele faz de
Kierkegaard5. Diz Pondé que o filósofo dinamarquês afirma que “nós
somos feitos de angústia” devido ao nada que nos constitui e à liberdade
infinita que nos assusta.
A associação de Kierkegaard entre
liberdade e angústia me reportou de imediato à fala de Thomaz Brum, ao texto de
Gitti e às minhas experiências pessoais.
Recordei-me dos vários momentos da
minha vida em que a angústia da liberdade foi neutralizada por uma restrição
compulsória dessa liberdade. A maternidade e a amamentação, sem dúvida alguma,
me presentearam com algo que posso dizer muito próximo do que imagino ser a
“paz”. A convicção de que um serzinho indefeso precisava de mim para viver me
agraciava com um foco raro em mim quando em situação de maior liberdade. É
possível argumentar contra isso dizendo que o nascimento de filhos é um
acontecimento feliz, e que talvez daí viesse a ausência de angústia. Mas também
me senti menos angustiada nos momentos em que tive que abrir mão da minha vida por
conta de acontecimentos tristes, como doenças na família. O desagrado pela
gravidade da situação acabava sendo superado pelo sentido que ela trazia para a
minha vida. Embora muitas vezes minha própria vida não fizesse muito sentido
para mim, contraditoriamente, quando o bem-estar de alguém dependia de mim,
esse sentido surgia. E, nesses momentos, pouco me importava que a vida do outro
também não fizesse muito sentido. Minimizar o sofrimento alheio e dar um pouco
de conforto a alguém carente fazia todo sentido. E isso, ao menos
momentaneamente, me colocava dentro de uma redoma opaca, que me distanciava
tanto dos sedutores chamados do mundo lá fora, que eles deixavam de ter
importância, e perdiam o poder de me angustiar.
Infelizmente, essa prática do amor nem
sempre tem como objeto um ser humano ou algo positivo. Há quem ame a tristeza,
a dor, o ressentimento, o remorso ou a doença e nisso também encontre um escape
para a angústia da liberdade. Em
Breviário de Decomposição Cioran diz:
Quem
sofre de um mal caracterizado não tem o direito de queixar-se: tem uma
ocupação. Os grandes enfermos não se enfastiam jamais: a doença os preenche,
como o remorso alimenta os grandes culpados. Pois todo sofrimento intenso
sustenta um simulacro de plenitude e propõe à consciência uma realidade
terrível, que esta não saberia eludir; [...] 6
Uma
cuidadosa passada de olhos ao nosso redor nos leva facilmente a concordar com Cioran.
Muitas vezes a doença se torna uma espécie de bicho de estimação, e o enfermo
encontra nela uma ocupação, um motivo para não se importar seriamente com mais
nada, um refúgio. Acaba se criando uma relação de amor entre doente e doença. E
esse amor parece justificar tudo, simulando um sentido para a vida.
Se não é fácil encontrar um sentido
maior e único para justificar nossa existência, a cada
nova fase da vida inventamos novos sentidos. Solteiros inventam a paixão. Casais
cuja paixão já arrefeceu inventam filhos para ter novamente a quem amar. Pais
que perdem filhos em acidentes se engajam em campanhas de trânsito, para ter
uma causa para amar. Workaholics mergulham no trabalho. E assim seguimos, nessa
constante busca de algo ou alguém que preencha esse vazio de sentido e que faça
nossa existência ter algum valor.
Esse processo é doloroso, mas ficar
lamentando a inexistência de um deus paternalista que nos dê isso de mão
beijada pode ser uma grande perda de tempo. Se não somos como as plantas, que
simplesmente “vivem”, e se podemos pensar, por que é que achamos que esse
sentido já deveria estar dado ao nascermos?
Pondé discorre sobre a falta de
sentido da vida, mas desemboca no amor: “Somos um nada que ama”. Sinceramente, não creio que sejamos
um “nada”. Somos, sim, insignificantes perante a imensidão do universo. Mas acredito
que isso se torne muito importante apenas para os antropocêntricos, que,
ressentidos por não serem o motivo de todas as coisas, se travestem de humildes,
levando essa insignificância ao extremo. Somos exatamente como tudo o que
existe: um pedacinho, um quase invisível pedacinho. Mas um pedacinho que
interage com todos os outros pedacinhos. E que ama. E que encontra na prática
do amor um alívio para a angústia que a liberdade traz.
Surpreende-me a paradoxal
constatação de que só encontramos um pouco de serenidade quando restringimos
voluntariamente nossa liberdade. É num exercício de liberdade que optamos pela não
liberdade para, em alguns momentos, termos um pouco de paz, amando. Seja lá quem ou o que for.
Analú
1- Doutor em
Filosofia, professor da PUC-RJ e
tradutor das principais obras de Cioran no Brasil.
2 - Cioran, Émile Michel (8 de abril de 1911, Răşinari,
Sibiu, Austria-Hungary (hoje Romênia) – Paris, 20 de junho de 1995), filósofo
romeno-francês.
3 - Filósofo e Pedagogo pela
USP, autor do blog Não2Não1.
5 - Kierkegaard, Søren
Aabye (Copenhague,
5 de Maio de 1813 - Copenhague, 11 de Novembro de 1855) foi um filósofo e
teólogo dinamarquês.
6
- Cioran, Émile Michel. Breviário de
Decomposição.Tradução de José Thomaz Brum. Ed. Rocco. Rio de Janeiro, 1995.
p.22.