segunda-feira, 1 de setembro de 2008

XVII - Começando a pensar no "Barba Azul"

Olá! Vamos começar a estudar "O Barba Azul"? Mais uma vez, vou propor que pensemos a respeito do assunto antes de ler o conto. Acredito que, dessa forma, você amadurece e se abre para captar nele sua riqueza, e aproveitar suas lições.

Antes de começar a escrever sobre "O Barba Azul", fiquei me perguntando qual seria a melhor abordagem para dar início a esse tema. Sei que muitas mulheres conhecem esse conto, mas tenho certeza de que isso não acontece entre a grande maioria. Sempre que converso com mulheres a respeito do "Mulheres que Correm com os Lobos", acaba sendo quase inevitável falar sobre o Barba Azul, tal a importância do conto dentro dessa obra, e do personagem em nossas vidas. E, surpreendentemente, percebo que a grande maioria delas não tem a menor idéia de quem é o Barba Azul. Digo surpreendentemente porque esse personagem marcou minha infância de tal forma, que, para mim, seria inimaginável pensar que outras pessoas não o conhecessem. Seria como se hoje, alguém nos dissesse não conhecer Harry Potter, ou James Bond. Lembro-me de ter lido e relido esse conto inúmeras vezes, muito provavelmente porque ele me aterrorizava e consolava, uma vez que o Barba Azul é vencido pela mocinha apavorada. Naquela época, é claro, eu não tinha consciência da riqueza do conteúdo do texto. Apenas o lia e relia, e me encantava com um desenho em branco e preto, cujo único detalhe colorido era o azul de uma mecha da enorme barba do "monstro".

Vejam como não podemos subestimar o valor das histórias: mesmo não tendo maturidade para compreender todos os aspectos abordados no conto, o principal eu apreendi - o mal existia. Às vezes, podia travestir-se de riqueza e amabilidade. E precisávamos estar atentas para nos proteger dele!

Recentemente, tive a grata satisfação de descobrir que a maravilhosa escritora Ruth Rocha publicou, pela Editora FTD, sua versão dessa história para crianças. Espero que muitas meninas possam se beneficiar com seus ensinamentos. E que possam entrar na vida mais preparadas para enfrentar esses monstros, sejam eles personagens do mundo ao seu redor, sejam eles parte de sua psique. Porque, o grande perigo para uma mulher, não é não conhecer o conto "O Barba Azul". Mas desconhecer que o Barba Azul existe, na vida real, e também dentro de sua psique.

Assim, decidi que minha abordagem começa por aqui:

O Barba Azul Existe - e você precisa enxergá-lo

É claro que qualquer pessoa que esteja lendo este post já percebeu que o Barba Azul representa algo de mal. Clarissa o define como um verdadeiro potentado predatório, cuja intenção é nos destruir. Ele pode ser um parente ou conhecido seu, no mundo físico, mas ele também existe dentro de você. É um aspecto de sua psique que trabalha contra a sua natureza, e contra tudo o que for positivo: contra o desenvolvimento, contra a harmonia e contra o que for selvagem. Ele "surge no meio dos planos mais significativos da alma, isola a mulher de sua natureza intuitiva e a faz sentir-se frágil diante da vida".

E, por que insisto em dizer que o Barba Azul existe, se, no mundo em que vivemos, a mídia privilegia a desgraça, e basta ligar a TV ou abrir o jornal para que o Mal seja cuspido na nossa cara? Será que você já não sabe disso? Pra que ficar estudando o Barba Azul, se são tantos os “monstros” da vida real, enclausurando famílias inteiras, estuprando as próprias filhas, jogando garotinhas pela janela, escravizando seres humanos, que essa idéia de que “o mal existe”, e de que precisamos estar preparadas pra nos proteger dele já deveria estar mais do que entranhada em nós. Pergunto: está?

Estamos preparadas para, na presença do predador, detectá-lo, e combatê-lo? Estamos preparadas para detectar qual parte de nossa psique joga contra nós, e anular o efeito de suas cruéis investidas? Se não, por quê? Vamos pensar nisso.

Quero trabalhar aqui a irrefutável teoria de Clarissa, sobre a negação do Mal, e também uma teoria minha, baseada em minha experiência pessoal, que acredito poder se aplicar à grande parte das mulheres. Neste post vamos pensar um pouco sobre a teoria de Clarissa.

Qualquer mulher que já tenha parado para pensar na educação que recebeu e no que a sociedade demonstra esperar dela, percebeu que há uma mensagem que se repete, implícita ou explicitamente: não veja, não tenha insight, não fale, não haja. Clarissa chama isso de "introjeções sombrias que, para as mulheres, são objeto de controvérsia". Ou seja: você recebe essas mensagens a vida toda, acaba acreditando que são verdadeiras, e as incorpora em seu modo de ser. Mas... sua mulher selvagem, sua alma, sabe que isso não está certo. O antídoto para o mal, a forma de expulsar o predador, é fazer exatamente o contrário. Clarissa nos aconselha: "tente prestar atenção à sua voz interior; faça perguntas; seja curiosa; veja o que estiver vendo; ouça o que estiver ouvindo; e então aja com base no que sabe ser verdade."

Um conselho como este pode parecer estranho: veja o que estiver vendo, ouça o que estiver ouvindo. Não é até engraçado? Não! Não é engraçado! É muito triste. O fato é que somos treinadas, desde crianças, a não ver o que estamos vendo, não ouvir o que estamos ouvindo. Aprendemos, desde cedo, a dourar a pílula. Amenizar as situações. Esconder o que é feio. Usamos eufemismos, palavras à meia-boca, expressões de constrangimento, e varremos a sujeira pra debaixo do tapete. Tanto fingimos não ver o que estamos vendo, que acabamos nos convencendo de que aquilo que estamos vendo realmente não existe. Complicado, não? Nem tanto.

Vou relatar aqui uma experiência pessoal que ilustra perfeitamente essa situação, e peço que vocês pensem nisso, e, se possível, me ajudem a encontrar as respostas para as inevitáveis perguntas que nos vêm à mente.

Eu era muito criança, e minhas irmãs e primas já eram adolescentes. Um bando, aliás. As meninas estavam sempre juntas, em cantos, ou trancadas em quartos ou banheiros, procurando privacidade para as conversas próprias da idade. As festas de família eram super agitadas, pois éramos em muitos primos, e quase todos na puberdade.

Um parente distante nos convidou para o aniversário de uma de suas filhas, adolescente também, e embora muito pequenina na época, tive a percepção de que a ocasião seria realmente especial, pelo clima de excitação que pairou em minha casa durante toda a semana anterior à festa. Especulava-se que roupas as meninas deveriam usar, quem estaria lá, que delícias haveria para comer... Mas não me lembro de ter ouvido nenhuma recomendação especial por parte de ninguém. Estaríamos entre parentes e amigos e, conseqüentemente, deveríamos estar seguras, em ambiente inofensivo. O clima era festivo, e todos só pensavam em coisas boas.

A festa foi ótima, mas, repentinamente, aconteceu algo que só vim a entender realmente agora, mais de quarenta anos depois! Num determinado momento, uma das meninas quis ir ao banheiro, e, como era costume quando se juntavam, todas a acompanharam. Iam retocar o batom, se olhar no espelho, falar bobagens, meninas em grupo no banheiro era (e continua sendo) sempre uma farra. Como era a caçula, e me consideravam criança demais pra me convidar pra esse tipo de bagunça, eu observava de fora. Lembro-me de ter visto todas entrando no banheiro, fazendo uma grande algazarra. Mal a porta se fechara atrás da última a entrar, e a festiva bagunça se transformou numa enorme gritaria. A porta se abriu, e as meninas saíram correndo, apavoradas, uma querendo passar por cima da outra, para sair dali o mais rapidamente possível! Sem entender o que acontecera, fui atrás, mas os convidados já se concentravam em frente ao bolo, para cantar parabéns, e a agitação das meninas acabou se diluindo na bagunça generalizada. Eu sabia que havia acontecido algo, mas era muito pequena, e, como ninguém comentou nada, também não perguntei. A coisa morreu ali. Não fosse um certo clima de consternação geral na semana seguinte ao ocorrido, poderia se dizer que, realmente, nada acontecera.

Alguns anos depois, adolescente, eu ainda me lembrava do episódio, que me causara grande estranheza. Toquei no assunto, e minha irmã mais velha desconversou. Muito à meia-boca, falou algo sobre alguém da família ter hábitos estranhos, e, sinceramente, continuei não entendendo nada. Meses atrás, voltei a tocar nesse assunto, com a mesma irmã, e conversamos de mulher para mulher, como não poderia deixar de ser. Só então fiquei sabendo o que acontecera realmente naquela ocasião.

Vou contar pra vocês, com todas as letras, como seria absolutamente normal se a nossa sociedade tivesse interesse em descortinar a verdade: quando as meninas entraram no banheiro, deram de cara com um conhecido da família com as calças abertas e o pênis ereto para fora! Ele estava ali, naquela situação, propositalmente, esperando-as para se exibir! Elas, totalmente desavisadas, saíram todas correndo, apavoradas!

O mais grave nisso tudo é que os adultos da família sabiam que esse homem estaria na festa, e tinham consciência dessa sua tendência, que já se revelara em ocasiões anteriores.

Pergunto, e gostaria muito que vocês me respondessem:

- Não seria o caso de terem alertado as meninas, para que elas se cuidassem?
- Não era importante que, pelo menos, conversassem com elas depois do acontecido, para saber que impacto isso lhes causara?
- Será que era tão complicado assim falar abertamente sobre esse assunto?
- O fato de ninguém ter conversado a respeito do episódio, embora todos percebessem o quão constrangedor ele fora, significou o quê?

Pois saibam: não se falou abertamente, nem de forma alguma. O episódio foi enterrado sem maiores explicações. Quem não tivesse compreendido o porquê da atitude daquele homem, que metabolizasse o acontecido como pudesse, porque nenhum adulto se proporia a falar sobre o caso.

Hoje, você pode pensar que não se pode usar como parâmetro uma história de quarenta e tantos anos atrás, porque o mundo e as pessoas evoluíram muito de lá pra cá. Mas, olho a nossa realidade atual e vejo inúmeras situações semelhantes, e não percebo uma mudança muito significativa na maneira das pessoas lidarem com elas... Apesar de termos muito mais acesso à informação, quando os problemas estão muito perto de nós, há uma enorme dificuldade em se falar abertamente sobre eles.

Infelizmente, ficamos sabendo, a todo momento, de casos e mais casos de famílias inteiras acobertando todo tipo de loucura. Pais pedófilos, que abusam por anos a fio dos próprios filhos, sem que isso venha à tona; alcoólatras que nem ao menos percebem que são alcoólatras, porque ninguém tem coragem de falar sobre isso; mulheres que apanham freqüentemente, e que não conseguem pedir ajuda a ninguém; pessoas doentes, que não têm coragem de se assumir doentes... Tanta coisa...

Quem já não mordeu a língua para não chamar de agiota aquele conhecido que vive de emprestar dinheiro a juros extorsivos, porque seria ofensivo? Na nossa sociedade, é falta de educação ou "preconceito" (veja só!) chamar o gordo de gordo, o careca de careca, o pobre de pobre, o negro de negro, o velho de velho... Ou seja: não podemos dar nomes aos bois, porque é feio.

Não estou defendendo aqui a idéia de que devamos sair por aí fofocando a respeito da vida alheia, julgando e condenando, ou atirando pedras em quem tenha problemas. Defendo uma maneira realista de ver o mundo e a vida, o que nos dará competência para enxergar o Barba Azul, se ele aparecer. No caso em questão, a família poderia, sim, de forma discreta, ter alertado as meninas que iriam à festa, explicando-lhes a situação, não para que se apavorassem, mas para que não estivessem despreparadas, e soubessem se defender do perigo latente. E, uma vez que se criou a situação desagradável, essas meninas mereciam, sim, que algum adulto conversasse com elas a respeito do problema, para que não restassem, no final, dúvidas incômodas em suas vidas. Podemos saber como cada uma metabolizou o acontecido? Provavelmente, o que, para uma delas, menos sensível, foi apenas algo engraçado, para outra pode ter sido um fator determinante do seu comportamento sexual, por ter enxergado agressividade na sexualidade masculina.

Imagino que, no final das contas, mediante o absoluto silêncio que se fez em relação ao caso, a mensagem que restou na cabeça das meninas que correram do banheiro, tenha sido: quando a coisa parece ser muito feia, melhor fingir que nada aconteceu. E posso dizer que, se cada uma de nós começar a pensar na própria vida, vai encontrar inúmeras situações em que a conclusão a que chegamos foi essa.

Você lembra de algo assim em sua vida? Alguma coisa que foi tão abafada por todos ao seu redor, que você chegou à conclusão de que o melhor a fazer seria fingir não ter visto, não ter ouvido, e não falar nada? Será que, de tanto passar por isso, você não introjetou essa idéia de não enxergar o que é muito feio ou ruim? De negar a realidade? Pense nisso. E me conte. Abra os olhos e veja, de verdade, o mundo ao seu redor.

Essa situação me fez lembrar dos três macaquinhos da lenda dos três macacos sábios. Você conhece? Vamos falar sobre ela no próximo post!

Mas vou ficar aqui, esperando seus relatos de "negação da realidade".

Beeeijos!

Analú :)