terça-feira, 31 de julho de 2012

Será mesmo preconceito imaginar que a filosofia é para uma elite?



          
            No artigo “A filosofia e as pessoas comuns”1 Gonçalo Armijos Palácios2, um defensor da filosofia acessível aos “mortais comuns”, discorre sobre o fato de ser a atividade filosófica uma atividade como todas as outras, para as quais podemos ter ou não talento. Palácios explica, com clareza coerente com as ideias que defende, que o que os filósofos fazem não é muito diferente do que o que todos nós fazemos quando precisamos “sair de uma enrascada pensando por nós mesmos”. Que assim como nem todos podem ser bons pintores ou cientistas, nem todos podem ser bons filósofos. E que ter habilidade para filosofar não insere o filósofo numa categoria especial de ser humano, pois a filosofia nada tem de “esdrúxulo, diferente ou místico”. Afirma que “o filosofar está mais próximo das pessoas comuns do que elas imaginam” e aponta como uma das causas dessa distância imaginada o preconceito. Por fim, esclarece a diferença entre ser um historiador da filosofia e ser um filósofo, a mesma que há entre ser um historiador da arte e um artista, ou entre ser um historiador das ciências e um cientista.
            Embora o texto de Palácios seja esclarecedor, sua afirmação de que “um problema que afasta as pessoas do ato de filosofar, certamente, é seguir acriticamente os muitos preconceitos que há sobre a filosofia” me incomodou um pouco. Essa afirmação, da forma como foi feita, parece jogar sobre o leitor comum toda a responsabilidade pelo tal “preconceito”.
             Ao terminar a leitura do texto, me ficou a pergunta: será mesmo? Será essa ideia que as pessoas têm de ser a filosofia atividade para “alguns escolhidos” puro preconceito?
            Vieram-me então à mente algumas situações vividas no curso de filosofia.
            Lembrei-me de que, em certo momento, no primeiro ano, numa aula de Introdução à Filosofia, questionei meu professor sobre a forma como alguns filósofos escrevem. Estávamos estudando um texto de Alain Badiou3 e a leitura era complicada a  ponto do professor nos dizer que, com certeza, não conseguiríamos compreender tudo, mas apreenderíamos algo, e isso já era importante.
            No meu questionamento já havia uma teoria própria, fruto do meu primeiro contato com os textos filosóficos. Eu achava que muitos filósofos faziam questão de escrever de forma complicada justamente para uma manutenção da filosofia como coisa de uma elite privilegiada, o que, talvez, fizesse com que se sentissem mais importantes do que as pessoas “comuns”. Meu professor não concordou inteiramente comigo, embora não discordasse de todo. Mas, disse que talvez os textos fossem difíceis porque a vida era difícil. Naquele instante, me curvei à autoridade do mestre. Talvez fosse realmente necessário recorrer a uma linguagem sofisticada para falar em profundidade sobre as questões complicadas da vida. Hoje já não sei se continuo pensando assim. A impressão que tenho é de que, se nossa intenção for realmente atingir as pessoas em geral, sempre será possível falar de forma simples, seja lá sobre o que for.
            Ainda no primeiro ano nossa turma foi convidada a assistir a uma palestra da área de filosofia da ciência. Não me recordo agora o nome do palestrante, bem como não me recordo de absolutamente nada do que ele disse. E por quê? Porque ele usou uma linguagem praticamente ininteligível. Estudantes de filosofia não tinham obrigação de entender em profundidade uma teoria científica, mas creio que para a maioria dos que estavam ali tenha sido quase impossível compreendê-la mesmo superficialmente, porque o palestrante foi incapaz de se comunicar de forma minimamente compreensível. Acabei me conformando em apreender o que fosse possível, assim como o meu professor sugerira ao lermos Badiou. Mas, saí da palestra com a nítida impressão de que se o palestrante tivesse um mínimo de interesse em transmitir algo, ele teria conseguido.
            Já no segundo ano uma situação vivida na aula de ética me impressionou seriamente. Durante o estudo do livro Elementos de Filosofia Moral, de James Rachels4, iniciou-se uma discussão sobre homossexualidade, que acabou nos levando a um caso em evidência na imprensa naquele momento. O caso do cartunista Laerte5, que, vestido de mulher, fora flagrado usando um banheiro feminino. Nossa professora propôs nos dividirmos em grupos, cada qual defendendo uma posição diferente. Um grupo defenderia o direito de Laerte usar o banheiro feminino, o outro lhe negaria esse direito e um terceiro grupo se colocaria como relativista moral, defendendo que ambas as posições estavam certas, de acordo com seu próprio ponto de vista. A discussão que se seguiu foi absolutamente infrutífera no sentido de resolver um problema prático. O grupo que defendia o direito de Laerte usar o banheiro feminino apoiava sua defesa no direito à homossexualidade e no respeito às diferenças. O meu grupo defendia que Laerte não deveria usar o banheiro feminino, porque, embora se vestisse como mulher, e dissesse “se sentir mulher”, isso não fazia dele uma mulher, uma vez que tinha um corpo masculino e se relacionava sexualmente com mulheres. Embora o meu grupo concordasse com todos os argumentos a favor da liberdade na questão da sexualidade, o que desejávamos era que o outro grupo compreendesse que preferências sexuais não estavam em jogo ali. Não estávamos falando sobre a vida sexual de Laerte, mas sobre o uso de um banheiro público cujo espaço físico é projetado de forma diferente para homens ou mulheres. Quando tentei defender a ideia de que, para o senso comum, homem é aquele que tem pênis e mulher é aquela que tem vagina, isso caiu como absurdo. Porque, para filósofos, a sexualidade é algo que se constrói ao longo da vida e ter um pênis ou uma vagina é absolutamente irrelevante. Estávamos numa discussão filosófica e não podíamos colocar as coisas em termos tão simples. A discussão precisava manter um nível filosófico. Devíamos usar argumentos lógicos para derrubar a tese do outro grupo. No entanto, o banheiro público é usado pelas pessoas em geral. E na porta dos banheiros públicos há indicações de “ele” ou “ela”, não há nada do tipo: “se você se sente homem entre aqui” ou “se você se sente mulher entre aqui”.
            Enfim, nós, que defendíamos que Laerte deveria usar o banheiro masculino, fomos praticamente tachados de homofóbicos, o que não era, absolutamente, o caso. Estávamos vendo a situação de um ponto de vista prático, mas a filosofia parecia ignorar haver uma vida em sociedade, onde algumas regras são estabelecidas com o simples intuito de facilitar as coisas. Saí daquela aula me sentindo incompreendida e frustrada. Me ficou uma sensação de que filósofos não conseguem enxergar o que é simples. Pensei, naquele momento, que talvez filósofos não fossem, realmente, pessoas “comuns”. E me prometi me policiar para, estando dentro da filosofia, me esforçar para não me distanciar exageradamente da realidade e não perder o senso prático que a vida exige de nós o tempo todo.       
            Na verdade, não há como negar que o estudante de filosofia já chega à academia se sentindo um pouco “diferente” e, ouso dizer, desejando sê-lo. Vivemos num mundo em que se atribui maior valor à atividade intelectual do que à braçal e isso pode dar ao estudante de filosofia essa ilusão de ser alguém especial. Daí não é muito difícil concluir que, mesmo sem ter total consciência disso, seus movimentos se darão justamente no sentido de ser diferente, sem que se façam maiores esforços para que as próprias ideias, já mais buriladas e sofisticadas, sejam transmitidas de forma a serem compreendidas por todos. Ser incompreendido por ser difícil pode ser, para alguns filósofos, envaidecedor.
            E é justamente nesse desinteresse de alguns por ser acessível a todos que a filosofia sai prejudicada. Porque, se não formos acessíveis a todos, que mudanças poderemos promover no mundo?
            Um documentário sobre Simone de Beauvoir6 (Arquivo N)7 fala de uma carta que uma leitora agradecida lhe escreveu. No trecho reproduzido abaixo percebe-se bem a importância de Simone ter usado uma linguagem acessível:

Querida companheira e, ouso dizer, amiga. O seu livro ‘O Segundo Sexo’ me encantou. Eu li e reli muitas vezes e dei de presente a muitas pessoas e ainda darei a muitas outras. Sou uma operária que nem terminou os estudos. A senhora fez um bom trabalho. Me permito te mandar um beijo.


                            Todos, filósofos e não filósofos, sabemos e sentimos na pele as mudanças que Simone de Beauvoir promoveu no mundo todo.
            Imagino que o fato das “pessoas comuns” enxergarem a filosofia como algo distante delas não signifique exatamente que estejam seguindo acriticamente os preconceitos que já existem. Talvez signifique que a própria filosofia se faz hermética a ponto de desestimular o leitor comum a ir mais a fundo. E ela mesma cria essa mistificação, que depois atribui a preconceito das “pessoas comuns”.
            Afinal, o que são “pessoas comuns”? Somos todos pessoas comuns e todos temos na filosofia uma esperança de encontrar respostas para algumas questões que nos incomodam. Nós, hoje, não somos muito diferentes dos filósofos da antiguidade, que se perguntavam o que provocava os trovões. Nossas questões são outras, mas nosso desejo é o mesmo: através da razão, nos ver livres das superstições e crenças que emperram nossas vidas. E quando alguém tem alguma resposta libertadora, o que de melhor pode fazer é seguir o exemplo de Beauvoir, e ser acessível. Ela não teria provocado as mudanças que provocou se tivesse feito questão de ser difícil. E nenhum de nós conseguirá provocar mudança alguma falando a uma minoria de iniciados.
            O leitor quer respostas e se vai em busca delas através da filosofia, sem uma prévia orientação, muitas vezes se frustra ao se deparar com textos cuja leitura, de tão difícil, é quase impossível. É assim que não simplesmente adere a preconceitos já existentes, de forma acrítica, mas elabora seu próprio pós-conceito. Que se espalhará por aí, alimentando essa crença de que a filosofia é para seres humanos especiais, desestimulando o interesse das pessoas em geral e, infelizmente, contrariando esse bonito esforço de Palácios para desmistificar a filosofia.


2 - Gonçalo Armijos Palácios é doutor em filosofia pela Indiana University, professor da Universidade Federal de Goiás e autor do livro De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (Editora da UFG).
3 - Alain Badiou nasceu em 1937 na cidade marroquina de Rabat. Autor de vasta e qualificada produção intelectual, é tido como um dos principais filósofos franceses da atualidade.
4 – James Rachels (Georgia, 1941 – 2003) foi um filósofo americano especializado em ética. Seus trabalhos são conhecidos por sua acessibilidade.
5 - Laerte Coutinho (São Paulo, 1951) é um dos principais quadrinistas do Brasil. Nos últimos anos, passou a chamar a atenção pelo abandono de seus personagens e pela prática do crossdressing.
6 - Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, (Paris, 1908 – 1986), foi escritora, filósofa existencialista e feminista francesa.
7 - Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=oX28Yp-KNoQ&feature=relmfu> acessado em 29/07/2012

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Liberdade é Monogâmica







                   Firmei compromisso com a liberdade
                   e, de pronto, perdi a liberdade
                   de amasiar-me com qualquer outro alguém.
                   Com seu jeito serelepe,
                   promessas de grandes voos
                   e de muita novidade,
                   contraditoriamente
                   a liberdade é, das amantes,
                   a mais possessiva e monogâmica.
                   Ingenuamente pensei que teria liberdade.  
                   Hoje sei que me enganei.
                   Na verdade, a liberdade é que me tem. 

                  Analú
                  26/07/2012