quarta-feira, 16 de abril de 2008

XVI - Batatas

Olá! No último post, que foi há muuuuuito tempo, eu havia comentado que estava preparando um vídeo, o Batatas, que tinha tudo a ver com o conteúdo desse blog. De lá prá cá, a ausência de novos posts se deve justamente à trabalheira que foi fazer esse conto ilustrado. Eu havia imaginado que seriam umas 90 ilustrações, mas foram mais de 140!

O importante é que acho que valerá a pena. Ele também é mais uma "provocação" que quero fazer aqui. Ele fala justamente sobre algo que repito sempre: cuidar de tudo e de todos não é suficiente para que você seja feliz. É preciso que você cuide de você. Nada contra cuidar dos outros também, se essa é sua vocação, mas nunca se esqueça de você mesma. Nunca se abandone, nunca se deixe esvaziar, nunca se distancie de sua alma.

Fiz questão de me dedicar a esse trabalho, porque acredito que um vídeo com um toque de graça possa atingir muito mais pessoas do que um conto, e desejo, do fundo do meu coração, que, dessa forma, um número grande de mulheres possa parar para pensar um pouco. Em tudo: na vida, na velhice, na solidão... nem sei quantos sentimentos posso despertar contando essa pequena história tão simples, mas verídica.

É esse justamente o meu objetivo: que vocês assistam o vídeo, que se emocionem, que pensem a respeito, que se solidarizem com essa velhinha tão simpática. Que, aliás, de hoje em diante representará a terceira idade aqui no meu blog.

E peço que comentem, que falem a respeito de seus sentimentos, que me digam o que pensam a respeito da velhice, se a temem ou se a esperam tranqüilamente. Ou se nem pensam nisso. Que me contem suas próprias histórias, ou histórias que conhecem, que tenham a ver com esse tema.

Espero que, apesar do conteúdo do vídeo ser extremamente sério, vocês possam se divertir um pouco. Abaixo do vídeo vou transcrever o texto na íntegra, caso interesse a alguém.

Bom vídeo!



Batatas

Batatas. Precisava comprar batatas. Se tivesse algumas agora, não passaria por esse apuro. Ficara esperando o neto durante toda a tarde. Viria buscá-la pra passar o fim de ano com a família. Mas... O que acontecia, que ele não aparecia? Se soubesse que estaria em casa até uma hora dessas, teria dado uma saída, até a quitanda, ao menos. Comprava algumas batatas e pronto. Fazia uma sopinha...
Voltou à cozinha. Abriu de novo a geladeira. Não era preciso muito esforço pra chegar à conclusão de que estava "a zero". As prateleiras vazias pareciam zombar dela. Fechou a geladeira, aborrecida. Podia ir até a padaria, comprar uns pãezinhos... Mas... E se o neto aparecesse, nesse meio - tempo? Iria embora, se não a encontrasse. Era isso. Se não a encontrasse, não teria paciência pra esperar. Iria embora, com certeza.
Sentou, desgostosa, na poltrona em frente à TV. Uma TV centenária, que o outro neto lhe dera. As imagens mudas, em branco e preto, não faziam sentido. Levantou-se, foi à janela. O mundo a cores era bem melhor.
Esticou o olhar pro relógio cuco, na parede. Oito e meia. Estava tarde. Talvez fosse melhor ir até o orelhão, dar uma ligada pra filha. Saber o que é que estava acontecendo... Não. Não estava acontecendo nada - disse a si mesma. O neto estava atrasado como sempre, só isso. A fome é que estava aumentando sua impaciência.
Foi à cozinha, esquentou um pouco de café. Vasculhou o armário e encontrou algumas bolachas de água e sal. Se tivesse um pouco de manteiga... Manteiga. Nunca mais comprara manteiga. Só margarina. Desde que sua pensão fora cortada pela metade, havia uma série de coisas que não fazia mais. Deixara de fazer mercado, porque o genro lhe garantia uma cesta básica. Era sozinha, não precisava de muito para viver... Mas, que diabo... - pensou. Ficar na lona desse jeito era até uma vergonha... Às vezes tinha vergonha. Não sabia ao certo de quê, não importava que estivesse só. Era uma vergonha íntima, perante si mesma. Jamais comentara isso com ninguém, mas era algo que a incomodava profundamente. Essa sensação de vergonha. Vivera toda sua vida se dedicando aos outros. Ao marido, aos filhos, aos netos... Trabalhara arduamente, durante toda a vida. Agora tinha que dividir uma mísera pensão com a segunda mulher do marido. - Coitada... - Pensou, sorrindo, nessa outra infeliz. Que faria ela com a parte que lhe cabia? Devia sentir vergonha, também...
Lavou a xícara, sacudiu a toalha no tanque, e então ouviu uma buzina. Enfim, o neto chegara. Correu à sala, fechou a janela, desligou a TV, voltou à cozinha, certificar-se de que fechara o gás, e saiu.

Na casa da filha, a bagunça era grande. Muita gente. Os filhos, genros e noras, os netos com suas esposas e alguns bisnetos. Crianças barulhentas. Comiam vorazmente, muito agitadas. Lúcia lhe deu um prato e disse que se servisse. Estava em casa, sabia disso. Sabia? - Vovó perguntou a si mesma. Não era isso o que sentia. Segurava o pesado prato de porcelana, indecisa. Lúcia montara uma mesa enorme. Havia uma variedade tão grande, que vovó não sabia ao certo o que escolher. Se comesse de tudo, com certeza passaria mal. A filha, percebendo sua angústia, arrebatou-lhe o prato da mão e começou a servi-la. Uma boa porção de salpicão, arroz com uvas-passas, farofa e perú. Não. O peito não. A carne era muito seca, entalava na garganta. Lúcia lhe cortou uma sobrecoxa e arrumou-lhe uma cadeira. Que comesse bastante, era fim de ano!
Vovó comeu demais. Talvez tivesse bebido um pouco demais, também. O genro lhe enchera por três vezes o copo de vinho. Agora estava mal. Lúcia lhe pegou pela mão e levou-a ao quarto de Jorge, o único neto solteiro. Ajudou-a com as roupas. Pronto. Um "engov" e cama. Acordaria bem. Abriu o respiro da janela, pra que se sentisse melhor.
- Boa noite. Feliz ano novo, mãe. - Saiu, batendo a porta.
Estava só de novo. Não, agora era diferente. Ouvia o ruído do pessoal, lá embaixo. Não era como quando apagava o abajur, em seu quarto, todas as noites. Não havia aquele silêncio assustador que parecia querer engoli-la. Podia relaxar. Não era preciso nem rezar... Havia gente por perto.
Em alguns minutos roncava.

O primeiro de ano fora bom, também. Ajudara Lúcia com o almoço, se fartara de comida e de companhia. Assistira TV colorida, conversara com alguns conhecidos que há tempos não via... Estava feliz. Lúcia insistiu para que ficasse até quarta. Acabou ficando. Embora tivesse consciência de que não podia ficar ali eternamente, não havia porquê voltar às pressas. Não tinha ninguém lhe esperando...

Estava só, na cozinha, aguardando que Jorge lhe chamasse. Ia levá-la pra casa. De repente, lembrou-se de que estava "a zero" em casa. Talvez no dia seguinte, à tarde, fizesse algumas compras, mas não tinha nada para o almoço... Correu os olhos pela cozinha e achou batatas, numa fruteira, ao lado do fogão. Se levasse duas ou três já seria suficiente para uma sopa. Procurou numa gaveta um saco plástico, guardou duas batatas, - duas bastavam, eram muito grandes - colocou o saco dentro da sacola de papel onde levava as roupas, e saiu. Jorge já descia, com a chave do carro na mão. Despediu-se de todos e se foi.

A casa lhe pareceu mais vazia. Era sempre assim. Jogou a sacola de roupas num canto da lavanderia, foi ao banheiro, disse "boa noite" à própria imagem, no espelho, e foi dormir.
Não quis enfrentar o quarto escuro. Acendeu o pequeno abajur, no criado-mudo. Às claras o silêncio não parecia tão assustador. Pensou nas noites que passara dormindo ao lado de Jorge. Era reconfortante estar perto de alguém. Pensou na filha. No genro. Nos netos e bisnetos. Pensou na vida. E na própria solidão.
Planejou o dia seguinte. Acordaria cedo, como sempre. Lavaria as roupas que trouxera sujas da casa da filha, faria uma sopa para o almoço... As batatas! - Lembrou. Estavam dentro da sacola de roupas, jogadas na lavanderia! Não havia mal nenhum nisso... Afinal, não estavam jogadas no meio da roupa suja... Havia colocado-as dentro de um saco plástico... Não sabia exatamente porquê, mas a idéia das batatas no meio da roupa a deixava aflita. Teve a sensação de que não dormiria bem se não as levasse para a cozinha, se não as colocasse num local apropriado. Levantou-se e, com um passo arrastado, chegou à lavanderia. Pegou a sacola de papelão, tirou de dentro dela as roupas que teria que lavar no dia seguinte e não encontrou mais nada a não ser um saco plástico vazio. Confusa, pegou o pequeno saco e então viu que estava furado. Assim como haviam entrado por um lado, as batatas haviam saído pelo outro. E, provavelmente, haviam rolado para o piso do carro de Jorge. Então se deixou dominar por uma aflição enorme. Numa fração de segundo pôde ver Jorge encontrando as batatas, no carro. Acharia estranho, as levaria para casa e comentaria com a mãe. Lúcia, imediatamente, ligaria os fatos. Chegaria à conclusão de que a mãe pegara as batatas sem avisá-la. Sentiu um mal-estar. Correu à cozinha, para sentar. Jamais poderia ter pego qualquer coisa sem pedir a permissão de Lúcia! De repente lhe ficava claro que um gesto que lhe parecera tão natural, poderia ser interpretado como... como roubo! É claro! - Pensou. Pegar algo sem o consentimento do dono era o quê? Roubo! Roubara as batatas e havia sido pega. Agora tinha que se explicar.
Voltou à cama. Olhou o relógio. Já era madrugada. Não poderia ligar agora para a filha. Assim que amanhecesse, iria à casa dos fundos, pediria para telefonar. Explicaria tudo à Lúcia. Que pegara as batatas num momento em que estava sozinha, que esquecera de lhe avisar... Pediria desculpas, havia agido mal. Passou a noite toda se revirando nos lençóis. Estava quente, e a preocupação não a deixou dormir.
De manhã, depois de um rápido banho, sem nem ao menos ter tomado um café, correu à vizinha.
- Lúcia! - Exclamou, ao ouvir a voz da filha ao telefone. Então, muito sem jeito, explicou-lhe o que acontecera.
Lúcia riu. Achou graça na preocupação da mãe. Deu-lhe até uma bronca carinhosa por ter se preocupado com tal bobagem.
Vovó desligou, com o coração aliviado. Percebeu-se trêmula, e respirou fundo, ainda meio angustiada. Agradeceu à vizinha e foi pra rua.
Durante a caminhada até a quitanda, pôde pensar com mais calma a respeito de tudo. Restou uma sensação estranha de que algo em sua vida dera errado. Mas o quitandeiro já perguntava: - Que vai querer?
- Batatas. - Vovó respondia, magoada.


Este conto faz parte da coletânea Acasos, da autora deste blog, à venda pela Internet.