terça-feira, 13 de setembro de 2016

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Michel Temer e a Peste de "Estado de Sítio", de Camus


Quem se debruça sobre a peça de Camus se flagra atônito diante do inevitável paralelo entre seus personagens e os do golpe que estamos sofrendo. Vivesse no Brasil de 2016, Camus não teria escrito com tanta propriedade sobre nossos políticos.  

Ditadores constituem o objeto da crítica de Albert Camus em Estado de sítio, um clássico da literatura mundial. Camus se refere à Espanha de 1948, mas, como todo gênio, vai além do seu tempo e espaço e cria uma mensagem universal e atemporal de estímulo à coragem que nos serve à perfeição nos dias de hoje. A peça se passa em Cádiz e descreve um golpe de Estado, mostrando o modus operandi de golpistas e ditadores. Contar-lhes-ei (sic) resumidamente o que se passa em Estado de Sítio, na certeza de que os que acompanharam o processo de impeachment da Presidenta Dilma compreenderão o paralelo que traço e também a proposta de Camus. Que o autor me perdoe pela enorme simplificação da sua rica obra, que merece ser lida na íntegra.

Pense em um golpe chegando em forma de cometa e agravando uma crise. Em uma Peste que se apresenta para reivindicar o poder, impondo a "lógica e a disciplina", como Temer fez com sua "Ordem e Progresso".  Em uma Secretária que, como Cunha, tem argumentos "mortais" contra os opositores. Em um niilista - Nada - que, como os alienados políticos, os pessimistas, os que se mantêm em cima do muro, aumenta a força dos golpistas, possibilitando a concretização do golpe. Pense no vento que vem do mar como a democracia. Outras inúmeras possíveis associações deixo ao leitor, para não lhe tirar o papel de coadjuvante nesta reflexão. Mas insisto ser de enorme valor a leitura da obra na íntegra. Vamos à história:

Cádiz vive sua normalidade, até que se estabelece uma ligação entre aparições de um cometa e uma mortal epidemia, que coloca a população em pânico. O governo, em lugar de atacar o mal, ordena aos habitantes que neguem sua existência, e ameaça os "rebeldes" com punição rigorosa.

Aos governantes de Cádiz não ocorre que a epidemia possa lhes atingir pessoalmente. O governador se aborrece, porque o acontecido o priva do prazer da caça, que é muito mais importante do que o povo. O padre se sente vitorioso por ver no cometa um castigo dos céus para uma cidade de pecadores e exorta o povo à confissão e à penitência. O juiz não se importa minimamente, pois crê que, por ser justo, nada o atingirá. Mas, a cada nova aparição do cometa, a epidemia se alastra. Quando a população já está suficientemente amedrontada e, assim, enfraquecida, surge a Peste, oportunista, reivindicando o poder. Traz consigo uma Secretária, que tem o dom de emitir raios que podem adoecer as pessoas ou até matá-las, caso seu comportamento não seja "adequado". Sob essa ameaça, apavorados, o governador e seus auxiliares abdicam, deixando a população à mercê da Peste, que anuncia uma nova ordem, que imporá a lógica e a disciplina, punindo os fracos (os que amam) e recompensando os fortes, em especial os delatores. Aos que participarem lealmente da nova sociedade, o governo promete suprir de gêneros de primeira necessidade, em partes iguais e ínfimas.

O Coro conclama a fuga para o mar, questionando o amor da Peste: "Quer que sejamos felizes como o entende, e não como nós queremos." O povo tenta fugir para "o mar, livre, a água que lava, o vento que liberta", mas as portas da cidade se fecham, e acaba a esperança de liberdade.

A população, oprimida e possuída pelo medo, não se apoia mutuamente. Chega então um mensageiro determinando que, uma vez que as palavras podem ser veículos de infecção (É GOLPE!!!), todos os habitantes devem levar constantemente, na boca, um tampão embebido em vinagre, que os preservará do mal, com o benefício adicional de mantê-los em silêncio. A população emudece, é declarado o estado de sítio e ficam proibidos "a ridícula angústia da felicidade, o rosto estúpido dos apaixonados, a contemplação egoísta das paisagens e a criminosa ironia". Em seu lugar passa a imperar a "Organização". Em seguida, os homens são separados das mulheres. A Peste declara iniciado seu ministério, orgulhosa por implantar o silêncio, a ordem e a absoluta justiça.

O povo, fragmentado, não tem coesão para reivindicar seus direitos mais fundamentais, como o de morar sob um teto e, para agravar a situação, surge "Nada", um personagem que em nada crê. Com total ausência de valores, representando o vazio que tende a ser preenchido pela destruição, Nada se torna útil à Peste, fortalecendo-a. Frente às reclamações do povo, que deseja de volta seu legítimo Governador, Nada argumenta que tanto o Governador como a Peste cumprem o papel de Estado e, portanto, estar um ou outro no poder não faz diferença alguma.

A Peste administra a cidade reclamando do povo, por não ser trabalhador. Orienta sua Secretária para que "inicie os grandes trabalhos inúteis", e "ative a transformação de inocentes em culpados". A Secretária abusa do obscurantismo retórico, dos procedimentos burocráticos e vence a população pelo cansaço. "O processo é cansar - eis tudo. Quando estiverdes arrasados de cansaço, o resto caminhará sozinho." E Nada, por sua vez, considera que ao povo humilhar-se é bom, que é preferível viver de joelhos do que morrer de pé e que o instante perfeito é aquele em que ninguém mais se compreende.

Entra em cena o herói Diogo, que luta pela liberdade e pela mulher que ama, Vitória, a filha do juiz. Íntegro, tenta mostrar a Nada que mentir é uma tolice. Nada refuta: "não, mentir é uma política". Diante do povo sem voz, que se ressente por ter se transformado apenas em "massa", incita-o a gritar seu medo, prometendo que o vento responderá. Ameaçado pela Peste, Diogo foge e tenta se abrigar na casa do juiz, pai de Vitória, que se nega a acolhê-lo, por considerar que está contaminado e porque é um juiz e a um juiz cabe apenas cumprir a lei, pois qualquer lei é sagrada e indiscutível. Inicia-se uma balbúrdia na casa do juiz, conflitos familiares vêm à tona e a família perfeita se revela uma fraude. Diogo tenta fugir e se depara com a Secretária, que o quer seduzir. Indignado, ele a esbofeteia, para alegria do povo, que se livra dos tampões de vinagre e grita em uma só voz. A Secretária se diz vencida e está desvendada a regra do jogo: o poder cessa ao cessar o medo. O vento do mar começa a soprar.

Na parte final de Estado de Sítio, em posse da vida de Vitória, a Peste ainda tenta corromper Diogo, propondo-lhe que vá viver seu amor e deixe a cidade sob seu domínio. Mas Diogo se nega a sacrificar a liberdade dos habitantes de Cádiz em nome de seu amor por Vitória. Prefere trocar sua vida pela dela e manter Cádiz em liberdade. Morre. A Peste e a Secretária partem para sitiar alguma outra cidade. Nada anuncia o retorno dos antigos governantes à cidade e se atira ao mar, que o traga. 

Assim termina Estado de Sítio. Cádiz é libertada pelo povo unido em torno de uma mesma causa, sem medo.

                                                                       Ana Lucia Sorrentino