segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Poesia - Procura-se (2007)





















Procuro uma espécie nova,
e tenho que pô-la à prova
pra ver o quanto me serve.
Não basta só me servir.
Tem que ter um ir e vir
entre um mundo e outro,
ter jogo de cintura,
ter bom senso, ter candura,
circular por novas zonas,
sem ter medo de errar.
Procuro um ser humano
tão humano, tão humano,
que tenha instinto animal.
Que nunca seja um macho
nem mesmo uma feminista.
Que seja aura, alma, calma,
que seja vida e amor.
Procuro uma espécie nova,
e não sei onde achar.
Por certo não há de ser
na mesa de qualquer bar.
Também não creio que exista
onde alcance a minha vista.
Nas ruas por onde ando,
nos prédios em que circulo,
no trânsito em que enlouqueço...
Não. Não sei de ninguém assim.
Queria alguém que amasse
e que amasse amar.
Que sempre se entregasse
e sempre viesse buscar.
Uma espécie tão nova
que luzisse, transparente.
Que transasse com a alma
nunca acreditasse
no que acredita essa gente.
Que não pisasse, planasse,
e que tocasse, tocasse, tocasse...
Procuro essa espécie, louca,
mas não sei onde achar.
Quem sabe, talvez, fluindo,
e me deixando levar,
me tornasse mais etérea,
conseguisse flutuar.
Quem sabe me elevando
e aprendendo a minha parte,
eu conseguisse, com arte,
Deixá-la me encontrar...


Analú

domingo, 26 de dezembro de 2010

Felicidade Obrigatória

Antes de ontem foi véspera de Natal, ontem foi Natal, e hoje é um dia depois do Natal.
Semana que vem será o final do ano. E depois, o primeiro de ano. E, depois, o segundo dia do ano. E assim sucessivamente.
Há mais de um mês que se observa mudança significativa na vida da cidade. Excesso de trânsito, correria. Uma certa dificuldade pra se trabalhar, e uma resistência das pessoas em resolverem coisas importantes, porque , afinal, estava chegando o Natal.
Na última semana, era difícil ir ao mercado, ao shopping, à esquina. Estabelece-se uma onda de consumo desenfreado, e às vezes, olhando em volta, tem-se a impressão de que o mundo vai acabar.
Vivemos em ciclos. Há ciclos internos, nosso organismo se reciclando, nossa vida pedindo mudanças, nosso emocional querendo novidades, nosso afetivo desejando um novo amor...
E há os ciclos externos, determinados por datas específicas, por marcações de tempo, por cumprimento de jornadas.
Os ciclos, parece-me, nos ajudam a viver. A vida é uma coisa que segue, segue, segue, e, se fracionamos o tempo, às vezes temos a impressão de que isso ajuda. Até porque determinamos pausas, entre um fragmento de tempo e outro, para descanso. Férias.
Todos os anos fico muito impressionada com a alteração no comportamento das pessoas por conta do Natal e do final do ano. E, pra não ser estraga-prazeres, raramente explicito o que penso. Mas penso que se vivêssemos de forma mais consciente e se respeitássemos um pouco mais nossos ciclos internos seríamos mais felizes, o prazer estaria presente de forma mais intensa no nosso dia-a-dia e essas paradas forçadas não seriam tão absurdamente necessárias.
Vejo que para curtir férias de dez ou quinze dias, muita gente entra numa paranóia um mês antes e se estressa mais do que se estressaria se não tivesse férias. E muitas vezes me parece, observando alguém que sonha com um paraíso distante, que a busca, na verdade, é por algo que falta dentro de si mesmo. O paraíso vai distrair um pouco o buraco interno, mas ele não deixará de existir, estará lá quando a rotina voltar ao normal.
Em nome de comemorar o nascimento de Jesus, muita gente se mata, gasta mais do que pode, se desgasta e termina o ano cansada e no vermelho. E, na loucura das compras e dos preparativos, as pessoas acabam esquecendo-se do aniversariante, e do que ele ensinou, que foi o amor, a aceitação do outro como é, e a simplicidade.
Nos últimos dias cruzei com pessoas que não estavam felizes. E que, por não estarem felizes numa época em que a felicidade é obrigatória, estavam mais infelizes ainda.
Afinal, dá pra se marcar dia pra ser feliz?
E dá pra se marcar dia pra pedir ao coração que perdoe todo o descaso que se sofreu durante o ano, e que se abra pra receber com abraços aqueles que não nos abraçaram quando precisávamos disso desesperadamente?
Dá pra se pedir a um coração machucado que cicatrize artificialmente pra que possamos sentar à mesa com quem nos magoou, em ceias regadas a hipocrisia?
Sentimentos não se impõem. Por mais que tentemos entender racionalmente as razões de alguém, o coração tem seu tempo, e ele não aceita suborno.
Os ciclos impostos muitas vezes brigam ferrenhamente com os ciclos internos.
E, infelizmente, muitas vezes as pessoas não entendem que desrespeitar nosso tempo interno em nome dos chamamentos externos pode nos fazer adoecer.
O espírito de Natal, a que muitos recorrem pra insistir em reaproximações precoces, confraternizações superficiais, forçações de barra, se existe, deveria existir durante os 365 dias do ano. Que começássemos em primeiro de janeiro a prestar atenção nos que nos rodeiam, a ter compaixão pelo próximo, a estar mais atentos às necessidades de carinho que o outro tem. Que nos abrir a escutar e tentar entender o ponto-de-vista alheio fosse uma constante, para que estivéssemos próximos de verdade e quando as festas chegassem, sentar à mesa e brindar fosse simplesmente consequência de um relacionamento consistente e verdadeiro.
Seria bonito se conseguíssemos presentear nossos parentes e amigos todos os dias, com nossa presença, nosso carinho, nossa atenção. Nos importando de fato com eles, e fazendo-os perceber que não estão sozinhos.
Aí, sim, chegando o Natal, a confraternização, o sentar-se à mesa para comer juntos e a troca de presentes materiais seriam uma forma de comemorarmos o que existiu de fato, durante todo o ano: o amor.

Analú

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Bendita da Chavinha

Olá! :)


Quem tem me lido, já percebeu que o Barba Azul vai ser um assunto recorrente. Isso tem um motivo, não é porque sou chata. O Barba Azul é chato.
E, como precisamos lidar com ele o tempo todo, há que se esmiuçar essa figura, que vive nos passando as mais desleais rasteiras e boicotando o nosso crescimento.
Como somos treinados, desde que nascemos, a fazer vistas grossas quando percebemos que é ele agindo, dentro ou fora de nós, precisamos nos treinar para começar a enxergá-lo. E falar sobre ele é uma forma de compreendê-lo, saber como age e, quem sabe, escapar de suas investidas.
A história é rica e cheia de detalhes e estratégias, que, aos poucos, podemos entender e aplicar em nossas vidas.
Quando posto ou falo sobre ele, sempre há comentários que me levam a pensar a respeito do enorme poder desse monstro, agigantado pelos mais diversos motivos, entre eles essa insistência da sociedade em nos querer cegos e manipuláveis.

Um comentário que escuto desde a primeira vez em que tive contato com o Mulheres que Correm com os Lobos, e que se repete, de tempos em tempos, tem a ver com a bendita da chavinha que abre a porta do quarto onde o Barba Azul guarda os cadáveres das mulheres que mata. Hoje quero falar sobre isso.
Logo que conheci Mulheres que Correm com os Lobos, comecei a recomendá-lo para as mulheres com quem tinha contato. Uma amiga minha, que passava por uma separação complicada, leu a história do Barba Azul e deu risada de si mesma, porque se viu naquela situação em que a filha caçula, seduzida pelas gentilezas do monstro, pensa: Como sou boba! Por que me repugna tanto aquela barbinha azul? E mesmo se enxergando na inocência da personagem, em seguida fez uma reflexão que me fez pensar no quanto era, realmente, inocente, embora tivesse consciência do muito que já sofrera por conta de sua extrema credulidade.
Pensando sobre o fato da esposa do Barba Azul ter desobedecido sua ordem de não usar a chavinha que abria o quarto misterioso, refletiu que não devemos desejar saber tudo sobre as pessoas, porque todos temos segredos. E esse é um tipo de raciocínio que sempre surge quando colocamos essa situação em discussão. A invasão de privacidade.
Oraoraoraora...
É ÓBVIO que sabemos que todos têm seus segredos, e que devemos respeitá-los.
O que me surpreende e acaba fortalecendo essa tese de que somos treinados para não enxergar é o fato das pessoas não perceberem que há delitos e delitos. Que há pequenos segredos que devemos respeitar, sim, porque fazem parte da nossa individualidade e privacidade, mas que há grandes segredos, que colocam coisas muito mais sérias em risco.
A história do Barba Azul, pra mim, não fala sobre invasão de privacidade. Fala sobre auto-preservação.
Uma coisa que me intriga profundamente é não raro perceber nos leitores um julgamento mais severo em relação ao comportamento da mocinha, de desobedecer o marido para salvar sua própria vida, do que em relação ao comportamento do Barba Azul, de matar e decapitar suas esposas!
O que faz com que as pessoas sejam indulgentes em relação ao crime hediondo e apontem um dedo acusador contra aquele que está tentando garantir sua sobrevivência???
Não estou falando aqui de pequenas traições sexuais, que, afinal, fazem parte da natureza humana. Não estou falando de mentirinhas nem de invejas brancas, que praticamos e sentimos o tempo todo. Não estou falando de omissões que, mais do que esconder, tentam impor um limite na interferência do outro na nossa vida, o que é saudável...


Falo de relacionamentos que cerceiam nossa liberdade, que nos impedem de crescer, que minam nossas energias, que limitam nosso território de ação e nossa fertilidade criativa. Que, numa última instância, nos matam.
A heroína da história recebe instruções do marido e as acata. Quando ele diz que ela tem toda a liberdade para fazer o que quiser, mas impõe uma restrição, ela é incapaz de perceber que está vivendo menos, e não mais.
O Barba Azul não matava passarinhos... aquele quarto proibido estava abarrotado de cadáveres de mulheres!!! No entanto, as pessoas acreditam que a mocinha deveria respeitar a privacidade dele. Talvez acreditem que, se ela não tivesse descoberto o segredo do marido, ele seria o melhor marido do mundo até o fim de seus dias... :(
Essa inversão de valores inevitavelmente me traz algumas situações à mente.
Quantas vezes você já viu alguém que, para provar estar sendo vítima de chantagem, grava a cena do chantagista em plena ação, mas se vê privado do direito de usá-la, porque é contra a lei? Quantas vezes aquele que usa uma escuta para flagrar um corrupto responde por seu crime muito mais penosamente do que o próprio corrupto?
Recentemente a mãe de um bebê de meses desconfiou que seu marido maltratava o próprio filho quando da sua ausência. Gravou cenas do pai judiando terrivelmente da criança e não pôde usá-las, porque é proibido por lei. Se recorresse a isso para tentar fazer justiça, seria ela a responder pelo crime de invasão de privacidade. Acabou tendo que usar o subterfúgio de denunciar o marido por porte ilegal de armas. Conseguiu que o prendessem, mas por caminhos tortuosos.
Foram vários os relatos que escutei, ao longo da vida, de mulheres que se diziam com a auto-estima no chão por conta de maridos desleais, mas que, ao me relatarem suas histórias, colocavam-se como as vilãs, por tentarem descobrir com quem realmente estavam se relacionando. A culpa as corroia.
E outros vários os de mulheres que desconfiavam de falhas graves de caráter em seus companheiros, mas que, por terem interesses outros que não o do amor, assumiam deliberadamente a atitude de continuar na ignorância. Claro, até se tornarem vítimas dela.
Quantos de nós fingem não perceber que trabalham para criminosos, até que num belo dia acabam respondendo por algum processo pesado por terem cumprido alguma ordem sem questionar?
É importante perceber que, em todas essas situações, há o Barba Azul na vida real – o chantagista, o marido, o pai, o patrão, mas há o Barba Azul na vida subjetiva – esse lado sombrio de nossa psique que nos aconselha a não agir, não investigar, não criar, não enfrentar, não arriscar, não crescer. Aquela vozinha miúda que nos diz para fechar os olhos e não enxergar. Que nos induz a guardar nossos pincéis porque não temos talento. A engavetar nossos textos, porque estão aquém do que os leitores esperam. Que insiste para que nos escondamos num mundinho falsamente seguro e limitado, porque o mundo lá fora é perigoso.
A educação que recebemos, a cultura em que vivemos, um contexto às vezes pouco favorável aliados a um predador interno forte o bastante para nos paralisar cria essa cegueira fatal.
Vamos no embalo, enquanto isso nos serve, até que, abruptamente, tomamos um grande susto. E vemos nossa dignidade literalmente arrasada.
Então, se o próprio assassino nos coloca uma chavinha nas mãos e nos ordena que não a usemos, para que não descubramos aquilo de que já desconfiamos, o que fazemos?
Ficamos olhando abestalhados para a bendita da chavinha e obedecemos?
É uma opção.
Bem... depois que tivermos nossas cabeças decapitadas não vamos mesmo poder ficar resmungando...






Analú

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Barba Azul - a história, na íntegra

Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo já que ninguém mais se dispunha a nele tocar. Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite. Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.
Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.
"Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim", começaram a pensar as irmãs.
Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram quem não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia menos azul.
Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.
- Vou precisar viajar por algum tempo - disse ele um dia à mulher.
- Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem nos altos uns arabescos, você não deve usar.
- Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo.
- E assim ele partiu, e ela ficou.
Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente: - Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é o aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre.
As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada. Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.
- Talvez essa chave não sirva para abrir nada - Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho - errrrrrr.
Deram uma espiada na esquina do corredor e - que surpresa! - havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada.
- Irmã, irmã, traga sua chave - gritou uma delas - Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa.
Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via.
- Irmã, irmã, traga uma vela. - Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco mais para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs.
Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus!
A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu.
- Oh, não! - exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía.
A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha, pois a chave vertia lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro.
- Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina - ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após a outra de sangue vermelho.
Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue.
- Ai, o que vou fazer? - lamentou-se ela. - Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo.
E foi o que fez.
O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa.
- E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora?
- Tudo bem, senhor.
- Como estão minhas dispensas? - trovejou o marido.
- Muito bem, senhor.
- E como estão meus depósitos de dinheiro? - rosnou ele.
- Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor.
- Então, tudo está certo, esposa?
- É, tudo está certo.
- Bem - sussurrou ele - então é melhor devolver minhas chaves.
Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave.
- Onde está a menorzinha?
- Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo, o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave.
- O que você fez com ela, mulher?
- Não... não me lembro.
- Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer carinho, mas em vez disso a segurou pelos cabelos.
- Sua traidora! - rosnou, jogando-a no chão. - Você entrou naquele quarto, não entrou?
Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira de cima havia sangrado, manchando de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados.
- Chegou a sua vez, minha querida - berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores.
- Vai ser agora!!! - rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência.
- Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda-me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus.
- Está bem - rosnou ele - Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se.
A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muralhas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs.
- Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?
- Não vemos nada, nada na planície nua.
A cada instante ela gritava para as muralhas.
- Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando?
- Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe.
Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada.
- Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? - gritou ela mais uma vez.
O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados.
- Estamos, estamos vendo nossos irmãos - exclamaram as irmãs. - Eles estão aqui e acabaram de entrar no castelo.
O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa.
- Vim apanhá-la - gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da gamassa caía esfarinhada no chão.
No instante em que ele entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que caísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão e matando-o afinal, deixando para os abutres o que sobrou dele.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Aquecimento pra leitura de "A Bendita da Chavinha"


Nesse momento estou escrevendo mais uma reflexão sobre o Barba Azul (sim, o chato!). Não tem jeito, é preciso.
Enquanto estava aqui, lendo e pensando sobre ele, me deparei com uma nota, a seu respeito, em Mulheres que Correm com os Lobos (Clarissa Pinkola Estés).
Achei que valeria a pena transcrever a nota aqui, porque ela, por si só, já diz muito, e sua leitura pode ser um bom aquecimento pra que, quando eu postar A Bendita da Chavinha, (que estou terminando), alguém já tenha pensado um pouco sobre o assunto, e, quem sabe, possa me ajudar na reflexão.
Lá vai:
No folclore, na mitologia e nos sonhos, o predador natural quase sempre tem seu próprio predador ou perseguidor. É o combate entre esses dois que afinal produz a mudança ou o equilíbrio. Quando isso não ocorre, ou quando não surge nenhum antagonista apreciável, o relato costuma ser chamado de história de terror. A ausência de uma força positiva que se oponha com sucesso ao predador negativo faz surgir um medo extremo no coração dos seres humanos.
Da mesma forma, no dia-a-dia, há uma quantidade de ladrões-de-luz e assassinos-da- consciência soltos por aí. Geralmente, uma pessoa predatória apropria-se indevidamente da seiva criadora da mulher, tomando-a para seu próprio uso ou prazer, deixando-a pálida e sem saber o que ocorreu enquanto o predador de certo modo vai ficando mais corado e animado. O predador deseja que a mulher não preste atenção aos seus próprios instintos para que ela não perceba o sifão que está preso à sua mente, sua imaginação, seu coração, sua sexualidade, ao que seja.

O modelo de renúncia à nossa vida essencial pode ter começado na infância, estimulado por quem se encarregava da criança e queria que o talento e beleza da criança suplementassem o vazio e a fome dessa mesma pessoa. Ter uma formação dessas dá enorme poder ao predador natural e nos prepara para ser uma presa para os outros. Enquanto seus instintos não voltarem a funcionar corretamente, a mulher criada dessa forma é extremamente vulnerável a ser dominada pelas necessidades psíquicas tácitas e devastadoras dos outros. Geralmente, a mulher com os instintos em ordem sabe que o predador está se insinuando por perto quando ela se descobre num relacionamento ou numa situação que faz com que sua vida se limite, em vez de se ampliar.


Vale a pena pensar um pouco sobre isso. ;)
Em seguida, vou comentar sobre a chavinha, espero participação, hein! ;)

Beeeijos!!! :)

Analú