Quando conheci Perturbação eu era ainda
meninota. Não sei precisar o momento exato em que a vi pela primeira vez.
Talvez tenha sido numa dessas interrupções abruptas de alguma brincadeira de
criança à qual me entregava prazerosamente. Sei que algo quebrou o encanto e me
lembro de grandes olhos de malícia me fitando e certa maldade no sorriso de
canto de boca.
Embora a estivesse percebendo pela
primeira vez, me jurou que me conhecia desde o berço e que, provavelmente,
nessa época, por estar tão protegida pelos cuidados familiares, eu não registrara
sua presença. E prometeu que nunca me abandonaria, mesmo que nalguns momentos
precisasse se ausentar. Que eu esperasse, porque a qualquer instante voltaria.
Orgulha-se de ser fiel.
Depois disso, de fato, Perturbação
nunca mais deixou de me visitar. Em certas fases com maior frequência, em
outras esporadicamente. Chegava sempre como quem não quer nada, com seus
tamanquinhos de sola de madeira batucando algo que não música no chão. Embora o
tamanco, com seu barulhinho irritante, fosse marca registrada, percebi, há
pouco tempo, que Perturbação não tem um estilo. Às vezes vem séria, de preto,
às vezes toda florida. Algumas vezes me apareceu linda, linda, toda em corações
vermelhos, quase em fogo, e foi então que mais me tirou do prumo.
Com seu jeito convincente de quem se
julga necessária, se fez presente em todos os momentos cruciais da minha
existência.
Não raro imaginei ter Perturbação
algo de diabólico, tão de supetão surgia do nada e pro nada se ia. Mas então
notei que, vez ou outra, me avisava, sim, com algum pequeno sinal, de sua
aproximação. Desatenta que sou, sempre lhe abri as portas e permiti que viesse,
me abraçasse e me beijasse, ora com doces lábios úmidos, ora com dura frieza.
Certa vez, tendo sua visita sido
demasiado prolongada, perguntei-lhe se não negligenciava outros amigos, que,
com certeza, estranhavam sua ausência. Respondeu-me que se desdobra em muitas,
ignorando por completo aquela baboseira de que um corpo não pode estar em dois
lugares ao mesmo tempo – e riu gostosamente.
É
brincalhona, com certeza. Mas quase sempre seu senso de humor me parece de
duvidoso gosto.
Hoje, mais madura, e tendo
percorrido mil caminhos e chegado a mil destinos, lembro-me de ter cruzado com
essa presença em quase todas as estradas. E permiti que me acompanhasse, ora
por longos trechos, ora só por alguns passos. Às vezes me indicou caminhos, às
vezes os atravancou. E em muitas e muitas ocasiões me pegou pela mão e me tirou
de uma encruzilhada em que eu insistia em sentar e ficar, cansada que estava.
Em nossos últimos encontros percebi
algo diferente em sua feição. Perturbação não é mais a menina agitada que me
viu adolescer e me acompanhou na minha primeira paixão. Não é mais a figura
forte e determinada que me paralisou nas doenças, nas decepções, nas tristes
constatações de impotência e solidão.
Parece-me um pouco cansada, já traz rugas
no rosto e às vezes cede à minha desatenção. Dá meia volta e se vai, um tanto
quanto desgostosa, mas até que conformada. Eu a olho se distanciando
morosamente e não consigo não sorrir, pensando que deve se aborrecer por não me
provocar mais paixão. Mas confesso sentir algum carinho e ter até, por ela,
grande consideração.
Embora Perturbação seja
inegavelmente perturbadora e tenha esse espírito promíscuo, não há como negar:
é fiel e presente. E intuo que, apesar de tantas vezes rejeitada e mal recebida,
é a amiga que me viu crescer e que me acompanhará, cada vez mais calma, até o
último minuto da minha vida.
Ana Lucia Sorrentino
Imagem: Google
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