A frivolidade é o
antídoto mais eficaz contra o mal de ser o que
se é: graças a ela iludimos o mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades.
(Cioran, em Breviário de Decomposição)
(Cioran, em Breviário de Decomposição)
Caro Cioran:
Permita-me chamar-lhe de amigo, apesar
de termos nascido em épocas e lugares distantes e de jamais termos nos
encontrado, senão em pensamento. Estou lhe escrevendo porque sempre que entro
em contato com seus escritos tenho vontade de comentá-los e acabo lamentando
profundamente não ter seu e-mail. Não poderia esperar que tivesse um blog, onde
eu pudesse deixar-lhe uma palavrinha e, na verdade, é mesmo uma sorte sua não ter
um. Blogueiros sofrem muito. Se, na intenção de promover liberdade de
expressão, permitem comentários, precisam estar dispostos a receber todo tipo
de agressões verbais, seja lá pelo motivo que for, de gente que nem ao menos se
dá ao trabalho de ler o texto inteiro antes de comentar. Estamos vivendo uma
estranha época em que as pessoas se orgulham da própria falta de educação. Recentemente
aconteceram por aqui coisas do arco da velha. Prefiro nem contar para que não
fique mais desgostoso do que já é em relação ao ser humano, se é que isso é
possível. Fico feliz por você não estar à mercê disso.
Não havendo esse blog, pensei então
em lhe escrever pelo meu. Não sei por onde você anda e, como não acredito em
vida após a morte, creio que jamais me responderá. Mas isso não o faz diferente
de tantos “vivos” para os quais escrevo com frequência. A tremenda facilidade que
temos para nos comunicar virtualmente com gente do mundo todo a qualquer hora resultou
em uma quase impossibilidade de nos relacionarmos de verdade, seja lá com quem
for. Jogamos e-mails ao vento, trocamos gracinhas e fórmulas de bem-viver com
todo mundo, defendemos ferrenhamente partidos políticos questionáveis, usamos
imagens para sermos mais bem compreendidos e assim seguimos, solitários. Nosso
tempo é engolido pelas infinitas possibilidades e muitas vezes nem conseguimos perceber
a quem valeria a pena dar um pouco de atenção. Talvez nem mesmo acreditemos que
alguém assim exista. Somos “líquidos”, como diria Bauman. Escapamos entre os
dedos, escorregamos por baixo da porta, vez ou outra descemos ralo abaixo. Isso
é meu, não de Bauman.
Bem... escrevo então esta carta por
crer que, imaginando que a lerá, pensarei sobre tudo com mais cuidado e empenho
do que se estivesse conversando só comigo mesma. Costumo ser generosa e
tolerante comigo e isso às vezes me produz desmandos. Um bom interlocutor é
sempre um chamamento ao rigor, além de ser instigante.
Tenho me perguntado o tempo todo
para que escrevo, afinal. Certa vez ouvi de alguém que, se tivéssemos que
escrever para ensinar alguma coisa ao mundo, não deveríamos escrever: deveríamos
tratar o mundo a socos e pontapés. Não imagina quantas vezes me lembro disso
antes de me envolver com as palavras... Acontece que há muito deixei de
acreditar que possa “ensinar” algo ao mundo. Escrevo para me livrar das ideias
que ficam me rondando como crianças sonolentas que se põem a rir e não me
deixam tranquila se não as coloco para dormir em um berço de papel. E devo
confessar que, enquanto o faço, ponho nisso tanto carinho que me liberto de
todo e qualquer sofrimento que não o da angústia de combiná-las bem. Mas este é
lúdico, e me distrai daqueles, sobre os
quais não tenho qualquer domínio.
Estive vendo alguns vídeos sobre
você. O que mais gosto em você, nesses vídeos, é da lucidez com que se descreve
e da forma como ri de si mesmo. Talvez porque eu também ande sempre a rir de
mim, mesmo nas adversidades. Mas hoje me emocionou em especial um em que sua
imagem aparece mais longamente, você calado, passando as mãos nos cabelos
brancos, e sua expressão de inteligência ocupando a tela inteira. Inteligência
maciça acrescida da experiência de toda uma vida. Inteligência que vaza pelo olhar
cansado de quem já viu muito e de quem se desiludiu também com as palavras. Uma
inteligência em silêncio. Cheia de dignidade. Às perguntas do jornalista você respondia
com frases econômicas e com uma voz
rouca que parecia carregar o peso da inutilidade de respondê-las. Revi o trecho
algumas vezes, quis reter. Escrevendo agora sobre isso posso te ver e me
emociono novamente.
Frequentemente tenho tido vontade de
te escrever. Para contar que a academia continua roubando nossas almas, e que,
à medida que consigo, me protejo disso escrevendo. Roubo dela o tempo que ela
me rouba e escrevo sobre o que quero. Depois, subtraída do tempo que eu mesma
roubei, escrevo precariamente sobre aquilo que ela me obriga a escrever... Não
tenho tido notas muito boas, mas reduzir-nos a um número é algo tão injusto que
evito até pensar nisso. Sigo, para ser legitimada como profissional. E, afinal,
preciso ganhar a vida de alguma forma... Na prática, você sabe... Proliferam no
mundo imbecis diplomados e muita gente brilhante morre sem diploma algum... Produtores
de futilidades se “dão bem”, enquanto pessoas seriamente dedicadas muitas vezes
passam a vida em dificuldade. Contingência pura.
Também penso sempre em te escrever
para te contar que sei muito bem a que se refere quando diz que os grandes
enfermos não se enfastiam porque a doença os preenche, pois conheço isso muito
de perto. E, por isso, como você, decidi jamais dar muita importância a meus
pequenos sofrimentos... Também vivo querendo te contar que sempre que olho para
as luzes da noite sinto um ímpeto de me embrenhar por elas, e lembro com inveja
de suas noites insones caminhando pelas ruas de Sibiu... amo a noite. A tudo
isso resisti. Conversava com você mentalmente, e me satisfazia. Mas hoje quis
escrever.
Quero te contar que um fenômeno
atual registra em textos e fotos uma dessas suas percepções de precisão
cirúrgica. Se estivesse entre nós, provavelmente você se surpreenderia ao ver,
em murais virtuais, a materialização do que captou e descreveu tão bem observando
o comportamento humano. O início do século XXI trouxe uma enorme intensificação
do movimento nas redes sociais e por volta de 2004 deu-se um "boom"
que mudou nossas vidas. Ao longo dos últimos anos, Cioran, o fenômeno da
autoexposição nessas redes só cresceu e atinge, hoje, um nível que eu diria de
verdadeira provocação. A inclusão digital misturou, no mundo virtual, classes
sociais que, no mundo real, não se misturavam. As classes desfavorecidas
passaram a circular virtualmente por mundos cujo acesso, antes, no mundo real,
lhes era negado. Por outro lado, a juventude
das classes mais abastadas, que foi criada a pão de ló, desfrutou de
privilégios desde sempre e nunca teve que batalhar pela liberdade, que lhe foi
“dada” por uma geração de pais inseguros e permissivos, parece não fazer ideia
do que significa a palavra “compaixão”. Também desconhece os malefícios que sentimentos
como a inveja e a cobiça, inerentes ao ser humano, podem causar. Sentimentos
que nossos avós, sabiamente prudentes, nos ensinavam a evitar, evitando a
exposição exagerada da própria sorte.
Ocorre, nas redes sociais,
exatamente o contrário do que nossos avós aconselhavam: o escancaramento da
vida privada, uma autoexposição exagerada, um fenômeno a que a filósofa Márcia Tiburi
se refere como sendo a substituição do cogito cartesiano “penso, logo existo”
pela crença “sou visto, logo existo”.
Essa frivolidade tornou-se um vício
nas redes sociais. A geração que posta tudo o que faz e toda a “felicidade” que
vive, parece encontrar mais felicidade em postar do que em viver. Os perfis
criam ilusões que só sabem ser ilusões aqueles que conhecem pessoalmente seus
donos. As palavras trocadas em murais entre familiares e amigos quase sempre são
de efusivo amor e carinho. Uma verdadeira banalização do afeto. A vida da maior
parte dos internautas se assemelha em muito a uma grande balada lotada de gente
bonita e de acontecimentos excitantes. As pessoas postam lindos pratos da alta
gastronomia, viagens fantásticas, férias incríveis... Quase ninguém posta o que
não contribua para a construção de uma imagem de ser humano agraciado pelos
deuses.
Nesse mundo de realidades virtuais
não basta que a vida não seja justa. Não basta que, enquanto alguns mal têm o
que comer, outros, sem mérito algum, se regalem com tudo que há do bom e do
melhor. É preciso expor isso sem a menor compaixão, sem a menor empatia pelos
que têm muito pouco, que hoje não sofrem apenas por não ter, mas também por ter
mais consciência do quanto não têm, uma vez que presenciam diariamente a
fartura e o gozo alheios. Assim, um mundo que, na realidade, já é desigual e
cruel, transforma-se, virtualmente, em uma verdadeira brutalidade. Se já é complicado lidar com as diferenças sociais reais, quão mais
complicado é lidar com diferenças criadas em redes virtuais? Creio que uma simples passeada pelo
Facebook provoque em um jovem que não ganha nada de mão beijada e que enfrenta
as condições mais adversas na vida, o mesmo insight que você teve ao escrever
em seu Breviário que “a injustiça governa o universo”. Acontece
que o mundo das redes sociais, ao privilegiar o lado belo da vida, também é, de
certa forma, ficção. Então, como se isso já não
bastasse para criar rivalidade entre diferentes classes, veio somar-se a isso o
fato de que, nessas redes, as pessoas estão dizendo tudo o que pensam sobre
tudo, sem a menor reflexão. O fato de não estar cara a cara com seu
interlocutor e de poder bloqueá-lo ou deletá-lo e até mesmo de poder deletar os
próprios comentários produz uma leviandade corrosiva. E, infelizmente, está
vindo à tona tanto preconceito, tanta arrogância, tanto desrespeito pelo outro,
que é de dar vontade de chorar. E não é paradoxal estarmos vivendo isso em uma
época de acirrada militância do politicamente correto. Parece-me que os mais
sórdidos sentimentos humanos, existentes apesar do nosso desejo em contrário,
quando patrulhados, fermentam.
Assim, Cioran, nas
redes sociais, a imensa vontade de expor o próprio “sucesso” caminha lado a
lado com a exposição da própria miséria interna. Miséria que, talvez, em um
movimento circular, venha crescendo justamente por conta dessa ânsia de viver
para o outro e dessa enorme incapacidade de olhar para dentro de si mesmo. Olhar
pra dentro de si, como bem sabe, é desconfortável, porque, por dentro, muitas
vezes, não há essa beleza que as academias, os cosméticos e as clínicas de
cirurgia conseguem produzir para o mundo ver. Essa "galvanização" que
Benjamin já vislumbrava em "Experiência e Pobreza", que não
transforma ninguém por dentro... E nada muda internamente mesmo com um apartamento
de luxo, o carro do ano ou o celular de última geração. A maior parte de nós
segue, assim, caro Cioran, como você sabiamente detectou: dissimulando a
inconveniência de suas profundidades. De mal a pior.
Não pedirei que me
responda, pois não quero incomodá-lo aí onde está, ou onde não está, mais do
que já incomodei com meu desabafo. E, muito provavelmente, não terá palavras
para me consolar. Mas agradeço de coração por ter deixado registros tão honestos
sobre tudo o que é humano. Lendo-os sinto-me menos só.
Com
carinho, Ana Lucia Sorrentino
Novembro/2015
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