sábado, 24 de outubro de 2020

Elas e eles

Elas saíram às ruas, queimaram sutiãs, questionaram a ordem estabelecida. Espernearam, protestaram, reivindicaram direitos, igualdade, emprego, salário, voto. Batalharam, enfrentaram, conquistaram. Deixaram de servir só ao lar e também de se calar à forte presença do pai de família. Assumiram as contas, a casa, o mercado de trabalho, a profissão, os filhos, os pais idosos, irmãos frágeis, pets abandonados e tudo o que o mundo lhes impõe. Mostraram que podem ser ótimas em tudo o que fazem. Dentro, fora, aqui, além, acolá. São inteligentes, espertas, multifacetadas, multitarefas, interessadas, competentes, eficientes, fortes. Trabalhadoras. Estudiosas. Bonitas. Invadiram a política e, apesar de ainda serem poucas, dão de dez a zero nos quesitos honestidade, clareza, facilidade em se comunicar. Aprenderam a gritar entre trogloditas, pra se fazer ouvir e respeitar. Ganharam votos, visibilidade, credibilidade. Eles se fizeram de tontos pra não ir pra guerra. Reativos. Cederam ao que estavam absolutamente impossibilitados de resistir. Adequaram-se ao que era muito inadequado não se adequar. Ou fugiram. Alguns corajosos descobriram o lado bom disso tudo. Passaram a viver coisas que não viviam, conheceram afetos desconhecidos, desfrutam, privilegiados, de relacionamentos inteiros. Mas são raros. Os preguiçosos procuraram novas saídas, menos trabalhosas do que mudar. A nudez escancarada, nem mais vendida, mas publicada gratuitamente em quantidade industrial, parece tê-los desanimado... A agressividade de quem precisou aprender a se defender parece tê-los desencorajado... Encontram, com facilidade, em seus iguais ou na virtualidade - esse "quase" -, alternativas à tão dificultosa tarefa de lidar pessoalmente com o que muda o tempo todo, com o que se supera, com o que questiona, com o que se pode viver intensamente, mas que demanda coragem. Ah, essa virtualidade, coisa facilitadora para os relacionamentos... Uma só tecla - delete -, um só comando - bloqueio -, e as desavenças se resolvem "civilizadamente". Elas reagem às leis do mercado. Quanto mais rara a "mercadoria", mais cara. Não basta ser bela e competente para conseguir um companheiro. Não direi nem um "bom companheiro", porque já seria querer demais. E elas acreditam que precisam disso, porque desde o berço foi o que lhes ensinaram. Nos contos-de-fadas, nas histórias de princesas, nas brincadeiras de casinha... Não bastasse isso, a que meninas modernas até resistem, a sociedade volta seu olhar torto a toda solitária, a toda celibatária, a toda mulher que não pensa em ser mãe. Há, também entre elas, as corajosas. Mas para que uma mulher se sinta livre como os homens se sentem naturalmente é preciso ter muito, muito mais coragem do que eles. Até porque todo ato de liberdade, quando praticado por uma mulher, é sumariamente julgado pela sociedade. Já belas, elas ainda se enfeitam para atingir padrões que possam atrair a atenção de um raro macho alfa. Pode-se atribuir essa obstinação à natureza, à cultura, à publicidade... Talvez seja um fator a se considerar o fato de que, enquanto para eles, cultuar Onã é prática natural desde sempre, para muitas delas, por incrível que pareça, ainda é tabu. Mas, também, por incrível que pareça, muitas ainda consideram que ter um homem a tiracolo lhes confere um status mais elevado... Assim, andam sobre plataformas e agulhas pra alcançar a altura "adequada" e a elegância "necessária". Espremem seus seios em bojos emborrachados pra que seus colos fiquem lindamente estufados e seus mamilos devidamente escondidos. (Percebi recentemente que mamilos marcados sob blusas leves podem ser considerados ofensa pessoal, não só a homens, mas a mulheres!). Maquiam-se, camuflam-se, rejeitam sobremesas, sacrificam-se, gastam com tratamentos sofisticados, perdem a expressão com preenchimentos e botox, entram na faca, negam a própria idade... São capazes de contorcionismos para agradar à plateia enfadada... No frigir dos ovos, depois de tantas batalhas vencidas, ganham menos do que eles, nas mesmas funções. Enfrentam tripla jornada e estão sempre cansadas. São culpadas de todas as agressões de que são vítimas, de todos os fracassos familiares, por todos os filhos-problema. Correm, permanentemente, o risco de serem esculhambadas ou agredidas em praça pública por machistas rejeitados, sem que um cidadão, um policial, um anjo da guarda, tome suas dores e interceda a seu favor, covardes de carteirinha, sem pudor. São traídas, humilhadas, constrangidas, esbofeteadas, espancadas, estupradas, e assassinadas quando traem ou abandonam companheiros violentos. E, às que se negam a aceitar relacionamentos desiguais, ou se aborrecem com pavonices masculinas, quase sempre resta a solidão. Será que algum dia existiu mesmo o convívio amoroso entre homens e mulheres? Será que ainda é possível o gozo compartilhado, não só na cama, mas na vida? Desejos coincidentes, planos comuns, caminhos percorridos juntos, respeito, admiração e carinho? Será que a doçura do amor se perdeu irreversivelmente nesse mundo de competição e revanchismo, ou ainda tem jeito? Será que ainda poderemos escapar de todos os estereótipos modernos, sermos gente e não coisa a ser vendida, encontrar não só sexo selvagem, mas sentir prazer de verdade por estar com alguém? Ana Lucia Sorrentino

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