Estou aqui e não dá tempo, não dá tempo, não dá tempo... As coisas rotineiras me estrafogam, me estrangulo. Vivo servindo e resolvendo problemas alheios e à noite, ou de madrugada, tento fazer o que não fiz por mim. Não fiz nada...
Quero me achar dentro desse corpo que cumpriu, mas não gozou. Vou lá no fundo procurar o que me agrada, de onde tiro prazer, o que me faz sentir viva.
Transformo-me em notívaga. Zumbi criador, que à luz da lua pensa, sonha, borda, escreve...
De dia, com olheiras e sonada, sou tachada de contrária, cheia de manias, indisciplinada...
Às vezes me sinto cansada demais, então recuo, e tento seguir a ordem normal das coisas. Dormir cedo, acordar cedo... Me deter às obrigações, fazer café da manhã, almoço e jantar... Levar filhos pra lá e pra cá... Sou o esteio – é o que pensam. A responsável pelo bom desempenho de cada um da família. Do pai, que tem seu trabalho, dos filhos, que têm seus estudos... Tenho que dar subsídios para que todos se dêem bem, cada um com seu dom, cada um em sua área...
E então, mais tarde, talvez, padecer da síndrome do ninho vazio. Vivi para eles, esqueci de mim... É o que escuto muito freqüentemente de cinqüentonas que entraram no jogo da família de cabeça.
É duro ter que se enquadrar em regras que não foi você que criou...
Por que o trabalho matutino é mais nobre que o noturno, se a disposição só me vem à noite, bem como a inspiração?
Atrapalho os outros, que também me atrapalham...
Dou mau exemplo a meus filhos, funcionando em horário nobre.
Será mesmo?
O que faço de madrugada não parece, aos outros, ser trabalho. Que raio de critério é esse, que só reconhece o valor do que se faz em horário comercial?
Meu companheiro disse, outro dia, que não adianta, que não tenho jeito, que isso é batalha perdida.
Meu horário é uma batalha que ele perdeu! Ai ai ai ai ai...
De quem é, afinal, essa minha vida?
O que é que prometi? Mais que isso: jurei! Eu sei que jurei, mas era nova demais... Não sabia nada...
Naquela época, minha grande, enorme, profunda e intensa necessidade era de sexo. Estava apaixonadamente apaixonada e queria fazer sexo quando bem entendesse, sem restrições e com a consciência tranquila. Sim, tranquila. Queria não ter que dar satisfação a ninguém. Mãe, pai, avó, irmãos... Minha vida tinha sido, desde o dia em que nasci, permanentemente vigiada por oito pares de olhos. Dezesseis olhos atentos sempre prontos pra me flagrar num tropeço. Num escorregão. Num erro. Numa safadeza. Numa imperfeição de caráter. E eu, que sempre me achei, desde a infância, tão mau caráter... Era normal, agora sei. Mas cresci acreditando nas coisas que me falavam. Vendo só as coisas que podiam ser vistas... Como é que eu poderia ter consciência da safadeza dos outros, se tudo o que se faz de safado se faz escondido?
E eu acreditava. Acreditava piamente que – pelo menos na minha família – o único ser humano capaz de fazer traquinagens era eu. Coitadinha... Que tamanha e inútil dor na consciência...
Aquele juramento diante do padre poderia ter sido diferente: “Eu prometo transar sempre que tivermos vontade. Na cama e no chão, em cima da mesa e no sofá, na cadeira de balanço ou no quarto de televisão... De dia e de noite, com ou sem tesão... só por distração...” Então, não haveria traição. Traição de mim para mim. É assim que se diz? Ou seja: Eu não me trairia. Não faria, todos os dias, coisas que não quero fazer, apenas para cumprir uma promessa vazia.
(Fragmento de Desromance, a ser publicado nalgum dia, se Deus quiser);)
2 comentários:
É o que uma vez eu li e levo comigo: "É preferível ser contrário mundo servindo à sua consciência, do que ser contrário à sua consciência e ser agradável ao mundo". E aí hein? rs..
Texto magnífico, parabéns!
Beijoca!
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