Solidão me acompanhava, indo pra lá
e pra cá, sem desgrudar um minuto. Não sei como me aguenta... De repente, o cão
da casa em frente latiu. Nos debruçamos na janela da lavanderia e ali ficamos.
Contei-lhe que todas as manhãs me divirto observando-o brincar, enquanto coo o
café. Ela me olhou espantada, como que me lembrando: “eu sei!” Ah, sim... Ela
mesma me sugere, às vezes, adotar um animalzinho. "Um monte de gente
resolve a vida cuidando de bichinhos..." Mas diz isso de um jeito meio
falso, querendo se fazer de desapegada. No fundo, percebo nela um medo enorme
de que eu siga seu conselho e a afaste. De mais a mais, ela sabe que eu tenho compromisso
com Liberdade, que é extremamente possessiva. Não dá muito certo me meter com
ninguém... nem com bichinhos, apesar de gostar tanto deles...
Solidão gosta de mim e eu gosto dela
também. Mas não foi sempre assim... Suas primeiras visitas eu mal percebia. Depois,
quando percebia, me aborrecia. Ela vinha como quem não queria nada e trazia um
vazio com o qual eu não sabia lidar. Eu ficava pensando que se estivesse aqui
ou ali, com amigos, ou se tivesse um amor... Pensava em encher o vazio com coisas
de fora e não me ligava de que solidão me fazia um favor, abrindo esse espaço. Um
espaço só meu que até então eu não fizera muita questão de acessar, nem sei por
quê... De repente, um dia, como sempre
sem ser chamada, ela veio conversadeira. Pediu que me aquietasse e que lhe
prestasse atenção. Que estava ali justamente pra me tirar de toda aquela agitação.
Que a sentisse, que era amiga e interessada. Que aproveitasse sua companhia,
pois uma solidão produtiva era para poucos. As pessoas todas viviam em meio a
tantos ruídos que nunca conseguiam ouvi-la. Metiam-se nos mais variados
afazeres e passavam por cima dela, sem notar sua presença. Trabalho, compras, trânsito,
discussões... necessidades. Criavam
muitas necessidades, para depois saná-las. E aí tinham que trabalhar muito. E, para
compensar o desgaste, faziam as mais variadas coisas: academia, meditação,
análise, yoga... Nunca sobrava tempo pra um bom bate-papo com ela. Percebi Solidão
um pouco solitária. E, como quem cede a um desejo há muito guardado, sentei ao
seu lado e a ouvi. Ouvi com os ouvidos da alma. E sua voz me pareceu tão doce e
segura que me perguntei de onde é que poderia vir tanta doçura. Ela pressentiu
minha questão e sorriu, sinalizando o óbvio. De mim? Sei não...
Habituamo-nos a conversar. Sem TV,
rádio, livros, sem nada pra atrapalhar. Às vezes papel e caneta. Porque
solidão, vez em quando, solta umas pérolas imperdíveis que anoto, pra não
esquecer.
Certo dia, sutilmente, mas com a
transparência de sempre, pôs-se a argumentar em favor próprio, fazendo- me
lembrar de coisas que talvez explicassem minha inicial resistência a ela. Não
exatamente uma antipatia, mas uma incompreensão. Ou uma impensada adesão ao
senso comum, que prega por aí que é preciso estar com alguém para ser feliz,
andar em turma pra se divertir, ter um bando pra se sentir pertencendo a
algo... Mostrou-me, recordação por recordação, o quanto estivera ao meu lado,
fiel, quando eu imaginava, inocentemente, viver uma relação amorosa. Quando eu
frequentava a família, tentando encontrar nela alguma compreensão e, talvez,
até - vejam só! - cumplicidade.
Quando eu interagia direto com gente que eu pensava ter os mesmos ideais que
eu, mas cujas práticas diferiam tanto das minhas... E pouco a pouco Solidão foi
me ganhando. Carinhosa, realista, crítica, companheira... Comecei a gostar das
suas propostas. E comecei a sentir sua falta, em dias mais agitados, e desejar
sua presença. Passei a me planejar para recebê-la com carinho quando viesse. A
reservar momentos pra ela, bloqueando interferências externas. E, de repente,
percebi que solidão me cativara e que a iminência de tê-la comigo me punha em
um especial estado criativo que, à sua chegada, se aguçava.
Quanto mais íntimas ficávamos, mais
à vontade e cheia de iniciativa Solidão se mostrava. Começou a insinuar que
gostaria de acessar umas amigas, pra que nossos encontros fossem mais
produtivos. Um dia veio Memória, no outro Saudade... Então Solidão teve até a
ousadia de chamar Perturbação. Agora vira e mexe ela vem. E toda vez que vem, o
bicho pega. Não se aquieta, instiga, zomba, ironiza... fantasia... Esses
encontros estão virando verdadeiros saraus. Sei
que, ultimamente, Liberdade anda meio ressentida. Deve temer que com tantas
amigas eu a deixe de lado. Não entende, a pobre, que sem ela, esses ricos
encontros seriam quase impossíveis. Que foi ela que começou tudo isso, com sua
obsessiva monogamia. Sem Liberdade talvez eu não tivesse conhecido Solidão nem estreitado
laços com essa trupe toda... Provavelmente estaria enredada em teias mal
tecidas de amores complicados, de amizades possessivas, de frustrantes
pseudo-relacionamentos. E, vou dizer...
Na companhia delas eu me escuto, eu me repreendo, eu me entendo, eu me perdoo.
Sentada no meu sofá eu alço voo. E até esqueço da imensa falta que um bom
abraço me faz...
Ana
Lucia Sorrentino
*Este texto é um excerto de "Eu fico com a noite", publicado na Amazon.
Para saber mais visite: Ana Lucia Sorrentino na Amazon
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Um comentário:
Simplesmente genial! Parabéns! Bjks
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