Sábado. Como nada é garantia de
nada, uma estrada tranquila não foi garantia de uma viagem tranquila. Durante mais
de seis horas estados internos desfavoráveis se sobrepuseram a condições externas
favoráveis e me fizeram imaginar que eu poderia morrer liquidificada entre uma
enxaqueca feroz e uma cruel crise de enjoo. E me renderam um domingo submerso
em gatorade e solidão. Nada de que me arrependesse, uma vez que a intenção era
nobre: estar presente no casamento de alguém muito querido. Celebrar o amor.
Segunda. Missão cumprida. De tanto
que me cuidei fiquei zerada. Fui pra festa feliz da vida. Nunca assisti a
casamento tão lindo. O pé dentro da igreja já é garantia de choro sentido. O
coral, um escândalo. Eu queria mesmo saber o que é que faz mulheres chorarem
tanto em casamentos. Talvez seja a beleza da crença na ilusão, mesmo sabendo-a
ilusão. Não sei... Depois do beijo, Beatles colocando a igreja abaixo. Todo
mundo cantando “All we need is love” e em mim a convicção de que, se é possível
se duvidar de tudo, do poder do amor não duvido.
Festa! Muita comida, muita bebida, muita
gente bonita, muita emoção. Na pista, os jovens se entregavam à dança com
despudor total. Me perguntei que diabos fizera com a minha vida
compartilhando-a com um homem que nunca me tirara para dançar. Pra todo o resto
eu poderia arrumar alguma desculpa, esfarrapada ou bem vestida, mas pra isso
não. Como eu pudera não perceber o quanto podia ser lesivo ficar sem dançar por
toda uma eternidade de 24 anos? Fiquei mastigando essa pergunta, junto com um
pedacinho de bem-casado e com o cafezinho da saída, um pouco amargo.
Terça. A opção por voltar de avião só
encurtou o sofrimento, porque o céu carregado não ajudou em nada... Cheguei a
Sampa meio que desmilinguida, mas pronta pra outra.
Quarta. Eu só não sabia que essa
outra viria tão rapidamente, e em sentido tão oposto. Depois da aula, ao ligar
o celular, recebo uma mensagem de texto me avisando do velório de uma amiga
querida. Saí da faculdade e fui ao encontro dela, mas ela já não estava lá. Só
um caixão com um corpo sem vida.
Percebi então que morrer não é como
a quase-morte do enjoo que precede o vômito. Morrer é morrer. É sair de cena de
vez. Olhando minha amiga, que já não estava lá, não vi vida alguma ali. Nem um
fiapo. A não ser na dor dos que choravam à sua volta. Me vieram à mente as
palavras de Epicuro, em sua carta a Meneceu, e tive que concordar com ele. A
morte não é problema nosso, porque quando estamos ela não está e quando ela
está já não estamos. A morte é problema
dos que ficam, porque eles é que terão que reorganizar suas vidas e superar a
dor da saudade.
Olhei em volta e, vendo o cansaço
dos familiares, pensei na tirania da doença e no tanto de vida que essa triste
exibicionista consome de todos os que se veem obrigados a conviver com ela. A
morte, parece-me, pode ser uma grande amiga. Que imensa sorte é o imenso azar
da morte pros que ficam e retomam suas vidas...
Bateu-me então um enorme desarrependimento
por todas as loucuras que fiz, fora de época, lixando-me pras regras e sem
qualquer medo de vergonha ou vexame. Soubesse eu, mais jovem, o quanto perdemos
de tempo acreditando em bobagens, mais jovem teria me desprendido delas.
Quinta. Acordei e chorei. Estudei e
chorei. Fui pra prova com pepsamar na bolsa. Fiz o melhor que pude. Tive que
escrever sobre Leibniz, e seu Deus criador do melhor dos mundos possíveis. Uma
apelação mesmo... Pra mim, pura literatura. Aliás, se fosse literatura, poderia
ser bem bonito...
Sexta. Ainda toda meio desconjuntada
dou graças aos céus por já estar podendo comer melhor. Afinal, mais um
casamento, mais uma festa, mais uma celebração de amor. Me arrumo às pressas, sem me preocupar muito
em estar maravilhosa, porque há tempos já deixei de lado a ilusão de ser a mais
bonita da festa. Com simplicidade, faço boa figura. Vantagens que a idade traz.
O mais bonito desse casamento, sabe o
que foi? Que o noivo abriu mão de casar com separação parcial de bens, o que é
meio que uma regra hoje em dia. Nesse mundo tão selvagemente capitalista, tive
a honra de assistir a um casamento em que o noivo simplesmente optou por casar
com comunhão universal de bens, por estar casando com um amor de adolescência e
acreditar que, realmente, estão juntos nessa vida. O cafezinho da saída teve
até um gosto mais doce...
Sábado. Obrigações. Compras. Sol.
Música. Venho pela rua cantando “Encontro” junto com Gadú.
Olha só
Como a noite cresce em glória
E a distância traz
Nosso amanhecer
Deixa estar que o que for pra ser vigora
Eu sou tão feliz
Vamos dividir
Os sonhos
Que podem transformar o rumo da história
Vem logo
Que o tempo voa como eu
Quando penso em você...
Como a noite cresce em glória
E a distância traz
Nosso amanhecer
Deixa estar que o que for pra ser vigora
Eu sou tão feliz
Vamos dividir
Os sonhos
Que podem transformar o rumo da história
Vem logo
Que o tempo voa como eu
Quando penso em você...
Aumento o som, e venho sorrindo e
chorando, toda misturada. Pelo tanto que me sinto viva e pelo tanto que morro
sempre que não vivo o que desejo viver.
E me vem uma urgência, uma urgência infinda, uma sede enorme e um enorme
pesar pelo sempre tão presente desacontecer.
Queria que não me escapasse tanta
coisa por esses humanos dedos, tão finos e frágeis...
Analú
2 comentários:
Olá Ana Lucia, obrigado pelo envio de seu excelente post. Obrigado.
Um domingo maravilhoso e longe dos aviões!!!
Bjs do Zé Carlos
Uma verdadeira odisséia com direito a enxaqueca e que rendeu uma ótima narrativa.Bjs na alma.Estou realizando um sorteio de aniversário em meu blog Somos todos aprendizes.É só comentar o texto e concorrer a um livro a sua escolha no valor de até 100 reais.Numere seu comentário de acordo com sua preferência.Bjss na alma.
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