terça-feira, 6 de novembro de 2007

XII - Como Recolher Ossos? (Ou: Algumas Formas de Fazer Contato Com Sua Alma)

A princípio, só o fato de ler as histórias e pensar um pouco sobre elas já é recolher ossos. Naturalmente elas vão te reportar a situações que você viveu, às saídas que você achou para os seus problemas, a sentimentos que você nem ao menos compreendeu, a emoções que você sepultou. Lendo as histórias e pensando sobre elas você vai se “reconstruindo”, e tem a chance de relembrar do que te faz sentir-se viva. E de aprender a reagir de forma diferente em situações que te machucam, não se machucando mais ainda. Mais do que isso, tem a chance de identificar quais são essas situações, porque, muitas vezes, varamos nossos dias tão envolvidas em tarefas rotineiras obrigatórias, que “passamos por cima” de nossos próprios sentimentos. Seguimos, como máquinas, “à la zumbi”, como diz Clarissa, atendendo às necessidades de todos e negligenciando as nossas, e nem temos tempo de avaliar, ou de sentir profundamente o que estamos sentindo. Talvez seja por isso que, muitas vezes, repentinamente, uma palavra torta, um olhar enviesado, uma tola malcriadeza de filhos adolescentes tem um efeito bombástico, detonando em nós crises de choro que surpreendem a todos que estejam nos observando. “Afinal, não era motivo pra tanto...”
É claro que mesmo um observador desatento pode perceber, nesses momentos, que você está se rebelando por tudo o que tem passado, não apenas pelo que aconteceu naquele instante.
Lembro-me de uma situação que vivi em que ficou mais do que evidente que minha reação exagerada a uma bobagem momentânea na verdade foi uma explosão de sentimentos represados, que se aproveitou de um pequeno detonador para poder acontecer.
Meus dois filhos estavam numa idade difícil e eu vinha encontrando dificuldade para que me escutassem. Meu relacionamento com meu marido sempre foi complicado. Eu me abandonara, cuidando de tudo e de todos, e tinha pouquíssimos momentos de prazer. Não ficava comigo mesma nunca. Os meninos tinham mania de brincar com uma mini bola de futebol muito leve e macia em minha sala, que não é nada grande. Aquilo me irritava profundamente, mas eles eram surdos aos meus pedidos de que parassem. Certo dia, eu estava atravessando a sala, e, do corredor lateral, que dá acesso à cozinha, a pequena bola veio com toda velocidade e bateu bem no meio da minha testa. Claro que por ser inofensiva, não me machucou, mas me pareceu uma agressão tão grande, por ser a gota que faltava para que o copo transbordasse, que me pus a chorar como se estivesse gravemente ferida. Os meninos ficaram, a princípio, apavorados, mas quando perceberam que nada real havia acontecido, acabaram rindo de mim, sem compreender o exagero da minha reação. Mais tarde contaram ao pai o escândalo que eu havia feito por algo tão tolo!
Uma crise de choro detonada por qualquer motivo sempre traz junto as lembranças de nossas frustrações, de nossos desejos não realizados, de nossos sentimentos de auto-piedade, e de tudo aquilo que engavetamos para prosseguir em nosso dia-a-dia sem maiores abalos ou rupturas.
Durante minha infância e adolescência, enquanto morei na casa de meus pais, lembro-me que minha mãe sempre interpretava minhas crises de choro como um sinal de que “eu não estava normal”, e isso me magoava profundamente, porque eu sentia que estava apenas extravasando sentimentos que não pudera manifestar de outra forma, o que me ajudava a me conhecer. Mas isso sempre era motivo de críticas.
Depois de adulta, descobri que conseguir expressar os sentimentos é altamente saudável, funcionando, inclusive, como um preventivo contra a depressão. Uma tristeza vivida não se transforma em depressão. Cumpre seu ciclo, e se vai. E percebi com tanta clareza o grande serviço que essas crises de choro me prestavam, trazendo à tona sentimentos profundos, que aprendi até mesmo a manipulá-las, usando algum detonador que eu sabia que surtiria efeito. Muitas vezes, querendo me livrar de alguma angústia que a mim mesma não estava clara, fui até uma locadora de vídeos e procurei algum filme que sabia que mexeria com meus sentimentos. Assisti sozinha, à vontade. Era fatal. O filme retratava situações que me reportavam à minha própria vida, alguma cena mais emocionante me trazia lágrimas aos olhos e, quando percebia, já estava fazendo uma verdadeira catarse da minha angústia. Junto com o choro vinha tudo, e eu aproveitava a oportunidade para encarar minhas frustrações de frente e tentar descobrir formas de saná-las. Momentos em que choro são momentos em que posso dizer que converso com minha alma. Ou que recolho ossos, para depois tentar encontrar que música cantarei para reanimar meu esqueleto já montado.
Outra forma de recolher ossos é criar, dedicar-se ao que mais gosta, produzir arte, seja ela qual for. No meu caso, sei que escrever é a chave. Você tem que descobrir o seu próprio caminho. Dedicar-se a algo de todo coração, entregar-se à tarefa de corpo e alma, é um ato de introspecção que, com certeza, te colocará em contato com você mesma.
Mulheres sabem disso intuitivamente. Desde muito pequenas há atividades que despertam nossa curiosidade, nos atraem e nos encantam, sem que fiquemos racionalizando muito a esse respeito. Por um longo período, quando eu ainda era uma criança, um de meus irmãos montou uma fábrica de bolsas e cintos de couro no salão de nossa casa. Eu e minhas irmãs simplesmente enlouquecíamos olhando os materiais, catando sobras e inventando nossos próprios acessórios! A sensação de ter criado com nossas próprias mãos peças que depois até fariam sucesso entre nossas amigas era algo nem de longe comparável a comprar um acessório pronto, em qualquer loja! Muitas mulheres que conheço usam, intuitivamente, o artesanato como uma forma de terapia, mesmo que com isso não ganhem qualquer dinheiro. Estar totalmente absorvida numa atividade de que gostamos muito é uma das formas de “voltar pra casa”, reencontrar-se consigo mesma.
Há pouco tempo vi uma entrevista de Maria Rita, a filha de Elis Regina, no programa do Serginho Groissman, onde ela relatou, com muita simplicidade, que, desde que engravidou de seu filho, há três anos, faz e desfaz um pequeno pedaço de crochê, sem o objetivo de terminar o trabalho, apenas por fazer. Interessante que ao falar sobre isso ela parecia não saber expressar exatamente o porquê da coisa, e talvez ela mesma achasse “esquisita” tal dedicação a algo que nunca se transformaria em nada. Acredito que toda mulher saiba o que é isso. Quem aprendeu, desde cedo, a tricotar ou crochetar, sabe o quanto é prazeroso enquanto estamos totalmente envolvidas com nossas agulhas e linhas, vendo o movimento de nossas mãos fazer aquele pequeno pedaço de arte crescer! Tão prazeroso, que, muitas vezes, pouco importa se o resultado final será bom ou não! Ao assistir essa entrevista lembrei das inúmeras blusas de lã que comecei a tricotar no começo do inverno, para, com a chegada do verão, acabar dando aquele pedaço de blusa para alguém que quisesse terminá-la! E de um pedaço de tricô que fiquei tricotando e desmanchando enquanto ficava ao lado do meu pai, em seu último mês de vida, dentro de um hospital. E da enorme quantidade de caixinhas de madeira que comprei e decorei com o intuito de vender, sem nunca conseguir, o que acabava não me frustrando, porque, no fundo, sabia que estava preservando a saúde da minha psique, fazendo algo de que gostava. E tantas coisas mais...
Aquilo de que você gosta a ponto se envolver e esquecer-se de tudo o mais por algum tempo; aquilo que te faz se interiorizar, ficar totalmente absorvida e que você percebe que te “reabastece” para enfrentar novamente suas atividades rotineiras, merece sua total atenção.
Clarissa diz que “voltar pra casa” é fundamental para sua saúde física e mental. E que deve ser algo disciplinado, cuja freqüência será determinada pelo seu ritmo de vida. Você deve sentir quantas vezes por semana, ou por dia, deve parar para se reabastecer. E esse deve ser um momento respeitado por todos. Você precisa poder pegar suas coisas, ir para o seu canto, dizer “tchau, estou indo”, e as pessoas precisam saber o que isso significa. Que você quer estar consigo mesma e quer que a respeitem. Logo todos notarão que você volta de lá bem melhor, e ficarão felizes com isso.
No próximo post vou falar sobre “O Capote Expiatório”, um relato de Clarissa que me inspirou a sugerir a você uma outra forma de “remontar seu esqueleto”.

Beijão!

Analú

10 comentários:

Anônimo disse...

Muito legal este blog!! Excelente ideia!!
Que coincidencia... Estou viajando desde marco, e no ultimo mes fiquei com muitas saudades deste livro, e desejei muito te-lo aqui para ler... e aih recebo o seu recado no orkut comentando sobre o blog. Muito obrigada!!

Ana Lucia Sorrentino disse...

Obrigada a você, pela visita, Michelle! É super importante que mulheres como você, que já conhecem o livro, se manifestem, pra que isso sirva de estímulo para outras mulheres! Mas, quando vier, também conte suas histórias, elas sempre serão enriquecedoras pra todas nós!
Beijão, e volte logo!
Analú

Ana Lucia Sorrentino disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
MarcosVP disse...

Belo texto, Ana. Me vi em diversos momentos dele, inclusive nessa coisas meio "Penélope" do artesanato, da criação, ainda que aparentemente "inútil". Não consigo viver sem criar. Deste criança eu fazia muitos dos meus brinquedos preferidos, com papel, lápis, cola e etc. Hoje eu uso computador, mas minhas criações continuam sendo um bom momento de encontro comigo mesmo. Forte abraço.

Ana Lucia Sorrentino disse...

Marcos: Muito legal você ter atendido meu pedido! Foi o primeiro homem a ter coragem de deixar um comentário! Pelo que você fala em seus textos no Nossa Via, e pelo que falou aqui, já deve saber muito bem o que é "voltar pra casa", e o quanto isso nos faz bem. Tenho certeza de que isso te faz um homem mais feliz do que a maioria.
Obrigada, e espero que você tenha sido o primeiro de muitos, porque, pra dizer a verdade, acho que esses textos de Clarissa, que trabalho aqui, servem pra todo ser humano, não somente para mulheres, apesar do nome do livro.

Abração, e volte sempre!

MarcosVP disse...

Ana, eu sinceramente não sei se posso dizer que sou mais feliz que a maioria dos homens. Antes o contrário. Muita coisa que sinto e muita coisa que penso só serve para me tornar tão diverso de tudo o que está ao meu redor que é impossível não me sentir, certas horas, absolutamente isolado, solitário, um corpo estranho. É como aquela história do inferno de Italo Calvino. Ser parte dele é fácil, tranqüilo, até divertido. Ir contra é duro. Muito duro. O fato é que eu não sei ser de outra forma.

Abraço.

Anônimo disse...

Imagine uma usina hidrelétrica: com comportas, turbinas e uma represa. Quando chove muito, água demais é armazenada e as comportas devem ser abertas, sob risco de ter a represa arrebentada. Aquele excesso de água é liberado, a represa volta a ser segura e a usina funciona normalmente.
Transporte isso para um ser humano e tudo fica igual. Diversos são os acontecimentos durante o dia, que suscitam sentimentos igualmente diferentes. Quando não podemos externar alguma agressão, vamos represando esse excesso. Por horas, dias, meses. A chuva continua. Até que, por menor que seja a gota de água, a represa transborda. Os sintomas? Bem conhecidos: explosões de raiva, atitudes imprevisíveis e impensáveis. Elas tiram a pressão, mas com - algumas vezes - cicatrizes. É quando a represa se rompe e grande parte do trabalho é voltado para tampar a rachadura.
Uma liberada nas águas pela comporta é aquele choro, tanto deliberado quanto espontâneo, que evita males maiores: tanto para nós, quanto para os outros. E recuperar os ossos para, de novo, formar nosso esqueleto. E reencontrar nossa alma.

Elaine Mazzaro disse...

Ana,

Excelente texto!!
Pela primeira vez n sinto culpa por chorar, as vezes choro intencional....no fundo entendia que era um momento de catarse mesmo. Mas a censura....ahhh, é preciso nos librarmos dela e muitas vezes ela está dentro de nós.
Lendo o texto lembre de quando comecei a fazer patchwork, eu esperava ansiosa pela próxima aula, dps passei a inventar os meus próprios trabalhos, no começo fui barada pela professora...pois falava da técnica, etc, etc.
Eu n queria técnica...eu queria a alma daquilo que estava fazendo. Parei há 3 anos, mas estou pensando em recomeçar. Juntar os retalhos é mais ou menos como recolher ossos. Como n pensei nisso antes??
Grande Abraço!

Ana Lucia Sorrentino disse...

Elaine! Todos fazemos isso, não? Começamos a chorar por causa de uma cena da novela, e, de repente, estamos chorando por nós mesmas! rsrs... é bom isso...

Quanto ao patchwork: a Dri usa os mosaicos, outras mulheres "tricotam" sua vida, restauradoras as restauram... toda arte nos ajuda a entender a vida.

Fico muito feliz que vc esteja continuando sua leitura!

Beeeijos!!! :)

Camilla disse...

Ana, suas palavras sao maravilhosas e nao deve deixar de coloca-las em linhas nunca...eu amo Mulheres que Correm com os lobos, é meu livro de cabeceira, no meu blog tenho varios posts inspirados nele!
Um grande beijo
www.meustesourospreferidos.blogspot.com