Caro Germano1: li seu
post “Filosofia, Auschwitz, Educação e Modernidade”2. Longe da intenção de comentá-lo por inteiro,
pretendo aqui apenas explicitar as questões que mais me instigam sobre o
assunto.
Em
“Experiência e Pobreza” Walter Benjamin
faz uma análise do início do século XX e das consequências da extremada
valorização da razão, que culminou na Primeira
Guerra Mundial. Imagino que conheça o texto.
Ele se pergunta como a racionalidade produziu tanta irracionalidade e
observa que, após a guerra, as pessoas estavam devastadas. Se refere a isso
como "barbárie" e atribui a ela um valor positivo, no sentido em que,
uma vez esvaziada, a humanidade teria que se reerguer do zero. Pois bem. No
mesmo texto ele cita as várias “novidades” que surgem à época, como a ioga, o
espiritualismo, a quiromancia, a Christian Science, etc., e afirma serem elas “galvanizações”
desse vazio interno, uma vez que apenas o mascaram, mas não o curam.
Eu
creio que hoje, passado praticamente um século, estamos na mesma. Que de lá
para cá, e ainda com o agravante da Segunda Grande Guerra, a humanidade só se
galvaniza, mas a ferrugem interna acaba corroendo até mesmo essa galvanização,
que precisa se renovar sempre, pra nos proteger da exposição de nossa miséria
interna.
Depois
de Auschwitz, Adorno escreve “Educação Após Auschwitz” em um tom de perplexidade, mais colocando perguntas
e sugerindo investigações do que arriscando respostas. O que pode ter produzido
seres humanos capazes de promoverem e de se tornarem cúmplices de tal
evento?
Hoje,
olhando nossa realidade, intuímos que Auschwitz é sempre uma iminência. As
pessoas parecem estar cada vez mais vazias e nossa miséria interna tem se
exposto a céu aberto, à luz do dia, sem a menor vergonha. Vivemos uma terrível
crise de valores e a animosidade entre os humanos parece só crescer.
É
assunto filosófico, sim. Arrisco dizer que só a filosofia pode colocar as
questões cujas respostas ou tentativas de respostas gerem algo de positivo para
a educação. Ocorre que a própria academia não se move. Temos, no Brasil, um
estudo de filosofia conservador, que forma, dentro da filosofia, os mesmos
produtores/consumidores que qualquer outro curso forma. Objetos a serviço de um
sistema. Alunos repetidores de conteúdo,
que escrevem sobre o que X diz de Y, mas não se aventuram a olhar para o mundo,
falar dele diretamente, detectar problemas, propor soluções. Esse esquema é
altamente alimentado pelas instituições, pelos administradores, pelos
orientadores, pelos professores e – pasme! – pelos alunos. No semestre passado,
apresentando um seminário sobre o livro de Gonzalo Armijos Palácios, De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego, Estar
Morto ou Ser Gênio, meu grupo levantou essas questões. Surpreendi-me com as
não-reações, com as reações de negação dessa realidade intensamente vivida por
todos nós, e com a estranha afirmação de um aluno de que não poderíamos
estar fazendo tal crítica DENTRO da universidade! Oras... Onde a faríamos?
Anterior
à crise no ensino é a crise na educação familiar. Os jovens de hoje são
filhos de uma geração que rompeu com os valores mais caros à dignidade humana e
abraçou o capital. Que substituiu atenção, carinho, presença, orientação, por
conforto material. Que, ressentida com a educação rigorosa que recebera e
temendo não ter o amor de seus filhos, lhes deu um verdadeiro presente de
grego: excesso de liberdade, não imposição de limites, falta de noção de
hierarquia.
Se a
crise começa na família, como a escola pode lidar com isso? Se os alunos já
chegam à escola esperando algo estereotipado e se resistem a inovações que não
parecem servir aos seus propósitos; se eles nem ao menos questionam o porquê de
terem abraçado tais propósitos; se nem
sabem de onde brota o que pensam; se têm a submissão como prática habitual,
apesar de toda aparente rebeldia, como se desconstrói isso?
Lembro-me
de, certa vez, ter lido em um texto seu, provavelmente não com estas exatas
palavras, que para aprender precisávamos antes desaprender tudo o que nos
haviam ensinado. Não tenho dúvidas sobre isso. Porém, somos feitos do que nos
ensinaram. Somos produto do meio. Como superar isso? Como trazer à tona aquilo
que realmente somos sob essa aparência que se moldou para se encaixar em uma
engrenagem? E como sobreviver fora da engrenagem?
Coloquei
perguntas. Que elas sirvam como provocações para mais reflexões. E deixo aqui
uma frase de Cioran, a que me reportei nesse último instante:
“O
caos? é rejeitar tudo o que se aprendeu,
é ser você mesmo...”
(Breviário
de Decomposição)
1 – Germano Viana Xavier
é jornalista, professor e, entre muitas outras coisas, autor do blog “O Equador
das Coisas”.
Ana Lucia Sorrentino
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