Quem tem me lido, já percebeu que o Barba Azul vai ser um assunto recorrente. Isso tem um motivo, não é porque sou chata. O Barba Azul é chato.
E, como precisamos lidar com ele o tempo todo, há que se esmiuçar essa figura, que vive nos passando as mais desleais rasteiras e boicotando o nosso crescimento.
Como somos treinados, desde que nascemos, a fazer vistas grossas quando percebemos que é ele agindo, dentro ou fora de nós, precisamos nos treinar para começar a enxergá-lo. E falar sobre ele é uma forma de compreendê-lo, saber como age e, quem sabe, escapar de suas investidas.
A história é rica e cheia de detalhes e estratégias, que, aos poucos, podemos entender e aplicar em nossas vidas.
Quando posto ou falo sobre ele, sempre há comentários que me levam a pensar a respeito do enorme poder desse monstro, agigantado pelos mais diversos motivos, entre eles essa insistência da sociedade em nos querer cegos e manipuláveis.
Um comentário que escuto desde a primeira vez em que tive contato com o Mulheres que Correm com os Lobos, e que se repete, de tempos em tempos, tem a ver com a bendita da chavinha que abre a porta do quarto onde o Barba Azul guarda os cadáveres das mulheres que mata. Hoje quero falar sobre isso.
Logo que conheci Mulheres que Correm com os Lobos, comecei a recomendá-lo para as mulheres com quem tinha contato. Uma amiga minha, que passava por uma separação complicada, leu a história do Barba Azul e deu risada de si mesma, porque se viu naquela situação em que a filha caçula, seduzida pelas gentilezas do monstro, pensa: Como sou boba! Por que me repugna tanto aquela barbinha azul? E mesmo se enxergando na inocência da personagem, em seguida fez uma reflexão que me fez pensar no quanto era, realmente, inocente, embora tivesse consciência do muito que já sofrera por conta de sua extrema credulidade.
Pensando sobre o fato da esposa do Barba Azul ter desobedecido sua ordem de não usar a chavinha que abria o quarto misterioso, refletiu que não devemos desejar saber tudo sobre as pessoas, porque todos temos segredos. E esse é um tipo de raciocínio que sempre surge quando colocamos essa situação em discussão. A invasão de privacidade.
Oraoraoraora...
É ÓBVIO que sabemos que todos têm seus segredos, e que devemos respeitá-los.
O que me surpreende e acaba fortalecendo essa tese de que somos treinados para não enxergar é o fato das pessoas não perceberem que há delitos e delitos. Que há pequenos segredos que devemos respeitar, sim, porque fazem parte da nossa individualidade e privacidade, mas que há grandes segredos, que colocam coisas muito mais sérias em risco.
A história do Barba Azul, pra mim, não fala sobre invasão de privacidade. Fala sobre auto-preservação.
Uma coisa que me intriga profundamente é não raro perceber nos leitores um julgamento mais severo em relação ao comportamento da mocinha, de desobedecer o marido para salvar sua própria vida, do que em relação ao comportamento do Barba Azul, de matar e decapitar suas esposas!
O que faz com que as pessoas sejam indulgentes em relação ao crime hediondo e apontem um dedo acusador contra aquele que está tentando garantir sua sobrevivência???
Não estou falando aqui de pequenas traições sexuais, que, afinal, fazem parte da natureza humana. Não estou falando de mentirinhas nem de invejas brancas, que praticamos e sentimos o tempo todo. Não estou falando de omissões que, mais do que esconder, tentam impor um limite na interferência do outro na nossa vida, o que é saudável...
Falo de relacionamentos que cerceiam nossa liberdade, que nos impedem de crescer, que minam nossas energias, que limitam nosso território de ação e nossa fertilidade criativa. Que, numa última instância, nos matam.
A heroína da história recebe instruções do marido e as acata. Quando ele diz que ela tem toda a liberdade para fazer o que quiser, mas impõe uma restrição, ela é incapaz de perceber que está vivendo menos, e não mais.
O Barba Azul não matava passarinhos... aquele quarto proibido estava abarrotado de cadáveres de mulheres!!! No entanto, as pessoas acreditam que a mocinha deveria respeitar a privacidade dele. Talvez acreditem que, se ela não tivesse descoberto o segredo do marido, ele seria o melhor marido do mundo até o fim de seus dias... :(
Essa inversão de valores inevitavelmente me traz algumas situações à mente.
Quantas vezes você já viu alguém que, para provar estar sendo vítima de chantagem, grava a cena do chantagista em plena ação, mas se vê privado do direito de usá-la, porque é contra a lei? Quantas vezes aquele que usa uma escuta para flagrar um corrupto responde por seu crime muito mais penosamente do que o próprio corrupto?
Recentemente a mãe de um bebê de meses desconfiou que seu marido maltratava o próprio filho quando da sua ausência. Gravou cenas do pai judiando terrivelmente da criança e não pôde usá-las, porque é proibido por lei. Se recorresse a isso para tentar fazer justiça, seria ela a responder pelo crime de invasão de privacidade. Acabou tendo que usar o subterfúgio de denunciar o marido por porte ilegal de armas. Conseguiu que o prendessem, mas por caminhos tortuosos.
Foram vários os relatos que escutei, ao longo da vida, de mulheres que se diziam com a auto-estima no chão por conta de maridos desleais, mas que, ao me relatarem suas histórias, colocavam-se como as vilãs, por tentarem descobrir com quem realmente estavam se relacionando. A culpa as corroia.
E outros vários os de mulheres que desconfiavam de falhas graves de caráter em seus companheiros, mas que, por terem interesses outros que não o do amor, assumiam deliberadamente a atitude de continuar na ignorância. Claro, até se tornarem vítimas dela.
Quantos de nós fingem não perceber que trabalham para criminosos, até que num belo dia acabam respondendo por algum processo pesado por terem cumprido alguma ordem sem questionar?
É importante perceber que, em todas essas situações, há o Barba Azul na vida real – o chantagista, o marido, o pai, o patrão, mas há o Barba Azul na vida subjetiva – esse lado sombrio de nossa psique que nos aconselha a não agir, não investigar, não criar, não enfrentar, não arriscar, não crescer. Aquela vozinha miúda que nos diz para fechar os olhos e não enxergar. Que nos induz a guardar nossos pincéis porque não temos talento. A engavetar nossos textos, porque estão aquém do que os leitores esperam. Que insiste para que nos escondamos num mundinho falsamente seguro e limitado, porque o mundo lá fora é perigoso.
A educação que recebemos, a cultura em que vivemos, um contexto às vezes pouco favorável aliados a um predador interno forte o bastante para nos paralisar cria essa cegueira fatal.
Vamos no embalo, enquanto isso nos serve, até que, abruptamente, tomamos um grande susto. E vemos nossa dignidade literalmente arrasada.
Então, se o próprio assassino nos coloca uma chavinha nas mãos e nos ordena que não a usemos, para que não descubramos aquilo de que já desconfiamos, o que fazemos?
Ficamos olhando abestalhados para a bendita da chavinha e obedecemos?
É uma opção.
Bem... depois que tivermos nossas cabeças decapitadas não vamos mesmo poder ficar resmungando...
Analú
7 comentários:
Ana
Excelente abordagem sobre o comportamento humano!
A síntese do que você expos se chama "Coragem"!!
Vivemos uma vida toda, em que a coragem passa a ser fator fundamental para conseguirmos ser felizes!
A chave então é "ter coragem"!
E quem a tem?
Vamos nos acomodando à mediocridade dos interesses menores, vamos nos tornando anestesiados pelas conveniências sociais, e adianos "sine die" o grande grito de libertação, entalado em nossa garganta!
E para não morrer de tédio e triteza, passamos a vida sonhando...
Quando acordamos, o tempo passou, nada aconteceu, por causa de nossa covardia!!!
O lado negativo, sabotador, quando mantido na escuridão tende a se agigantar. Para que perca o efeito tem que ser trazido para a luz, ou a luz levada até ele.
Tudo que é positivo, engrandecedor, quando mantido na escuridão, tende a murchar. Precisa ser mantido na luz ou trazido para ela, traduzida como consciência (estar consciente de...).
Eu li. Entendi. E como "Advogado do Barba Azul", peço vistas ao processo... he he he he
No momento, estou sem as devidas condições de responder a promotoria....
Voltarei com a resposta completa.
Adão, não imagina como fico feliz em ver que está acompanhando desde o começo. Estive no seu blog e li seu post, na hora não havia tempo, acabei não comentando, mas quando escrevi esse aqui pensei em você, e nas coisas que comentou. Preciso muito do contraponto, porque é através dos comentários, concordantes ou discordantes, que a gente pode se aprofundar no assunto. Te agradeço demais por acompanhar! :)
Beeeijos!!! :)
Luiz, obrigada pela presença! :)
As pessoas em geral mal se dão ao trabalho de pensar a respeito do que lhes serve e do que não lhes serve. E, infelizmente, quando sabem o que lhes serve, muitas vezes não têm coragem de assumir isso.
Claro que sempre pagamos um preço quando temos nossas próprias crenças, e qdo nossa postura destoa um pouco do convencional.
Mas vale muito a pena.
Quando nos assumimos, nos "bancamos", quase sempre os outros acabam se curvando à nossa autenticidade e respeitando nosso jeito de ser. Ter coragem é muito compensador.
Essa castração interna e externa é algo a se trabalhar a vida toda. E é por isso que faço tanta questão de sempre postar sobre o Barba Azul, embora corra o risco de parecer chata... rsrs...
Porque é preciso TREINO, muito treino, pra detectar esses auto-boicotes e abortá-los!
Beeeijos!!! :)
Carlos, o capítulo de Mulheres que correm com os lobos que fala sobre o Barba Azul começa com esse trecho, que acho tão fantástico, e que tem tanto a ver com o que vc disse, que vou transcrever aqui:
" Num único ser humano existem muitos outros seres, todos com seus próprios valores, motivos e projetos. Algumas tecnologias psicológicas sugerem que prendamos esses seres, que os numeremos, que os classifiquemos, que os forcemos a aceitar o comando, até que nos acompanhem como escravos vencidos. Agir assim equivale no entanto a impedir a dança das luzes selváticas nos olhos de uma mulher; a proibir os relâmpagos e reprimir toda emissão de centelhas. Em vez de deturpar sua beleza natural, nossa tarefa consiste em criar para todos esses seres uma paisagem selvagem na qual os artistas entre eles possam criar, os amantes amar, os curandeiros curar.
Mas o que devemos fazer com esses seres interiores que são completamente loucos e com aqueles que destroem sem pensar? Mesmo a esses deve ser atribuído um lugar, muito embora seja um lugar que os possa conter. Uma entidade em especial, o fugitivo mais traiçoeiro e mais poderoso na psique, exige nossa conscientização e contenção imediatas - e esse é o predador natural."
Eu sempre fico encantada com a constatação de que somos tudo, nem só bonzinhos, nem maus, mas muito mais do que isso. E essas colocações que Clarissa faz me levam a entender que o melhor que podemos fazer por nós mesmos é nos conhecermos, e nos aceitarmos, apenas administrando um pouco essa diversidade que há dentro de nós, mas com uma visão realista do que somos. Nem santos, nem diabos. A vida fica tão mais leve qdo aceitamos isso...
nos dias atuais passo por situação semelhante, adorei o tema eis que me volto em torno de mim para buscar-me a todo momento e provar que entre morrer e viver escolhi viver.
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