segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Romance - Traições - parte XVIII

Caio apenas cochilava, quando se foram, e Raul achou que o menino poderia andar. Natália deixava o garoto se recostar nela, quase dormindo em pé. Raul abriu a porta do carro e ergueu o encosto. Natália ajudou Caio a se ajeitar no banco traseiro, enquanto Raul chamava o porteiro. O menino queria dormir a todo custo, e não ajudava em nada. Natália ajeitou seus pés, depois sua cabeça, e levou o encosto do banco de volta ao lugar. Então deu de cara com um verdadeiro emaranhado de cabelos loiros. A porta do carro estava aberta e a luz interna, ainda acesa, lhe permitiu ver com total clareza que eram cabelos loiros e longos. Antes de Raul voltar ao carro, conseguiu, atrapalhadamente, pegar os fios e, embolando-os, colocá-los no bolso da calça. Não sabia exatamente o que estava fazendo, nem pra quê. Numa fração de segundo considerou várias possibilidades. Sentiu-se mal por não conseguir ser mais direta e simplesmente perguntar a Raul de quem eram aqueles cabelos. Mas não conseguia raciocinar direito. Não conseguia falar. Não conseguia nem ao menos olhar pra ele, que acabava de entrar no carro. Não sentia nada. Queria chegar em casa e poder ver com clareza aqueles fios. Queria estar certa do que estava vendo. Talvez, então, se sentisse segura para perguntar qualquer coisa para Raul. Mas não queria ser ridícula, demonstrando qualquer desconfiança. Ficou calada. Quase não respirava. Raul também estava quieto. Sabia que a aborrecera, fazendo pouco caso do seu trabalho na frente dos outros. E não estava querendo brigar. Não se trocaram uma só palavra até chegarem em casa. Natália pediu a Raul que carregasse o garoto. Já adormecera. Raul não quis desagradá-la mais uma vez. Entraram, e ele colocou o garoto sobre a cama. Natália teve ímpetos de correr ao banheiro, para verificar o que tinha no bolso, mas se controlou. Não queria demonstrar que havia qualquer coisa errada. Tirou as roupas de Caio, vestiu-lhe um pijama, cobriu-o e deu-lhe um beijo no rosto. Ficou quieta, olhando para o menino. Não queria sair dali. Não queria verificar nada. Arrependera-se por ter guardado os fios. Queria ficar ali, quieta, ao lado do filho.

- Ei! - Raul a despertou - Não vem pra cama?

- Já vou.

Ela se levantou morosamente e se fechou no banheiro. Passou a mão pelo rosto, fechando os olhos. Respirou fundo, tentando pensar melhor. Ficou quieta por alguns instantes, sentindo uma mórbida expectativa. Enfiou os dedos no bolso apertado da calça jeans e procurou os fios. Achou-os com facilidade. Puxou-os, sentindo um certo nojo. Se encostou na pia, aproveitando a luz sobre o espelho, que iluminava melhor. Então puxou um fio. E o fio foi se desenrolando, ficando cada vez mais longo e parecia cada vez mais loiro. Brilhava, muito claro. Sentiu aflição. Puxou um pedaço de papel higiênico, embrulhou muito bem os fios e jogou o embrulho no lixo. Abriu a torneira e começou a lavar as mãos. Lavou, lavou, lavou até se cansar. Então arrancou as roupas e se enfiou novamente no banho. Não queria sair do banheiro. Não queria perguntar nada a Raul, correndo o risco de ouvir qualquer mentira. Desejou que ele adormecesse, pra que pudesse pensar com mais calma. Estava assustada com a própria reação. Jamais duvidara de Raul. Infidelidade, traição, eram palavras que não existiam em seu vocabulário. Sempre fora tão segura de si... Saiu do chuveiro, deu de cara com a própria imagem, no espelho, e se perguntou: - Por quê? Então sentou e sentiu uma agonia enorme. Por quê? - Insistia, pra si mesma. Era uma mulher comum demais... Por anos seguidos priorizara o bem-estar do marido, a educação do filho... Estivera tão preocupada com as dificuldades financeiras, com os problemas caseiros, que esquecera por completo de si mesma... Aprendera, cada vez mais, a ser uma boa dona-de-casa... Mas quem dava valor pra isso?

- Não. - Tentava se manter fria. -Alguns fios de cabelo loiro no carro de Raul não eram prova concreta de nada. Seria mais normal lhe perguntar quem entrara no carro, se dera carona a alguém... Mas Raul jamais dera carona a ninguém. E sempre lhe alertava para que também não desse... Então percebeu que estavam distantes demais. Porque se sentia completamente sem coragem para expressar qualquer sentimento. Teve um medo horrível de que ele lhe dissesse qualquer tolice, ou de que disfarçasse... Ficou um tempo imaginando de que outras formas aqueles cabelos podiam ter chegado lá. Estava sendo idiota. Não havia outras formas. Com certeza uma loura estivera sentada ao lado dele. E se tivesse emprestado o carro a algum amigo? Não. Isso era totalmente improvável. Jamais emprestara o carro a ninguém...

Estava fraca, vulnerável demais. Devia sair dali e sondar Raul. Perguntar-lhe o que fizera durante o dia, onde estivera... Devia dar chance a ele de lhe contar se estivera com alguém, em que circunstância...

Quando deitou ao lado dele, ele já dormia. Ficou olhando seu rosto imóvel. Tinha uma expressão totalmente inocente. Sentiu um certo pavor, pensando na possibilidade de estar enganada. Tinha tanta confiança nele que jamais pensara em nada parecido com aquilo. Ele era seu marido, seu companheiro, o pai de seu filho... Era o homem com quem compartilhava tudo... Era o homem que sabia de seus sentimentos mais íntimos... Se estavam distantes, nos últimos tempos, era devido àquela situação miserável... Era a falta de dinheiro, as dificuldades, o desemprego... Tinham tantos problemas práticos que há muito não falavam dos próprios sentimentos. Ela deixara de questionar o amor dele, deixara de ter dúvidas tolas em relação às coisas do coração... Tentaram unir suas forças pra superar a crise, pra aguentarem viver com tantas dificuldades... Mas ela se sentia tão carente e precisava tanto de outras coisas... Sentia tanta falta da paixão... Sentia tanta falta de namorar, de se sentir amada... Mas o culpava por isso tudo. Será que ele também se sentia assim? Mas, então, por que não a procurava mais, por que não se abria? Não... Não era possível. Seria ingratidão demais, se ele a estivesse traindo. Ou se estivesse pensando em fazer isso... Estavam com problemas há tanto tempo e ela jamais deixara de estar ao lado dele... Mas então percebeu que a recíproca não era verdadeira. Não sentia que ele estivesse sempre ao seu lado... Agora estava ali, dormindo como um anjo... Não sabia o que era uma insônia. Parecia estar sempre cansado, talvez saciado... Pensou em quantas vezes perdia o sono por desejá-lo. E ele dormia. Parecia não ter desejo algum. Sentiu uma vertigem. Fechou os olhos, colocou as mãos sobre o rosto. Estava enjoada. Tinha um peso no estômago. Seu mundo podia estar ruindo sem que ela estivesse percebendo. Não teria mais paz. Sabia que estaria sempre procurando pistas, evidências... Se transformaria nessas mulheres neuróticas que viviam à cata de perfumes, cabelos, marcas de batom... Não! - ordenou mentalmente a si mesma. Não podia cair nessa. Tinha que ser clara com ele. Tinha que lhe perguntar à queima-roupa. Mas... E se não fosse nada disso? Ia ofendê-lo. Poderia criar um péssimo clima entre eles. Estaria demonstrando uma fraqueza que não devia existir. Ele não a levaria a sério. A chamaria de tola. Diria, mais uma vez, que enquanto se preocupava com um emprego e com coisas vitais, lá estava ela com futilidades. Ele considerava "futilidades" seus desejos, suas angústias, suas dúvidas.

Teve dó de si mesma. De seu corpo prostrado, impotente. De sua covardia. De sua ansiedade. De sua fraqueza. Sentia-se fraca, fraca, minada. Ao seu lado estava o homem a quem dedicava todos os seus pensamentos, todas as suas ações, todo o seu tempo. Jamais estivera tão claro em sua mente o quanto se doava, o quanto vivia em função dos outros. Jamais estivera tão claro que tudo, absolutamente tudo o que fazia, era esperando alguma reação dele. Mas também jamais estivera tão claro que ele era um homem. Antes de ser seu marido, antes de ser o pai de Caio, era um homem. E talvez não fosse tão especial como ela sempre desejara que fosse... Talvez fosse um homem comum... Estava na rua, no mundo, se expunha muito mais do que ela... Era possível se apaixonar por alguém. Por que não? Algumas cenas de sua vida lhe passavam pela memória como uma retrospectiva. Como um resumo. Cenas que não compreendera, atitudes que não conseguira justificar... Suas ausências, seus atrasos, seu desinteresse. A falta de paciência com o filho. O nervosismo. A falta de diálogo.

Lembrou-se da semana anterior, quando haviam transado. Fora tudo tão rápido, tão desesperado... E estava sendo sempre assim. Sempre julgava que o desespero se devia à abstinência, porque quase não ficavam juntos. Agora via a coisa por outra ótica. Talvez, pra ele, aquilo fosse uma obrigação que tinha que cumprir de vez em quando. Talvez aquilo que considerava desespero não fosse desespero, mas desafeto...

Quis morrer. A idéia de que ele pudesse fazer amor com ela por pura obrigação, de que ele pudesse nem gostar muito daquilo, lhe doeu como um soco no peito. Se sentiu sufocar. Sentou-se, tentou respirar melhor. Olhou novamente pra ele. Não se mexera. Estava ali, quieto, sem poder imaginar tudo o que a apavorava naquele momento. Confiava nele como se confia numa mãe, num irmão. Será que teria que se considerar uma idiota por ter sido tão crente? Pensou em acordá-lo. Mas ele não conseguiria. Tinha o sono muito pesado. Não acordaria direito, não a levaria a sério... Foi até a cozinha, tomou um copo de água com açúcar. Talvez a ajudasse a dormir. Só precisava dormir bem para ficar com as idéias mais claras. Estava cansada demais. Era como se estivesse vendo tudo através de uma lente de aumento. As coisas estavam se agigantando, e a dominavam... Voltou pra cama, deitou, sem se deixar encostar nele, e procurou dormir. Pediu a Deus que lhe permitisse acordar melhor, no dia seguinte. Fechou os olhos e deixou aquela tristeza toda invadi-la. Dormiu em minutos, enrolada como um caracol.

(Trecho do romance Traições, de Ana Lucia Sorrentino, à venda através do e-mail analugare@yahoo.com.br)

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