
O Estado de
São Paulo passa por gravíssima crise na educação. Crise que não vem de agora,
mas que agora atingiu seu ápice, com a resolução do governo de
"reorganizar" por decreto o ensino, sem prévia consulta aos diretamente
interessados. De um dia para o outro
os alunos da rede pública simplesmente receberam a notícia de que haveria uma
reorganização que obrigaria parte deles a se deslocar para lugares mais
distantes, mudando e dificultando toda sua rotina, alterando suas relações e
desconsiderando completamente o significado afetivo que uma escola tem para
alunos que, muitas vezes, a frequentam há anos. Com o passar dos dias, começou
a ficar claro que não apenas alunos seriam remanejados de forma a serem separados
por ciclos, mas também que muitas dessas escolas passariam a ter outra função,
abrigando escolas técnicas ou creches. Portanto, haveria uma diminuição efetiva
no número de escolas para atender ao mesmo número de alunos, o que implicaria,
necessariamente, em superlotação de salas de aula, já superlotadas na rede
estadual.
Depois de um
longo e tenebroso período de protestos e ocupações de escolas, em que todos os
dias ficava exposta a truculência da polícia militar contra estudantes que
estavam apenas exercendo seu direito de lutar em prol de algo em que
acreditavam, finalmente o governador Alckmin anunciou a revogação da "reorganização".
A pressão popular falou mais alto e a promessa é de que tudo seguirá como
estava. Mas não. Nada seguirá como estava, e que assim seja!
Escrevo
agora não para olhar para trás, mas para pensar sobre o que virá daqui para
frente. Não vou, assim, me aprofundar em tudo o que poderia ser questionado na
atuação do governo de São Paulo desde o anúncio da "reorganização". Poderíamos
questionar o motivo do não investimento na construção de escolas técnicas e creches.
Poderíamos perguntar ao governador por que não pensar em aproveitar a diminuição
do número de alunos da rede pública - que certamente não foi apenas fruto da diminuição
da natalidade, mas também do sucateamento do ensino estadual nos últimos anos -,
para melhorar a qualidade de ensino, uma vez que classes com menos alunos podem
promover um ensino muito superior ao que se efetiva em classes superlotadas. Poderíamos
refletir sobre a eficácia da segregação na resolução de conflitos entre
estudantes de idades diferentes. Afinal, o que eles aprendem se, quando brigam,
simplesmente são separados uns dos outros? Poderíamos questionar se é certo
permitir que a polícia militar aja como nos piores tempos da ditadura batendo,
humilhando, algemando, e até prendendo estudantes que só querem uma boa
qualidade de ensino. Por fim, poderíamos perguntar o quanto é válido arrumar
uma justificativa fraca e mentirosa para agir em benefício dos próprios
interesses.
Mas,
deixemos tudo isso de lado, para pensar um pouco justamente na fragilidade
dessa justificativa e nas razões que permitiram que ela se sustentasse por
algum tempo sem ser rigorosamente combatida de pronto.
Ao primeiro
anúncio da "reorganização", não me convenci. Quem estuda educação
sabe que a aprendizagem se dá mais efetivamente na mistura. Mistura de raças,
de idades, de condição social e intelectual. Alguns dias depois do anúncio, e
já depois de muito barulho por parte dos estudantes, começaram a surgir
manifestações a respeito disso. Entre elas, uma significativa análise da
Universidade Federal do ABC, publicada no Estadão,
que considera "péssima" a "qualidade técnica do estudo que está
por trás de uma política desse tamanho, que desloca 311 mil alunos." O
estudo, segundo a análise da UFABC, carece de elementos científicos para
fundamentar a tese de que escolas estaduais de um só ciclo implicam em melhor
desempenho escolar. Embora tal estudo fosse necessário para refutar com
propriedade os argumentos do governo estadual, me surpreende justamente essa
necessidade, porque todo bom educador deveria saber que a tese do ciclo único é
vazia e, antes que o estudo fosse publicado, educadores de todos os cantos de
São Paulo e até do Brasil já deveriam ter se manifestado, pelo simples
conhecimento de experiências de comprovado sucesso que vão em sentido contrário.
Ocorre que
nem sempre - ou quase nunca - as coisas são como imaginamos que deveriam ser. E
percebi, através de algumas trocas de ideias, que, talvez, muitos educadores
não tenham conhecimento dessas experiências. Falando sobre a minha descrença na
"reorganização" que o governo propunha, citei, em um comentário que
fiz em um site de jornalismo, a Escola da Ponte, experiência de sucesso do
grande educador José Pacheco, implantada já na década de setenta em Portugal, e
o Projeto Âncora, seu similar no Brasil. Em ambas as instituições as paredes
das salas de aula vieram abaixo e estudantes de todas as idades interagem em um
grande pátio, reunindo-se de acordo com interesses comuns. Alunos mais velhos
preparam material de estudo para os mais jovens. A aprendizagem se dá através
da execução de projetos propostos pelos próprios alunos e que, portanto, já têm
ao nascer, natural interesse da parte deles. Na Escola da Ponte, em uma lousa, alunos
que dominam determinada área se colocam à disposição para ensinar os que têm
dificuldade nessa mesma área e entre si os alunos aprendem e ensinam,
subvertendo o conservador sistema do professor protagonista. Em algum outro
canto há um aviso que diz que "toda criança tem o direito de não ler o
livro de que não gosta". José Pacheco nos conta que crianças chegam a ser
alfabetizadas em três meses na Escola da Ponte. E ele veio para o Brasil para
"fazer escola". Há um lindo texto de Rubem Alves sobre a Escola da
Ponte, A escola com que sempre sonhei sem
imaginar que pudesse existir,
de leitura imprescindível a qualquer educador.
Para minha
surpresa e desgosto, uma "educadora" refutou meu comentário, afirmando
que "já estamos cansados de experiências". Outra me perguntou se eu
queria um sanduíche de mortadela, talvez querendo partidarizar o debate... Mas
já não basta um governo que quer fechar escolas, ainda temos que nos deparar
com educadores atrasados? Como assim "estamos cansados de
experiências", se a educação se faz de experiência? A educação precisa de mente
aberta, inovação e mudança constante, porque o mundo muda constantemente.
Durante a faculdade eu me perguntava o tempo todo o porquê de os professores nos
ensinarem que é preciso inovar, sem inovar. Eles lecionavam da mesmíssima forma
que os professores deles e os professores dos professores deles! Pregavam a
mudança sem mudar, em verdadeira contradição performática. Imagine um professor
escrevendo na lousa que um professor não deve escrever na lousa, porque isso é
antiquado. Era mais ou menos isso o que acontecia quase o tempo todo nas aulas
do curso de licenciatura. Alunos fatigados do dia de trabalho brigavam contra o
sono assistindo longas aulas expositivas em que eles - que em breve teriam que
enfrentar seus próprios alunos - quase não tinham chance de se manifestar e
menos ainda de treinar. A questão da dificuldade para nos aventurarmos à
mudança é recorrente em mim. Nessas aulas em que eu quase dormia, ficava me
perguntando como fazer diferente, porque sentia que isso havia se esgotado de
tal forma que não havia mais como protelar a urgente mudança.
Em Sobre Educação e Juventude Zygmunt Bauman
compara professores a lançadores de mísseis. O que mudou da educação da era
sólido-moderna - a fase inicial da modernidade - para hoje, que estamos em
tempos líquidos, é, segundo Bauman, o fato de que os alvos - os alunos - não
são mais fixos e, portanto, a educação não pode se dar através do lançamento de
mísseis balísticos, próprios para atingir alvos fixos! Os mísseis, hoje,
precisam ser inteligentes. Ter uma "racionalidade instrumental" que
lhes permita "aprender no percurso". E que, além de aprender
depressa, tenham a "capacidade de esquecer instantaneamente o que foi
aprendido antes". (Bauman, 2013, p. 21)
O que Bauman está dizendo? Que
educadores têm que estar atentos e abertos ao novo o tempo todo. Preparados
para receber as mensagens que vêm dos alunos - seus alvos -, compreendê-las e
reformular as estratégias e até mesmo os objetivos de acordo com o que os
próprios alunos sinalizam. Nas palavras dele: "[...] a garantia do sucesso
é não deixar passar o momento em que o conhecimento adquirido não se mostrar
mais útil e for preciso jogá-lo fora, esquecê-lo e substituí-lo." (Bauman,
2013, p. 21)
A reorganização por decreto de Alckmin
representa exatamente um míssil balístico, característico da fase sólida da
modernidade, pois nasceu pronta, mirou em alvos em constante movimento
acreditando que ficariam parados e foi incapaz de se repensar e alterar a rota.
O resultado foi o que vimos. O míssil errou o alvo e sofreu grave desgaste.
O que será daqui pra frente?
O fato de que os alunos poderão
retornar às suas escolas como se nada houvesse acontecido não significa que
tudo está igual. O espaço físico estará lá, como sempre, mas os estudantes jamais serão os mesmos. Assumiram
o protagonismo da própria educação e não mais se submeterão a
"ordens" vindas de cima, sem sua devida participação. Aprenderam a
fazer isso com essa crise e perceberam a força que têm. A surpreendente reação
dessa geração a essa tentativa de imposição de uma nova estrutura que não lhes
agrada é resultado de uma educação que ultrapassa em muito as paredes de seus
lares e de suas escolas. Os jovens não são mais educados apenas por seus pais, familiares
e professores. O mundo lhes educa o tempo todo. São jovens que, através da
internet, têm contato com tudo o que acontece em todos os cantos do planeta.
Pesquisam sobre o que quer que lhes interesse e se mobilizam organizadamente e
mobilizam multidões através das redes. E, nesse gesto de inconformismo,
ensinaram muito a seus professores. Partiu dos alunos uma reação que há muito
professores deveriam ter: a de não aceitar imposições absurdas. Tenho certeza
de que, a partir de agora, muitos professores passarão a questionar o que antes
não questionavam. Assim espero.
Quero crer
que o próprio governo tenha aprendido com essa lição. Em uma democracia não
pode haver decisões unilaterais e ditatoriais. Governantes não podem deixar de
olhar para o mundo e parar no tempo. Hoje NADA do que acontece permanece na
sombra, tudo vem à tona. E eu espero, sinceramente, que todos os abusos da
polícia militar de Alckmin resultem em uma mudança radical, que tem que começar
a ser articulada por todos nós, cidadãos de bem que não podem aceitar tal
violência contra seus jovens.
Também
espero que os professores e diretorias tenham entendido o quanto terão que se
abrir ao novo o tempo todo. Que se proponham a dinamitar pirâmides
hierárquicas, sair do conforto do protagonismo e aprendam com o que os jovens
têm a lhes ensinar. E, olha... eu acho que é muuito.
Ana Lucia Sorrentino
05/12/2015