Conversássemos
aqui sobre o papel do professor de filosofia, certamente este texto se
prolongaria indefinidamente. Idealmente todo professor deveria pensar constantemente
sobre isso, pois se essa postura reflexiva é fundamental no exercício de
qualquer profissão, que dizer no magistério? Por mais que desejemos acertar
sempre, certamente erraremos muitas vezes, porque lecionar é experiência, aprendizagem
contínua, e errar faz parte do processo. Mas, se pudermos, antes de entrar de
cabeça nessa aventura de infinitas possibilidades, eliminarmos em nós
comportamentos às vezes herdados de nossos professores - até por admirá-los
muito -, e que podem ser considerados erros graves, acredito que estaremos
começando com alguma vantagem. É essa a contribuição que pretendo dar aqui. Apontar
posturas relativamente frequentes que, ao menos a meu ver, não deveriam ser
adotadas por quem pretende se dizer professor.
Por
ser recém-formada, é na posição de aluna, com experiências ainda frescas em
mim, que relato aqui algumas situações que minha turma viveu que, sinceramente,
me provocaram uma enorme tristeza, pelo tanto que as percebi deletérias para os
alunos em geral. Creio que ao me reportar a situações reais possa fazer com que
você que está me lendo chegue junto comigo à resposta da minha pergunta inicial.
Vamos lá.
Primeira
semana de aula. Estávamos todos um pouco assustados, porque, apesar de muitos
de nós já terem passeado por textos filosóficos, passeios não são mergulhos
profundos e não tínhamos o ouvido treinado para aulas com tantos termos novos,
tantas questões instigantes, tantas novidades, enfim. Não conhecíamos os
professores e havia uma dificuldade real na compreensão de algumas aulas
expositivas, e uma natural timidez para nos aventurarmos a perguntar. Um dos
nossos professores nos perguntou por que estávamos ali. Por que resolvêramos
cursar filosofia. Respondi, tímida, mas prontamente, que, de minha parte, era
porque eu desejava aprender a filosofar. Recebi de volta um sorriso um tanto
quanto zombeteiro que se compadecia da minha ingenuidade e me dizia claramente
que minha pretensão estava acima do desejável para uma simples mortal. Naquele
momento ele se esforçou por nos fazer entender que faríamos um curso de
história da filosofia, e que isso já estava de bom tamanho. Creio que não só
eu, mas a grande maioria da sala, saiu dali, naquela noite, um tanto quanto
desvitalizada.
Algum tempo depois um outro
professor colocou-se precocemente à disposição para atender alunos que tivessem
interesse em fazer iniciação científica. Animada, já com algo em mente, fui
consultá-lo. Ele me perguntou se eu já tivera tempo de me apaixonar por algum
filósofo e eu, realmente, não tivera. Mas eu tinha um objeto de estudo. Uma
questão da atualidade que me intrigava. Ele me elucidou, então, que as coisas
não funcionavam assim na universidade. As minhas questões sobre o mundo não
interessariam a ninguém. Para escrever algo sobre filosofia eu precisava
estudar um autor já consagrado e escrever sobre o que outros autores diziam
sobre ele. Eu teria o papel de uma compiladora de teses alheias. E nenhum
orientador aceitaria uma pesquisa que já não tivesse uma bibliografia a ser
consultada. Ou seja: o valor do ineditismo era nulo. Gostaria de não criticar o
professor nesse caso, pois ele estava em um sistema que só lhe permitia isso.
Mas ele era, sem dúvida, peça importante na manutenção de tal sistema
restritivo. E peça bem azeitada... Guardei meu embrião de tese em algum lugar
de mim que nem sei e fui pra casa, mais uma vez, decepcionada.
Seguiram-se outros inúmeros
episódios similares que não vou contar aqui para não me estender demais. A
princípio, quis me iludir imaginando que nos tratavam dessa forma por sermos
iniciantes. Mas, enquanto estudava o que os filósofos consagrados pensaram, me
iludia, imaginando que, em algum momento, teríamos chance de ensaiar algo
realmente filosófico. Até que entendi que a intenção do curso não era essa.
Havia um esforço coletivo para que nos convencêssemos de que não seríamos
capazes disso.
No último ano, inconformada, minha
equipe abraçou uma ideia para um seminário de didática específica. Fizemos uma
apresentação sobre um texto de Gonzalo Armijos Palácios, um filósofo equatoriano
da atualidade: De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Nosso
seminário abordou exatamente a questão da impossibilidade do aluno de filosofia
filosofar. Expusemos as ideias de Palácios, manifestamos nossa própria
insatisfação e reivindicamos nosso direito de pensar. Nosso professor
interpretou o que fizemos como "desejo de reconhecimento prematuro".
Não... Nossa apresentação manifestava nosso desejo de ter espaço para produzir
filosofia, ainda que rudimentar, e nos treinarmos para, talvez, em algum momento,
produzir filosofia "de verdade", se é que se pode dizer assim. Mas
ele estava tão domesticado pelo sistema que sua subserviência não permitiu que
compreendesse nossa mensagem.
Mais surpreendente ainda foi quando,
ao sairmos da sala, conversei com um colega de classe que me disse discordar de
nós porque "se quiséssemos criticar a universidade, que o fizéssemos fora
dela"! O curso realmente conseguira convencê-lo de que nosso papel deveria
ser sempre o de vira-latas. Se bem que amo vira-latas... :(
Para finalizar, quero dizer que
nossa turma começou com mais de 80 alunos e no último ano éramos 20. Os que se
formaram junto comigo foram oito, se não me engano. E desses oito, apenas duas
mulheres. Certamente algum professor argumentará que isso ocorreu porque
"filosofia é para poucos", em uma perpetuação dessa ideia elitista de
que é preciso ser genial para filosofar. Filosofia não é fácil. É preciso ter obstinação
e muito amor. Mas, sinceramente, não sei em que grau essa evasão se deve mais à
constatação pessoal de cada um de sua própria incapacidade ou mais a esse
esforço permanente para nos fazerem crer que não podemos. O que sei é que um
professor de filosofia não deveria jamais servir a essa triste causa, de
convencer um aluno de que ele não é capaz. Aliás, professor algum deveria se
prestar a isso.
PS - Enquanto isso, os que tiverem
fôlego e conseguirem se submeter totalmente às regras, produzirão mestrados e
doutorados e pós-doutorados mesclando com certa habilidade pensamentos alheios
e replicando matérias para engordar o Lattes. Li, recentemente, que é
impressionante a produção de lixo acadêmico da atualidade. Mas quem se submete tem
mais chance de ser contratado. Interessante, não?
Ana Lucia Sorrentino
27/07/2015