domingo, 27 de julho de 2014

Genocídio no terceiro milênio


Na noite deste sábado, manifestantes israelenses protestaram em Tel Aviv pelo fim do conflito           Foto: THOMAS COEX / AFP

            Acabei de ler um artigo* de Mauro Santayana respondendo à pra lá de infeliz afirmação do porta-voz da Chancelaria israelense, Yigal Palmor, de que o Brasil é um anão diplomático. Antes dele nosso assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, já havia se manifestado. 
            Apesar de ter achado ótimas as respostas de Santayana e de Marco Aurélio, fiquei com a sensação de que responder a essa enorme bobagem é dar voz a um Estado que não deveria mais ter voz, tal o nível de barbárie que está promovendo. Barbárie, aliás, só imaginável na época do Holocausto, quando o que se praticava contra os judeus em campos de concentração não chegava ao conhecimento de todos. Hoje o mundo assiste em tempo real o que está acontecendo. E mesmo assim, incrivelmente, está acontecendo. Porque a linguagem dos interesses comerciais fala mais alto do que tudo. Porque há quem forneça armamentos, munição e tecnologia para que isso seja possível. Porque a mídia se refere a uma guerra totalmente desigual como "conflito" e usa todos os eufemismos possíveis e incabíveis para a situação. Fico absolutamente estupefata ao escutar frases como "é preciso 'minimizar' as mortes de civis" vindo daqueles que têm interesse nessa guerra (EUA, falando claramente). Ou afirmações de que Israel tem que “ser mais moderado" na resposta ao Hamas. Essa institucionalização do assassinato me causa horror.
           Todos os dias estamos vendo fotos e vídeos do que está acontecendo com os palestinos. São civis, doentes, idosos e crianças explodidas, morrendo, perdendo pernas, braços e qualquer ilusão de que a vida valha a pena. E a mídia comenta com a maior naturalidade, raramente enfatizando o despropósito que é Israel ter quarenta e poucos mortos enquanto os mortos palestinos já passam de mil. Fico tentando imaginar como é viver em um lugar do qual não podemos fugir porque nosso algoz nos mantém presos para poder nos exterminar. E como é estar dentro de nossa casa e receber um “pequeno aviso”, através de uma “bombinha” de que em três minutos virá uma bomba de verdade, que acabará com a nossa vida. Nada diferente das câmaras de gás de Hitler.  
            Quando Bin Laden explodiu as Torres Gêmeas fiquei profundamente decepcionada, porque, quando mais jovem, jamais imaginara que entraríamos no terceiro milênio ainda enfrentando esse tipo de terror. Acreditava, como Hegel, por ingenuidade, é claro, que a humanidade evoluiria e que aprenderia a negociar diplomaticamente. Que, talvez, por experiências anteriores, os governantes compreenderiam que o caminho para um mundo melhor para todos seria a colaboração mútua. Que por algum milagre a inteligência prevaleceria, e que ser inteligente era atuar para o bem de todos. Que menina tola, não?
            Entendi hoje algo que os mais experientes me diziam e que eu me negava a entender: a inteligência não é necessariamente algo positivo. Ela pode atuar para o bem, mas também para o mal. O que, para mim, constitui desinteligência. A mesma história sobre a qual tão bem escreveram os filósofos da Escola de Frankfurt: a racionalidade pode, sim, produzir irracionalidade.
            Como se não bastasse o desgosto da própria guerra, ainda somos obrigados a cruzar, vez ou outra, com quem a defenda. No começo desse ano, discutindo com um professor sobre Auschwitz, comentei que, para mim, observando a realidade atual, um novo Holocausto era sempre uma iminência. Jamais pensei que estaria tão certa, e que essa iminência estava tão iminente... Tenho medo de gente que defende isso. Tenho medo de uma facção de brasileiros que critica sistematicamente o nosso governo tendo em mente apenas seus próprios e miseráveis interesses. Tenho medo dessa gente que não se importa com os mais humildes, que segrega, que esperneia ao perder privilégios, que lamenta não ter mais a quem escravizar. Tenho medo dessa gente sem caráter que adultera fotos e vídeos para criar factoides contra o nosso governo, sem a menor preocupação moral, apenas porque se sente incomodada com a promoção da igualdade. Porque é esse tipo de gente que, julgando-se melhor do que os demais, tem em si a semente desse tipo de mal, como foi o Holocausto e como é hoje o genocídio dos palestinos.
            O mundo poderia abrigar a todos, fossem todos realmente bem intencionados. Se em vez de guerras tivéssemos cada vez mais alianças, haveria, sim, e ninguém me convencerá do contrário, espaço para todos em um mundo sem fome e pacífico. Mas sempre haverá quem, talvez por uma natureza má, e por má fé, critique as alianças e promova a discórdia.
            E eu continuarei, até velhinha, como a menina “tola” que fui, a afirmar o que sempre afirmei: se a inteligência não promove o bem e a paz, a inteligência não é inteligência, é burrice. E é isso o que Israel está fazendo. Fundamentando-se em uma fábula bíblica para, sob o comando de Netanyahu, com a colaboração dos EUA e a conivência dos que se calam, praticar uma gigantesca burrice. Eu não concordo em absoluto que o Brasil seja um anão diplomático, mas tenho certeza de que Israel está sendo um gigante em burrice.   
                                                                                                      Ana Lucia Sorrentino
*http://www.viomundo.com.br/politica/santayana-porta-voz-de-israel-mostra-o-grau-de-cegueira-e-de-ignorancia-que-chegou-telaviv.html

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sobre “Filosofia, Auschwitz, Educação e Modernidade”, de Germano Xavier



         Caro Germano1: li seu post “Filosofia, Auschwitz, Educação e Modernidade”2.      Longe da intenção de comentá-lo por inteiro, pretendo aqui apenas explicitar as questões que mais me instigam sobre o assunto.
        Em “Experiência e Pobreza”  Walter Benjamin faz uma análise do início do século XX e das consequências da extremada valorização da razão, que culminou na  Primeira Guerra Mundial. Imagino que conheça o texto.  Ele se pergunta como a racionalidade produziu tanta irracionalidade e observa que, após a guerra, as pessoas estavam devastadas. Se refere a isso como "barbárie" e atribui a ela um valor positivo, no sentido em que, uma vez esvaziada, a humanidade teria que se reerguer do zero. Pois bem. No mesmo texto ele cita as várias “novidades” que surgem à época, como a ioga, o espiritualismo, a quiromancia, a Christian Science,  etc., e afirma serem elas “galvanizações” desse vazio interno, uma vez que apenas o mascaram, mas não o curam.               
        Eu creio que hoje, passado praticamente um século, estamos na mesma. Que de lá para cá, e ainda com o agravante da Segunda Grande Guerra, a humanidade só se galvaniza, mas a ferrugem interna acaba corroendo até mesmo essa galvanização, que precisa se renovar sempre, pra nos proteger da exposição de nossa miséria interna.           
        Depois de Auschwitz, Adorno escreve “Educação Após Auschwitz”  em um tom de perplexidade, mais colocando perguntas e sugerindo investigações do que arriscando respostas. O que pode ter produzido seres humanos capazes de promoverem e de se tornarem cúmplices de tal evento? 
        Hoje, olhando nossa realidade, intuímos que Auschwitz é sempre uma iminência. As pessoas parecem estar cada vez mais vazias e nossa miséria interna tem se exposto a céu aberto, à luz do dia, sem a menor vergonha. Vivemos uma terrível crise de valores e a animosidade entre os humanos parece só crescer.          
        É assunto filosófico, sim. Arrisco dizer que só a filosofia pode colocar as questões cujas respostas ou tentativas de respostas gerem algo de positivo para a educação. Ocorre que a própria academia não se move. Temos, no Brasil, um estudo de filosofia conservador, que forma, dentro da filosofia, os mesmos produtores/consumidores que qualquer outro curso forma. Objetos a serviço de um sistema.  Alunos repetidores de conteúdo, que escrevem sobre o que X diz de Y, mas não se aventuram a olhar para o mundo, falar dele diretamente, detectar problemas, propor soluções. Esse esquema é altamente alimentado pelas instituições, pelos administradores, pelos orientadores, pelos professores e – pasme! – pelos alunos. No semestre passado, apresentando um seminário sobre o livro de Gonzalo Armijos Palácios, De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego, Estar Morto ou Ser Gênio, meu grupo levantou essas questões. Surpreendi-me com as não-reações, com as reações de negação dessa realidade intensamente vivida por todos nós, e com a estranha afirmação de um aluno de que não poderíamos estar fazendo tal crítica DENTRO da universidade! Oras... Onde a faríamos?       
        Anterior à crise no ensino é a crise na educação familiar. Os jovens de hoje são filhos de uma geração que rompeu com os valores mais caros à dignidade humana e abraçou o capital. Que substituiu atenção, carinho, presença, orientação, por conforto material. Que, ressentida com a educação rigorosa que recebera e temendo não ter o amor de seus filhos, lhes deu um verdadeiro presente de grego: excesso de liberdade, não imposição de limites, falta de noção de hierarquia.    
        Se a crise começa na família, como a escola pode lidar com isso? Se os alunos já chegam à escola esperando algo estereotipado e se resistem a inovações que não parecem servir aos seus propósitos; se eles nem ao menos questionam o porquê de terem abraçado tais propósitos;  se nem sabem de onde brota o que pensam; se têm a submissão como prática habitual, apesar de toda aparente rebeldia, como se desconstrói isso?  
        Lembro-me de, certa vez, ter lido em um texto seu, provavelmente não com estas exatas palavras, que para aprender precisávamos antes desaprender tudo o que nos haviam ensinado. Não tenho dúvidas sobre isso. Porém, somos feitos do que nos ensinaram. Somos produto do meio. Como superar isso? Como trazer à tona aquilo que realmente somos sob essa aparência que se moldou para se encaixar em uma engrenagem? E como sobreviver fora da engrenagem?  
        Coloquei perguntas. Que elas sirvam como provocações para mais reflexões. E deixo aqui uma frase de Cioran, a que me reportei nesse último instante: 
        “O caos?  é rejeitar tudo o que se aprendeu, é ser você mesmo...”
                                       (Breviário de Decomposição)

1 – Germano Viana Xavier é jornalista, professor e, entre muitas outras coisas, autor do blog “O Equador das Coisas”.


                                                                                    Ana Lucia Sorrentino