No
Paquistão, Malala é baleada por Talibans que julgam ser
obscenidade desejar
estudar.
Na
África, mulheres continuam sendo circuncidadas em nome de uma cultura de
fidelidade forçada.
Na
China, cãezinhos são fatiados e grelhados na brasa, no meio da calçada, para
serem gostosamente comidos.
No
Brasil, índios são despejados de suas próprias terras e resolvem se
autoextinguir.
A
barbárie impera.
Pedacinhos
de maridos infiéis passeiam dentro de malas por elevadores sociais, meninas
bonitas são jogadas pela janela, cuidadoras são flagradas maltratando idosos,
babás judiam de nenês, enfermeiros matam pacientes injetando-lhes sopa na
veia... Nos quatro cantos do mundo
fundamentalistas provocam imensas tragédias em nome de Deus. Aqui, bem pertinho,
pastores evangélicos vendem o perdão e as graças divinas como se vende bananas
numa feira livre: gritando histericamente, sem um pingo da serenidade que se
espera de quem diz ter fé. Fazem do homossexualismo uma gripe espanhola do
terceiro milênio e promovem entre política e religião um obsceno acasalamento
que nos envergonha mais do que filme pornô de produção fuleira.
Louca
pra chegar em casa, circulo pelas desgraças do mundo e percebo o farol amarelo.
Como um peixinho que sabe não poder ganhar a liberdade pulando do aquário, aciono
lentamente o freio, já sabendo o que me aguarda. Flanelinhas entocaiados surgem
de todos os lados na noite paulistana enquanto um traiçoeiro farol vermelho me
faz refém. Meu cérebro, já carcomido
pelos noticiários ensanguentados de todos os dias, me coloca em estado de
alerta. Um rapaz vem, amistoso, e suja meu para-brisa limpo, desenhando nele um
coração de água com sabão numa descarada estratégia amorosa de se criar a
necessidade para vender o produto. Tudo é tão rápido... Busco uma moeda no
fundo da bolsa enquanto ele elogia meu sorriso, e finjo acreditar em sua
docilidade, mas sei que se eu só tiver moedas miúdas corro o risco de ouvir
algum desaforo ou de coisa pior. Já passei por isso algumas vezes. Ele é rápido,
e numa só fechada de farol faz três “vítimas”. Aborreço-me. De pronto minha
sirene antiautopiedade dispara, tirando-me o direito de sentir em paz o que
estou sentindo. Encho-me de culpa e de vergonha por lamentar coisas tão
pequenas quando sei que, na verdade, faço parte de uma minoria afortunada. Afinal,
até agora, pelo menos, consegui estudar, fiz bom proveito do meu clitóris, não fui
colocada numa churrasqueira nem enfiada aos pedaços numa mala...
Mas...
embora meus horrores particulares sejam pequenos, também me aterrorizam. Tanto nos minúsculos quanto nos imensos
horrores, há horror.
Acelero
pra chegar a tempo de, paradoxalmente, me embriagar com a barbárie da absurda “Avenida
Brasil”, e esquecer um pouco da realidade. Há que se recorrer a algum escape...
Eu não fumo, não bebo, não me drogo, e frequentemente não sei o que fazer
comigo mesma.
Eu
quero, quero muito não me lamentar, mas o que sinto grita. O mundo às vezes é constrangedor...
Analú
24/10/12
Imagem: Google - Guernica - Pablo Picasso