domingo, 13 de novembro de 2011

Estudo sobre: NIETZSCHE, FRIEDRICH. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral


Estudo sobre:
NIETZSCHE, FRIEDRICH. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral  (Aforismo 1).
In: Obras Incompletas. São Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1978. 

Introdução
Debruçando-se sobre  Sobre Verdade e Mentira No Sentido Extra-Moral qualquer leitor, por mais desatento que seja, perceberá, de imediato, o porquê de Nietzsche ser conhecido como o filósofo que construiu sua filosofia à marteladas.   
Sobre Verdade e Mentira se compõe de uma sucessão de marteladas certeiras sobre a ordem estabelecida de sua época. Crítico impiedoso da moral vigente, em pleno pessimismo romântico, ao mesmo tempo em que coloca em dúvida a validade da linguagem como expressão adequada de todas as realidades e zomba da pretensão humana de fazer com que o mundo caiba em metáforas, é através da linguagem e das metáforas, abundantes em seu texto, e que usa com maestria, que exprime sua indignação. A linguagem é, sem dúvida, o martelo de Nietzsche.
Ao longo da leitura, deparando-se com enorme quantidade de alegorias e citações que acabam por emprestar ao texto um caráter enigmático, e cujo significado não parece importar a Nietzsche deixar muito claro para o leitor, este pode, em alguns momentos, sentir ímpetos de investigar a fundo a origem de cada imagem, tão instigantes que todas elas são.
É assim que se dá quando lemos “para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing” e nos sentimos tentados a investigar toda a vida de Lessing para descobrir qual o motivo de seu filho ter sido obrigado a fugir rapidamente. Ou quando lemos: “repousa o homem, na indiferença de seu não-saber e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre” e nos atrevemos a elucubrar sobre a possibilidade do tigre representar os perigos aos quais o homem fica à mercê por ser ignorante, mas acabamos por nos curvar à nossa própria ignorância, imaginando ser a imagem do tigre proveniente de alguma obra literária lida por Nietzsche, uma vez que sabemos de sua imensa erudição. E quando ele cita as figuras sonoras de Chladni,  ou árvores que podem falar como ninfas, ou um deus que, disfarçado de touro, sequestra donzelas,  e tantas outras citações que provocam nossa curiosidade.
Embora com olhar extremamente crítico e analisando as ilusões humanas com ácida seriedade, Nietzsche não se furta a ser engraçado, como quando usa a expressão Cucolândia das Nuvens  ao final de um longo raciocínio em que conclui que o conhecimento não se constrói sobre a essência das coisas.
Em alguns momentos, durante a leitura, sentimos a forte presença do filólogo, como quando Nietzsche se estende em análises pormenorizadas sobre a criação e o uso das palavras e sobre a precariedade dos conceitos. Em outros, prevalece o filósofo, que escarnece da natureza mentirosa de sua espécie. Seja lá em que momento for, acima do filólogo ou do filósofo, está o homem Nietzsche, cuja característica mais marcante parece ser a coragem. Coragem de enxergar e de falar sobre o que vê, sem receio da crítica, sem uso de eufemismos, de forma incisiva e até trágica.  

Principais ideias do texto
Nietzsche inicia Sobre Verdade e Mentira imaginando uma fábula criada por alguém que estivesse em algum ponto longínquo situado fora da Terra, observando- a  e aos homens, com distanciamento suficiente para perceber com clareza a pequenez do ser humano diante da imensidão do universo.
Mais de cem anos antes, em Micromégas, Voltaire conceberia um extraterrestre com inteligência superior visitando a Terra e percebendo os absurdos humanos. Quase cinquenta anos depois, em Metamorfose, Kafka escreveria sobre um homem repentinamente transformado em inseto, vendo a própria família através do olhar de um inseto.
É de se imaginar que ao longo de toda a história da Filosofia pensadores fizeram e farão esse mesmo exercício: tentar escapar da perspectiva limitada de homem e do relativismo ao qual, afinal de contas, estamos fadados, para enxergar mais nitidamente o ser humano.  
É esse o mote que Nietzsche usa – um observador longínquo - para começar a falar sobre a insignificância cosmológica e cronológica da humanidade. Para ele, não há criação, o Universo sempre existiu e sempre existirá e o homem está aqui em caráter passageiro, sem qualquer missão mais importante que a de sua própria sobrevivência.  Vaidoso, o homem – em especial o filósofo - supervaloriza o conhecimento e ignora a superioridade da natureza sobre a inteligência humana, chegando à extrema ingenuidade de se acreditar centro do universo.
Para Nietzsche, o intelecto do homem, o mais delicado e perecível dos seres, o engana sobre seu próprio valor, uma vez que nada mais é do que um instrumento que o ajuda a manter-se vivo,  assim como chifres ou presas aguçadas garantem a sobrevivência dos animais. Se Pascal (1623-1662) se referira ao homem como um caniço pensante, o ser mais fraco da natureza, mas cuja dignidade residia no pensamento, Nietzsche iguala os homens aos animais e parece fazer pouco caso desse pensamento, atribuindo-lhe um caráter enganador que, pela dissimulação, conserva o indivíduo.  Seguindo essa linha de raciocínio, Nietzsche conclui que o homem, tendo na mentira sua garantia de sobrevivência, haverá de tornar-se mestre nisso. Regido pela vaidade, o homem vive mergulhado no sonho e na ilusão, à margem da verdade, e nenhum sentimento moral  o impede de enganar e deixar-se enganar o tempo todo. É ignorante e ignorante quanto à própria ignorância. 
Questionando se em algum momento o homem seria capaz de perceber-se completamente, como se estivesse em uma vitrina iluminada, Nietzsche afirma que o homem não sabe nada sobre si mesmo e seu orgulho o faz negar até sua natureza fisiológica, mantendo-o tão alheio à condição humana e tão imerso na ilusão, que vive à mercê dos perigos da vida.
Por precisar viver socialmente, até para manter-se vivo, o homem firma um tratado de paz baseado em leis criadas por ele mesmo, em que se estabelece o que é verdade e onde a linguagem terá papel fundamental nomeando as coisas e determinando uma uniformidade válida para todos, e ainda pretendendo que a vida caiba dentro dessa representação. Conclui-se daí que tudo é criação do homem e que este quer viver na ilusão.
Afinal - questiona Nietzsche – é a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? E ele mesmo responde, afirmando ser impossível à linguagem captar as coisas em si. Ela serviria apenas pra designar as relações das coisas com os homens e isso se daria através do uso de metáforas. Atribuímos um nome a algo e, num movimento circular, determinamos que doravante esse algo será o nome que lhe atribuímos e passamos a crer nisso como verdade. A linguagem simplifica tudo, desprezando a riqueza das diferenças individuais. A desconsideração do individual nos dá o conceito, que não consegue abarcar totalmente o real.
A verdade seria, assim, figuras de linguagem que pelo longo uso e aceitação geral se solidificam, mas que não conseguem pintar um quadro da realidade que não seja pálido. Ao esquematizar o mundo, o homem o empobrece, pois o grande espetáculo da vida não cabe nas palavras.
E onde está, aqui, o impulso à verdade? – continua questionando Nietzsche.
A sociedade estabelece que dizer a verdade é mentir segundo as leis que ela mesma cria. O homem aceita as regras do jogo e ao se perceber aceito pela sociedade crê estar com a verdade. Sente-se honrado e digno de confiança e passa a desprezar as próprias impressões e intuições. É aí que o homem se diferencia do animal. E é através desse processo que cria um mundo que dita regras, que funciona baseando-se em hierarquias em que alguns menos afortunados subordinam-se a privilegiados, em que limites são impostos de forma rígida e em que o homem “honesto” é aquele que aceita sem questionamentos as regras do jogo.
Nesse ponto, há um retorno à questão do relativismo. Uma vez que o homem só consegue assimilar algo das coisas através de seu próprio entendimento, ele tem, em sua visão limitada, a ilusão de que as coisas são somente o que ele consegue captar delas. Tenta expressar isso em palavras e impõe as palavras como verdades, como se fossem as coisas em si. O homem diminui o mundo e a vida para que o mundo e a vida caibam dentro do pequeno quarto do seu entendimento. Seu desejo de verdade se dá em um sentido restrito. O homem quer e aceita as verdades que lhe sejam agradáveis. Ele fica feliz quando falsas verdades lhe fazem feliz. É aqui que percebemos claramente o envolvimento de Nietzsche com as ideias de Schopenhauer1. Porque  ele conclui que essa propensão do homem a deixar-se enganar encontra na arte a escapatória para  um mundo regular e rígido esquematizado a partir de uma realidade nada regular ou rígida. 
1) Filósofo alemão do século XIX (1788-1860), Arthur Schopenhauer  via a arte como um dos caminhos para o homem escapar da vontade e da dor que ela acarreta. A arte representaria um paliativo para o sofrimento humano.  Schopenhauer influenciou fortemente vários pensadores, entre os quais está Nietzsche.
Novamente a metáfora, agora manifesta no mito e na arte, entrará na vida do homem como uma possibilidade de aproximá-lo da felicidade.
Por fim, Nietzsche contrapõe o homem racional ao homem intuitivo, não defendendo, a princípio, um extremo ou outro, mas considerando o desejo de ambos de ter domínio sobre a vida. É então que demonstra toda a sua admiração pelo mundo antigo grego, citando a Grécia antiga como um exemplo de civilização em que o homem intuitivo e a arte se impõem, resultando em algo favorável à felicidade.
            Quanto ao homem racional, governado por conceitos, Nietzsche  sugere que, perante a infelicidade, só lhe resta mesmo o disfarce, no qual já é mestre.

            Últimas Considerações
            Ao terminar de ler Sobre Verdade e Mentira, é inevitável comparar Nietzsche a outros filósofos. E começamos a entender o porquê da enorme importância de sua filosofia no mundo todo.
            Platão olhou para cima e convenceu-se – e a outros – da existência de um mundo ideal, onde a virtude negaria nossa natureza material.  Descartes negou-se a ir à festa, fechou-se num quarto, se persuadiu de que tudo poderia ser uma grande  mentira e quis descrever a festa da vida sem estar nela. Nietzsche, longe de olhar para o céu ou de  negar a matéria, parece ter ido à festa e ter olhado bem dentro dos olhos de cada convidado, radiografando a alma humana. Detectou aí uma moral negligente, cujas intenções caminham muito longe de qualquer rota que possa levar à verdade.
            Husserl e Merleau-Ponty, depois de Nietzsche, com a fenomenologia, combateram, como ele, a ideia do homem ser o umbigo do universo e a pretensão de se ter uma visão de Deus. Também como ele,  sugeriram que olhássemos a nós mesmos com certo distanciamento, para que pudéssemos nos enxergar de forma mais realista. Perceberam que a vida se dá na relação e sempre dentro do mundo. Romperam com o pensamento clássico e entenderam o valor fundamental da arte para a vida humana.  
            Muito provavelmente, hoje, nesse exato  momento, há no mundo um sem número de filósofos lendo Nietzsche e se impressionando fortemente com suas ideias e com sua coragem. Criando sua própria filosofia, tendo-o como referência e inspiração.               
E, parece-me, é exatamente assim que deve ser.   

Ana Lucia Sorrentino