quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

"Provocação" - Esse Deus, o Dinheiro

Nasci numa família que sempre valorizou muito a educação, a honestidade e a cultura. Apesar de passarmos, como todo mundo, por períodos de dificuldades financeiras, quase nunca se falava abertamente nisso em nossa casa. Em épocas melhores, curtíamos as regalias que podíamos ter. Em tempos de vacas magras, economizávamos.
São momentos memoráveis de nossas vidas, a chegada, em nossa casa, da Enciclopédia Barsa, para nós, um sonho de consumo, sim, mas por ser, na época, o supra-sumo do acesso ao conhecimento; e da coleção completa do Monteiro Lobato, que li e reli e me encantou a tal ponto que fez com que eu desejasse ser uma escritora, sonho que jamais me abandonou. Éramos seis filhos, e não lembro de ver nenhum de meus irmãos mais velhos desesperado para ter um carro, ou para comprar roupas de grife. Mas quando podiam, se davam ao luxo de comprar clássicos da literatura em encadernações especiais, que folheávamos com o cuidado de quem lida com uma verdadeira preciosidade.
Foi esse o legado que minha família me deixou: além da hombridade, o gosto pela cultura. Atributos que, independentemente da minha situação financeira momentânea, me acompanham sempre, muitas vezes fazem com que eu me destaque, e me ajudam a jamais me sentir infeliz ou inadequada.
Mas, é claro, sempre soube que nem todo mundo pensa da mesma forma. Parece-me que quanto mais o mundo evolui, mais distante fica esse tempo até romântico de amor ao conhecimento e a sólidos valores morais.
Casei, tive meus filhos, e a primeira vez que fiquei seriamente preocupada com a qualidade da relação que eles teriam com o dinheiro e com as mulheres foi quando participei de uma conversa entre pré-adolescentes encantados com a Feiticeira e com a Tiazinha, na época em que elas foram lançadas pelo Luciano Huck. Flagrando meia dúzia de garotos, empolgados com a extrema beleza das duas personagens, compartilharem, euforicamente, da mesma idéia de que era preciso ganhar muito dinheiro, porque sem dinheiro seriam rejeitados pelas mulheres, tentei argumentar, perguntando-lhes se eles realmente desejavam sair com uma mulher que estivesse interessada mais em seu dinheiro do que neles. A minha pergunta parecia nem tocá-los, tão obstinados estavam nessa idéia de que um homem vale o dinheiro que tem.
A partir daí, passei a observar mais atentamente essa supervalorização do dinheiro, extremamente recorrente em nossa sociedade capitalista. E a cada dia fico mais impressionada ao perceber o quanto é difícil lutar contra isso.
Encontro diariamente pessoas que têm o dinheiro como referência para tudo. Ao se referirem a alguém, citam quanto dinheiro a pessoa tem. – “O cara tem uma grana!” – é uma expressão que sempre escuto, e a que esperam que eu atribua o significado de “ele é mais do que os outros”. Não importa se o cara é trabalhador ou apenas um herdeiro sortudo. Se é honesto ou vigarista. Se usa bem o dinheiro que tem, melhorando o mundo ao seu redor, ou se é um egoísta que pensa apenas em aumentar sua fortuna, e para isso usa os métodos mais espúrios, sem o menor escrúpulo. Ele é “algo mais” porque “tem uma grana”!
Valores morais, honestidade, cultura, inteligência, sensibilidade, caráter, parecem ter perdido feio para esse Deus Dinheiro, que tudo determina e sentencia.
Um jovem que nem sabe o que é trabalho completa dezoito anos e imediatamente ganha um carro potente, que, em sua cabeça, lhe agrega um valor inestimável. Sai pelas ruas ultrapassando carrinhos mais humildes, que sofrem em subidas íngremes, sorri zombeteiramente, e acredita piamente que “é” mais do que o motorista que ficou pra trás. Como se ele fosse a potência do seu carro! Aliás, é sabido que grande parte dos homens tem uma relação tão forte com seu automóvel que pensa nele como uma extensão de si mesmo.
São infinitas as situações em que o dinheiro assume importância tão grande, que tudo o mais parece não ter valor algum. Quantas e quantas vezes já ouvi alguém dizer, argumentando contra a fidelidade a uma bela amizade, que “seu melhor amigo estava ali, no seu bolso”? Quantos relacionamentos já vi se deteriorarem pelo fato de que quem detém o poder financeiro se considera dono de todas as resoluções familiares? O que sente uma mulher que faz de tudo para que a família inteira fique bem, mas, no momento das decisões cruciais, escuta do marido que é ele que paga as contas, e por isso é ele que decide?
Há poucos dias, eu e minha família vimos uma cena, depois de um jogo de futebol, em que uma linda fã até chorava, implorando um beijo a um dos jogadores. Os homens da minha casa deram risada, porque o jogador não tinha nada de galã, e eles só conseguiam explicar o comportamento da garota como amor ao dinheiro. Realmente, o assédio das Maria-Chuteiras a jogadores é algo há muito conhecido por todos. Sempre com alguma esperança de ainda poder acreditar nas mulheres, fiquei ponderando que talvez não tivesse a ver com o dinheiro, mas com o talento. Todos os homens riram da minha cara. E me garantiram que o foco era o dinheiro mesmo, e que se uma daquelas garotas cruzar com o mesmo jogador em qualquer rua da cidade, sem saber quem ele é nem quanto ganha, jamais vai olhar com interesse pra ele. O dinheiro faz o homem ficar bonito – era o consenso geral, entre os homens. Mas eu ainda não havia me convencido de todo.
Coincidentemente, dois dias depois, liguei a TV e naquele exato momento, num programa que nem sei qual era, duas belas mulheres davam o seguinte depoimento a uma jornalista: “Você vê dois homens, um muito bonito e outro muito feio. O muito bonito chega pra você e te convida pra tomar alguma coisa num bar qualquer, à pé. Instantaneamente, ele fica meio feio. O muito feio vem e te convida pra ir no jatinho dele pegar um sol numa praia paradisíaca, onde ele tem uma mansão. No mesmo momento, você já começa a achá-lo bonito, e logo ele parecerá um príncipe!” – Me senti tolamente ingênua, porque, elas não só pensavam realmente dessa forma, como declaravam isso publicamente, sem o menor constrangimento!
Mas a coisa vai mais longe: quando o Papa veio ao Brasil, fiquei impressionada com a comoção do povo, porque eu achava que as pessoas reagiam à sua presença como se ele fosse um santo, e eu não entendia bem essa situação, porque, para mim, o Papa é o representante da Igreja Católica, mas não é um santo. Comentei com um conhecido meu sobre essa emoção, exagerada, a meu ver, e ele me saiu com essa: - “É, mas ele tem uma grana...” - referindo-se à riqueza da Igreja Católica! Caraaaaaca! Será que Deus “tem uma Grana”, e é por isso que é tão popular?
E o aquecimento global? Quando a mídia começou a falar mais seriamente sobre o assunto, e pudemos perceber a verdadeira gravidade do problema, logo ficou evidente, pra quem pensa um pouco, que as providências teriam que ser urgentíssimas. Mas, infelizmente, quem tem interesses financeiros, não pode perceber a enorme urgência dessa situação. Governantes do mundo todo negociam pequeníssimas porcentagens de diminuição de emissão de gases de efeito estufa a longuíssimos prazos, e os que mais poluem se dão o direito de nem ao menos assinar o Protocolo de Kyoto, porque pretendem crescer muito, e poluir mais ainda! Enquanto as catástrofes crescem no mundo todo, os antídotos são extremamente lerdos, para não abalar a economia mundial. A tal da grana vai comendo tudo: injetam nossa preciosa água no lugar do petróleo que poluirá a Terra, investem na indústria bélica em vez de promover a paz, investigam outros planetas, quando não sabem nem ao menos lidar com o nosso... E não se empenham, nem ao seu dinheiro, em baratear tecnologia para a produção de energia limpa. Nós, leigos, escutamos falar em tantas possibilidades, que a impressão que temos é de que tudo pode virar energia. Mas os homens ainda se comovem profundamente cheirando uma rocha impregnada de petróleo, porque esse é o cheiro do dinheiro! Quando comento com as pessoas que as providências tinham que ser muito mais ágeis, que o mundo deveria estipular um prazo não muito longínquo para substituir totalmente a energia suja pela limpa, elas me dizem : - Você é louca! E a economia? E os prejuízos? – Talvez ainda não tenham percebido que numa Terra completamente assolada por catástrofes os lucros não resolverão grande coisa...
Há pouco tempo assisti no teatro a peça O Avarento, de Molière, com o maravilhoso Paulo Autran. Seu personagem passa a história inteira tendo o dinheiro como referência para tudo. Tudo, absolutamente tudo o que faz é em função do dinheiro. O amor não importa, os sentimentos não importam, ele poderia comer muito bem, mas come mal, se veste como um mendigo, e vive atormentado com a idéia de que lhe roubem o dinheiro, que mantém enterrado dentro de um baú, no jardim. No final da peça, todos os seus familiares vão para uma festa, e ele fica sentado, sozinho, num pequeno banco, abraçando seu baú de dinheiro. Feliz da vida!
A impressão que tenho, às vezes, é a de que vamos acabar assim: doentes e sedentos, sentados em cima de uma imensa uva-passa super-aquecida, abraçados a um baú de dinheiro e talvez assistindo pela TV uma legião de perfeitíssimas mulheres que jamais serão de ninguém, porque o dinheiro já é seu dono, se balançando incansavelmente, como as meninas do Pânico. Espero, sinceramente, estar errada.



Beijo!

Analú

domingo, 2 de dezembro de 2007

XIV - Mais Uma Forma de Fazer Contato Com Sua Alma - "O Capote Expiatório"

Ao longo de “Mulheres que correm...”, por inúmeras vezes, Clarissa insiste em
que usemos a arte para entrar em contato com nossa alma, para manifestarmos o que temos de melhor em nós. São verdadeiras “chamadas” que nos despertam instantaneamente uma enorme vontade de nos dedicarmos à arte com que mais nos identificamos. Você gosta de escrever? – ela pergunta. E encoraja: - pegue lápis e papel, e escreva! O que você gosta de fazer? Faça! Vá desenhar, pintar, esculpir, bordar, tocar, cantar, mas vá! Crie, transforme essa maravilhosa energia criadora que você tem dentro de você em algo que possa ser lido, visto, ouvido, apreciado, criticado! É sempre altamente gratificante! A sensação que temos depois de criar algo de que gostamos nos preenche de tal forma, que, por algum tempo, parece que não precisamos de mais nada. Estamos ancoradas em nós mesmas. Se o que sentimos em relação ao que criamos é positivo, a crítica alheia não importa. “Dane-se”- é o que penso quase sempre quando sinto que escrevi algo muito bom, mas alguém insiste em achar defeitos. Esse sentimento é o exato oposto daquele que já citei, que nos acomete depois de passarmos um dia inteiro à la zumbi, servindo aos outros e nos deixando de lado. Aquele imenso vazio transforma-se numa maravilhosa plenitude.

Além disso, o trabalho artesanal, como já comentei na primeira parte desse post, faz com que você se interiorize, e se o tema do trabalho for a sua própria vida, então você estará, como La Loba, percorrendo estradas e leitos secos de rios, e aposto que voltará com um bom feixe de ossos sobre os ombros!

Como estávamos conversando sobre as formas de recolher ossos, considero que caiba aqui subverter novamente a ordem dos textos do livro, para sugerir mais uma, baseada num relato que Clarissa dá no décimo terceiro capítulo - Marcas de Combate: A participação no Clã das Cicatrizes.

Em seu relato, Clarissa conta que, às vezes, ensina as mulheres com quem está trabalhando a fazerem um capote expiatório, de tecido ou de algum outro material. Ela explica: “Um capote expiatório é um casaco que descreve em detalhes, pintados ou escritos, e com todo tipo de coisas costuradas ou pregadas nele, os insultos que a mulher sofreu na sua vida - todas as ofensas, calúnias, traumas, feridas, cicatrizes. É a sua afirmação da experiência da mulher de ser transformada em bode expiatório. Ele é de extrema utilidade para a descrição de todas as mágoas, baques e golpes da vida da mulher.”

A princípio, Clarissa fez um capote para si mesma. Diz que ficou pesadíssimo, tantas as coisas que fixou nele. E que sua intenção inicial era incinerá-lo, quando estivesse pronto, para que, com ele, sua antiga fragilidade também fosse incinerada. No entanto, ela pendurou o casaco no teto do corredor e, ao passar por ele, em vez de se sentir mal, sentia-se extremamente bem, porque havia sobrevivido a tudo aquilo, e era admirável o fato de estar “andando inabalável, cantando, criando e abanando o rabo”. O mesmo acontecia com suas pacientes. Elas nunca queriam destruir seus capotes expiatórios, ou mantos de combate, depois de prontos, porque eles eram a prova de sua resistência, derrotas e vitórias. Clarissa compara esses capotes aos hieróglifos que o povo lakota pintava em peles de animais para registrar os acontecimentos do inverno e aos códices de registro dos grandes eventos das tribos dos povos náuatle, maia e egípcio. Se pergunta o que as netas e bisnetas das donas desses capotes pensarão, ao ver as vidas dessas mulheres assim registradas, e fica desejando que lhes expliquem, porque ali estão suas mais difíceis opções. O capote expiatório e a intenção inicial de Clarissa, de queimá-lo, me lembrou alguns rituais japoneses em que escrevemos num papel tudo aquilo de que queremos nos livrar, como mágoas ou remorsos, e depois o queimamos, orando.

Minha sugestão, baseada nesse relato de Clarissa, é de que você não fique só pensando. Faça seu capote expiatório, usando a arte que tenha mais a ver com você. Adapte-o ao seu bel-prazer. Sei que quando a coisa começa a ficar meio complicada, a tendência é “deixar prá lá”, então, vamos pelo caminho mais fácil. Se você não é muito afeita a costurar, ou lidar com tecidos, mas gosta de desenhar, desenhe! Pegue uma folha de cartolina, algumas canetas hidrocor, ou o material de que goste mais, desenhe o capote, limpo, e então comece a lembrar dos momentos cruciais da sua vida. Na minha opinião, já que você já sabe que a intenção não é necessariamente queimá-lo, mas orgulhar-se dele, acho que podemos ir mais longe: faça um verdadeiro mapeamento de todos os momentos importantes da sua vida, não apenas daqueles em que sofreu ou foi sacrificada, mas também daqueles em que foi muito feliz, em que se sentiu realmente viva. Você pode descrever cada momento desses num pequeno post-it e grudá-lo ao desenho do capote. Se gosta de escrever, escreva! Essa catarse você terá de fazer da forma que achar melhor. No meu caso, ao recolher tudo o que já havia escrito, percebi que passara toda a minha vida fazendo a minha. Em ordem cronológica, ali estava tudo. E eu, pessoalmente, também jamais tive vontade de queimar meus textos, mas sempre me orgulhei deles e, relendo-os, sinto-me realmente, forte, porque vejo que sobrevivi, exatamente como Clarissa descreve.

Mas, nessa atividade, há algo que considero tão ou mais importante do que simplesmente lembrar e registrar. Não faça isso com pressa. Não se imponha um prazo para terminá-la. A própria Clarissa diz que pode-se demorar um dia ou meses para terminar um trabalho desses. Acredito que seja extremamente importante, a cada registro que você fizer, você realmente lembrar porquê aquilo, naquela ocasião, te causou tanto desgosto ou alegria. E como você vivenciou isso, como curtiu essa alegria ou como livrou-se da dor. Que crenças você tinha, que fizeram com que o acontecimento fosse tão traumático? De onde você tirou forças para reagir? Que estratégia usou para superar a situação? E, depois de superá-la, como se sentiu? Hoje, quando se recorda, o que pensa disso? Se a situação se repetisse, no seu contexto atual, reagiria diferente? Não sofreria tanto? Sairia dela da mesma forma? Ou ela já representaria uma “bobagem”, com a cabeça que você tem hoje? Se você achar interessante, registre num caderno, ou num arquivo, todas essas impressões. Você estará escrevendo a história da sua vida; mais do que isso, estará compreendendo essa história. E, através dessa compreensão, acredito que poderá escrever uma história mais feliz daqui pra frente.

Outra coisa tremendamente importante: você conseguirá captar se realmente tudo em sua vida foi resolvido. Ou se você pulou algumas etapas, escondeu sujeiras sob o tapete, “fingiu” ter engolido coisas que, na verdade, apenas está mascando, como um chiclete velho que já causa engulhos, mas que você não sabe onde jogar.

Essa é a hora pra você começar a resolver tudo isso. Resgate as etapas perdidas, viva o que não foi vivido, levante o tapete, encare essa sujeira e varra-a para o lixo, cuspa esse chiclete, você não precisa engolir isso! Faça uma limpeza na sua vida. Chore rios de lágrimas, se for preciso, mas, como diz Clarissa, essas lágrimas vão desencalhar do meio das pedras o barco que carrega a vida da sua alma, e vão carregá-lo para um lugar novo, um lugar melhor. Tenha essa coragem. Isso é imprescindível. Bom trabalho!

Beijo!

Analú